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Amigos relembram Millôr Fernandes em seu centenário de nascimento

Repro­dução: © Wikipedia/Cyntia Brito

“Um gênio, uma inteligência rara”, diz cartunista Claudio Duarte


Pub­li­ca­do em 16/08/2023 — 06:30 Por Alana Gan­dra — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Se estivesse vivo, o desen­hista, humorista, dra­matur­go, escritor, poeta, tradu­tor e jor­nal­ista brasileiro Mil­lôr Fer­nan­des estaria com­ple­tan­do, nes­ta quar­ta-feira (16), seu cen­tenário de nasci­men­to. Mil­lôr Fer­nan­des, nome artís­ti­co de Mil­ton Vio­la Fer­nan­des, nasceu no sub­úr­bio car­i­o­ca do Méi­er, em 16 de agos­to de 1923, e mor­reu em 27 de março de 2012, na mes­ma cidade, gan­han­do noto­riedade por suas col­u­nas de humor grá­fi­co em pub­li­cações como VejaO Pasquim Jor­nal do Brasil.

“Mil­lôr é uma das grandes mentes do nos­so país. Um artista grá­fi­co fasci­nante, além de grande escritor. Con­heci a arte de Mil­lôr nas pub­li­cações do Pasquim e revista Veja. Nun­ca o con­heci pes­soal­mente. Tra­bal­hei no Globo com a sua com­pan­heira, Cora Rónai. As fras­es e as sáti­ras que ele escrevia, muito e magis­tral­mente tran­screvia para o papel. Nas artes grá­fi­cas, a liber­dade de traço e cores foi o grande apren­diza­do que tirei de seu tal­en­to. Mil­lôr Fer­nan­des, Jaguar e J.Carlos me ensi­naram bas­tante com seus traços encan­ta­dores. Mil­lôr Fer­nan­des, um gênio, uma inteligên­cia rara. Eu o vejo e enten­do assim”. Essa é a lem­brança que o car­tunista, ilustrador e design­er Clau­dio Duarte disse ter de Mil­lôr Fer­nan­des, em depoi­men­to à Agên­cia Brasil.

O tam­bém car­tunista Car­los Amor­im tra­bal­hou no jor­nal O Pasquim de 1984 a 1992, mas não chegou a pri­var da com­pan­hia de Mil­lôr, que deixou o jor­nal anos antes, em 1975, por dis­cordân­cias com a equipe. Mas, em entre­vista à Agên­cia Brasil, Amor­im desta­cou que “Mil­lôr sem­pre foi o farol dessa tur­ma toda. Ziral­do pedia a bênção para o Mil­lôr, Jaguar pedia a bênção para Mil­lôr. Depois que ele saiu, lá pelo número 300, foi um divi­sor de águas”. Segun­do Car­los Amor­im, Mil­lôr lev­a­va o humor a sério. “Tan­to é que dizia: jor­nal­is­mo é oposição. O resto é armazém de sec­os e mol­ha­dos”. Segun­do lem­bra Amor­im, o Pasquim sofreu muito após a saí­da dele. “Pode­ria ter fica­do mais tem­po, até o seu falec­i­men­to”. Afir­mou ain­da, que toda essa tur­ma que é destaque nos jor­nais hoje “bebia na fonte do Mil­lor, como Tar­so de Cas­tro, Faus­to Wolff. Ele era o guru mes­mo, de carteir­in­ha”.

Referência

O escritor e imor­tal da Acad­e­mia Brasileira de Letras, Ger­al­do Carneiro, definiu Mil­lôr como um priv­ilé­gio da cul­tura brasileira. Em entre­vista à Agên­cia Brasil, afir­mou que Mil­lôr “anal­fa­bet­i­zou a min­ha ger­ação com as sessões de Pif Paf e Van Gogo na revista O Cruzeiro em que nun­ca respeitou as nor­mas da semân­ti­ca e da sin­taxe”. Para Carneiro, aque­las sessões era uma refer­ên­cia deli­ciosa para quem foi cri­ança nos anos de 1950 e 1960.

“Cos­tu­mo diz­er que ele tin­ha um proces­sador men­tal inigualáv­el. Suas respostas eram anárquicas e engraçadís­si­mas. Era uma figu­ra mar­avil­hosa, não só pelo int­elec­to, mas tam­bém pela éti­ca, pela retidão int­elec­tu­al. Era um dos caras mais bacanas da história do Brasil”. Ger­al­do Carneiro tra­bal­hou com Mil­lôr Fer­nan­des três vezes, sendo duas para cin­e­ma e uma para teatro. Fiz­er­am dois roteiros em parce­ria, ambos para o cineas­ta Jom Tob Azu­lay. “Foi um tra­bal­ho deli­cioso, emb­o­ra nós dis­cordásse­mos em tudo na vida cotid­i­ana, con­cor­damos em tudo na hora de tra­bal­har jun­tos”. Carneiro adap­tou tam­bém para o teatro uma tradução que Mil­lôr tin­ha feito de Shake­speare da peça A Megera Doma­da. “Tra­bal­hamos jun­tos três vezes. Foi um praz­er imen­so tra­bal­har com ele porque era uma pes­soa de uma cria­tivi­dade e uma capaci­dade de com­preen­são de qual­quer ideia que fos­se lança­da. Enfim, era uma figu­ra muito rara por essa capaci­dade”.

Mil­lôr Fer­nan­des era, con­tu­do, um críti­co fer­ren­ho da Acad­e­mia Brasileira de Letras (ABL). “Ia ficar chatead­ís­si­mo ao saber que alguns ami­gos, como eu e José Paulo Cav­al­can­ti entramos para a ABL. Ia nos tratar com algum despre­zo e muito deboche, com certeza. Ele tin­ha hor­ror de qual­quer insti­tu­ição. Era um icon­o­clas­ta per­feito”, con­cluiu Ger­al­do Carneiro.

