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Afeto e invisibilidade: livro biografa ‘tias’ que trabalham em escolas

Livro traz 26 biografias de pessoas negras de várias regiões

Mar­i­ana Tokar­nia – Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 04/02/2025 — 09:13
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro (RJ) 31/01/2025 – Entrevista com a escritora Sandra R. Coleman, que está no Brasil para lançar o livro
Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Apren­di a coz­in­har coz­in­han­do e peguei tan­to gos­to pelo tra­bal­ho que a min­ha coz­in­ha esta­va sem­pre limp­in­ha. Eu tin­ha um car­in­ho e um cuida­do muito grande pela coz­in­ha”, con­ta a meren­deira aposen­ta­da Maria das Graças Soares Bar­bosa, que tra­bal­hou no Colé­gio Estad­ual Maria Poli­doro, em Canoas, no Rio Grande do Sul, entre 1989 e 2013. “Até hoje encon­tro alunos que me recon­hecem e falam ‘tia, como era boa a sua meren­da’”.

A história de Maria das Graças é uma das que fazem parte do livro Meren­das e Afe­tos, orga­ni­za­do por San­dra Regi­na Bar­bosa Soares Cole­man. A pub­li­cação traz 26 nar­ra­ti­vas biográ­fi­cas, todas de pes­soas negras de difer­entes esta­dos brasileiros – Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – e do Dis­tri­to Fed­er­al.

O livro reúne histórias de vida de 18 mul­heres negras, daque­las que, muitas vezes, são chamadas de tias: a tia da meren­da, a tia do corre­dor, a tia do portão, a tia da limpeza. São fun­cionárias que cos­tu­mam con­hecer os estu­dantes às vezes mel­hor que os próprios pro­fes­sores e que são fun­da­men­tais para o fun­ciona­men­to das esco­las.

“Ape­sar de não ter muito estu­do, tra­to todo mun­do bem, apren­di com a vida”, diz out­ra biografa­da, Fáti­ma Souza de Oliveira, con­heci­da car­in­hosa­mente como Fat­in­ha, respon­sáv­el pela limpeza do Cen­tro Inte­gra­do de Edu­cação Públi­ca (Ciep) 370 — Pro­fes­sor Sylvio Gnec­co de Car­val­ho, em Duque de Cax­i­as, no Rio de Janeiro.

“Ser tia da limpeza pra mim é grat­i­f­i­cante. Com os alunos, apren­do e ensi­no. Às vezes, me sin­to a segun­da mãe deles. O car­in­ho e admi­ração é recípro­co. Sou muito gra­ta pelo tra­bal­ho que ten­ho”, diz, no livro, Fáti­ma.

Narrativas de poder

Rio de Janeiro (RJ) 31/01/2025 – Entrevista com a escritora Sandra R. Coleman, que está no Brasil para lançar o livro
Repro­dução: A escrito­ra San­dra Cole­man — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

O livro é o ter­ceiro de San­dra Cole­man, tam­bém auto­ra de Mul­heres negras brasileiras — Pre­sença e poder, da Exposição ao livro (2020), Fil­hos, pais e avôs — Nar­ra­ti­vas de pre­sença e poder (2021). Em todas as obras, San­dra reúne nar­ra­ti­vas de pes­soas negras, sem­pre escritas por mul­heres negras. Na ter­ceira obra, a escrito­ra voltou a atenção para as esco­las.

“Eu vejo essas meren­deiras, inspetoras, elas são invis­i­bi­lizadas, elas são invisíveis para a direção esco­lar. Muitas, a direção esco­lar ou os pro­fes­sores não sabem o nome delas, que não par­tic­i­pam ati­va­mente das decisões da esco­la. Eu acred­i­to que elas sabem muito mais sobre os alunos do que os pro­fes­sores porque têm um con­vívio maior com os alunos, porque estão ali ven­do o que os alunos estão fazen­do no corre­dor. Quan­do eles vão para a meren­da, a tia da limpeza está ali, ela está ven­do tudo”, diz a auto­ra do livro.

Para con­duzir as histórias, San­dra Cole­man elaborou uma lista de per­gun­tas a serem feitas para os biografa­dos – nes­ta obra, 24 mul­heres e dois home­ns. Entre as questões estão per­gun­tas sobre a história das famílias, sobre avós e bisavós e tam­bém sobre episó­dios de racis­mo sofri­dos.

“O livro traz algu­mas car­ac­terís­ti­cas da sociedade brasileira”, diz a escrito­ra. “A questão do tra­bal­ho infan­til, muitas mul­heres que começaram a tra­bal­har, cri­anças com 5, 6 anos de idade, você vai encon­trar a questão do serviço domés­ti­co, você vai encon­trar a escrav­iza­ção. Em pleno [ano de] 1950, no inte­ri­or, ain­da exis­ti­am pes­soas viven­do na escravidão”, ressalta.

O foco de Meren­das e Afe­tos, como desta­ca o títu­lo, é a meren­da esco­lar. A meren­da é con­sid­er­a­da fun­da­men­tal nas esco­las brasileiras para a per­manên­cia dos estu­dantes na esco­la. A ali­men­tação é inclu­sive políti­ca públi­ca nacional, imple­men­ta­da pelo Pro­gra­ma Nacional de Ali­men­tação Esco­lar (Pnae), que repas­sa recur­sos finan­ceiros fed­erais para o atendi­men­to de estu­dantes matric­u­la­dos em esco­las públi­cas.

“Tem [no livro] caso de meren­deira que não seguia a ordem da nutri­cionista da prefeitu­ra. Ela fala­va que eles man­dam faz­er purê de bata­ta e ela fazia purê de inhame, porque inhame é mais nutri­ti­vo. E as cri­anças comi­am purê de inhame achan­do que era purê de bata­ta. Então, assim, elas são fan­tás­ti­cas, sabe?”, desta­ca a auto­ra da obra.

Histórias de muitas

Tan­to Maria das Graças quan­to Fáti­ma são por­ta-vozes de história vivi­das por muitas mul­heres negras. “Sofri racis­mo em uma das casas em que tra­bal­hei, em que a irmã da patroa disse que não gosta­va de gente pre­ta. De pre­to só gos­to de fei­jão”, lem­bra Fáti­ma no livro. Ela con­ta tam­bém que, na esco­la, encon­trou amparo: “Quan­do tra­bal­hei em uma esco­la par­tic­u­lar, um aluno me chamou de pre­ta bur­ra. A dire­to­ra era negra, bem estru­tu­ra­da, não se con­for­mou, chamou os pais dele e fez ele pedir des­cul­pa na frente dos pais, e ele nun­ca mais fez isso.”

De acor­do com a Con­sti­tu­ição Fed­er­al, o racis­mo é crime inafi­ançáv­el no Brasil. Quem comete o ato racista pode ser con­de­na­do mes­mo anos após o crime. A Lei 14.532, san­ciona­da em 2023, aumen­ta a pena para a injúria rela­ciona­da a raça, cor, etnia ou pro­cedên­cia nacional. Com a nor­ma, quem pro­ferir ofen­sas que desre­speit­em alguém, seu deco­ro, sua hon­ra, seus bens ou sua vida poderá ser punido com reclusão de 2 a 5 anos. A pena poderá ser dobra­da se o crime for cometi­do por duas ou mais pes­soas.

Mes­mo em um país onde as pes­soas negras rep­re­sen­tam 55,5% da pop­u­lação, Maria das Graças con­ta que sofreu racis­mo.

“Uma cri­ança der­ra­mou a meren­da no chão, e a pro­fes­so­ra falou: ‘Vamos, negra, limpar é o seu serviço’. Isso na frente das cri­anças. Engoli qui­eta e depois de servir a meren­da pro­curei a Nei­de, a min­ha dire­to­ra, uma pes­soa abençoa­da, que me defend­eu”, diz Maria das Graças na pub­li­cação.

Graça afir­ma que, hoje, é ela que se define: “Se me per­guntarem quem eu sou, respon­do: Negra, mãe, avó, car­navalesca, capoeirista e fil­ha de Oya. Me con­sidero uma ver­dadeira guer­reira.”

Uma sobe e puxa a outra

As exper­iên­cias de vida dos biografa­dos tam­bém ressoam na história da própria auto­ra. Ao reunir exper­iên­cias de out­ras pes­soas, San­dra Cole­man ressig­nifi­ca a própria nar­ra­ti­va. Ela nasceu em São Gonça­lo, região met­ro­pol­i­tana do Rio de Janeiro. De família pobre, des­de cedo, tra­bal­ha­va aju­dan­do a mãe nas tare­fas domés­ti­cas.

San­dra diz que sem­pre son­hou faz­er um cur­so supe­ri­or. Des­de cedo, foi des­en­co­ra­ja­da. “Eu tin­ha o son­ho de entrar na uni­ver­si­dade, mas, à min­ha vol­ta, os meus ami­gos eram todos não negros. Porque a gente tem essa coisa, hoje em dia, então eles não eram negros. E eles falavam que fac­ul­dade era besteira, que esta­va cheio de engen­heiro tra­bal­han­do de gari. Para que eu ia faz­er fac­ul­dade? Mas eles foram”, lem­bra.

Ela pas­sou por uma série de empre­gos, e, em uma deles, chegou a ser escon­di­da do dono da empre­sa porque ele não podia saber que tin­ha uma fun­cionária negra con­trata­da ali.

Foi no Insti­tu­to Pal­mares de Dire­itos Humanos (IPDH), que sua con­sciên­cia racial “explodiu.” Lá, pela primeira vez, ela con­ta que foi chama­da de boni­ta. “Naque­le momen­to, eu fiz assim: ‘Eu? Per­aí, ela  falan­do comi­go? Como assim? Boni­ta? Eu? Eu, boni­ta?’. E eu lev­an­tei e fui pro ban­heiro, olhar no espel­ho. Eu fiquei assim: ‘per­aí, a mul­her disse que eu sou boni­ta? Como? Eu?’. Porque eu nun­ca, 38 anos de idade, eu nun­ca tin­ha ouvi­do alguém diz­er que eu era boni­ta.”

San­dra real­i­zou o son­ho de ir para a uni­ver­si­dade e tornou-se bacharel em artes-espan­hol e mes­tra em estu­dos profis­sion­ais, com con­cen­tração em edu­cação mul­ti­cul­tur­al. Em 2005, con­heceu o mari­do, o advo­ga­do amer­i­cano Major Cole­man, e hoje vive nos Esta­dos Unidos.

O primeiro livro nasceu de uma exposição que fez para mostrar aos norte-amer­i­canos que o Brasil tem, sim, mul­heres negras acadêmi­cas, pois os estu­dantes que chegavam nos Esta­dos Unidos eram todos não negros. Foi a exposição Black Brazil­ian Women: Pres­ence and Pow­er, na Uni­ver­si­dade do Esta­do de Nova York. San­dra Cole­man diz que ain­da quer escr­ev­er mais sete livros, total­izan­do dez.

Em todas as obras, ela bus­ca con­tar histórias de pes­soas negras e traz­er jun­to mul­heres negras para escreverem, ou a própria história, ou a história de out­ras pes­soas. “Eu acred­i­to muito no uma sobe e puxa a out­ra. Eu acred­i­to no ubun­tu, eu acred­i­to no, jun­tas, somos mais fortes”, diz. Ubun­tu é uma palavra de origem africana que remete a uma filosofia que se baseia na inter­de­pendên­cia entre as pes­soas. Pode ser traduzi­da como “Eu sou porque nós somos”.

O livro Meren­das e Afe­tos: Nar­ra­ti­vas de pre­sença e poder pode ser adquiri­do no site da edi­to­ra Revista África e Africanidades.

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