Algu­mas fras­es de Mil­lôr se tornaram céle­bres. Entre elas, sele­cionamos algu­mas:

A morte é com­pul­sória, a vida não.

Amor não é coisa para amador.

A vida seria muito mel­hor se não fos­se diária.

O ruim das amizades eter­nas são os rompi­men­tos defin­i­tivos.

Todo homem nasce orig­i­nal e morre plá­gio.

Livrai-me da justiça, que dos malfeitores me livro eu.

Me arran­cam tudo à força e depois me chamam de con­tribuinte.

Pequena biografia

Por des­cui­do dos pais, Mil­lôr Fer­nan­des acabou reg­istra­do quase um ano depois do nasci­men­to, gan­han­do como data ofi­cial o dia 27 de maio de 1924. No ano seguinte, seu pai Fran­cis­co Fer­nan­des morre subita­mente, aos 36 anos de idade, deixan­do sua mãe Maria Vio­la Fer­nan­des viú­va aos 27 anos, com qua­tro fil­hos para cri­ar. Em 1934, perde a mãe para o câncer. Mil­lôr e os irmãos são sep­a­ra­dos. O meni­no, então com 11 anos, vai morar com a avó em um quar­to no fun­do do quin­tal da casa do tio mater­no Fran­cis­co, na Estra­da Nova da Pavu­na.

Fã de histórias em quadrin­hos, copi­a­va quadro por quadro as aven­turas de Flash Gor­don, de auto­ria de Alex Ray­mond. Na opinião do próprio Mil­lôr, essa foi a “maior e mais legí­ti­ma influên­cia” em sua for­mação de humorista e escritor. Estim­u­la­do pelo tio Antônio, envia um desen­ho para o per­iódi­co car­i­o­ca O Jor­nal. O tra­bal­ho é aceito e pub­li­ca­do, lhe ren­den­do 10 mil réis como paga­men­to.

O dia 15 de março de 1938 mar­cou o iní­cio de sua profis­são como jor­nal­ista; foi quan­do pas­sou a tra­bal­har na revista O Cruzeiro. Para for­t­ale­cer os con­hec­i­men­tos para sua car­reira, matricu­lou-se no Liceu de Artes e Ofí­cios do Rio de Janeiro, onde estu­dou entre 1938 e 1942. Aos 17 anos, ado­tou o nome artís­ti­co Mil­lôr Fer­nan­des, graças à pés­si­ma caligrafia do escrivão que trans­for­ma­va o nome Mil­ton em Mil­lôr.

Na revista A Cig­a­r­ra, estre­ou em 1945, sob o pseudôn­i­mo Vão Gogo, a seção O Pif-Paf em parce­ria com o car­tunista Péri­cles. No ano seguinte, lança Eva sem costela — Um livro em defe­sa do homem, assi­nan­do como Adão Júnior. Em 1948, casa-se com Wan­da Rubi­no, com quem teve dois fil­hos: Ivan e Paula. Em 1949, lança o livro Tem­po e Con­tratem­po sob o pseudôn­i­mo Emmanuel Vão Gogo. Pro­duz seu primeiro roteiro cin­e­matográ­fi­co, “Mod­e­lo 19”. Em 1953, estreia sua primeira peça teatral, Uma mul­her em três atos, ence­na­da no Teatro Brasileiro de Comé­dia, em São Paulo.

Em 1957, Mil­lôr expõe seus desen­hos e pin­turas no Museu de Arte Mod­er­na do Rio de Janeiro. A par­tir de 1958, pas­sa a man­ter soz­in­ho a col­u­na O pif-paf, cuja pági­na dupla sem­anal é sem­pre assi­na­da com o pseudôn­i­mo Vão Gogo e suas vari­ações. Isso só deixaria de acon­te­cer em 1962, quan­do ele assume defin­i­ti­va­mente o próprio nome. Em 1960, estreia no Teatro da Praça, no Rio, a peça Um ele­fante no caos, que rende a Mil­lôr o prêmio de “mel­hor autor” da Comis­são Munic­i­pal de Teatro. Em 1964, Mil­lôr dá iní­cio à pub­li­cação de uma col­u­na sem­anal no Diário Pop­u­lar, de Por­tu­gal, em parce­ria que durou dez anos. No ano seguinte, em parce­ria com Flávio Rangel, escreve o musi­cal Liber­dade liber­dade, que estreia no Teatro Opinião, no Rio.

Em 1969, pas­sa de fiel colab­o­rador a uma das prin­ci­pais forças do jor­nal O Pasquim, quan­do grande parte do quadro colab­o­radores foi pre­sa pela ditadu­ra mil­i­tar. Em 1970, com a redação des­fal­ca­da de alguns de seus prin­ci­pais nomes, Mil­lôr e Hen­fil, com a aju­da de Chico Buar­que, Glauber Rocha e Odete Lara, entre out­ros ami­gos, se esforçaram para man­ter em fun­ciona­men­to o jor­nal, que não deixou de cir­cu­lar uma só vez. Mil­lôr aca­ba assu­min­do a presidên­cia do Pasquim em 1972, reor­ga­ni­za as finanças do semanário, salvando‑o da falên­cia, mas decide sair em 1975, sem apoio da equipe. Em 1976, escreve para Fer­nan­da Mon­tene­gro a peça É…, que acabaria se tor­nan­do seu maior suces­so teatral, no Teatro Mai­son de France. Em 1980, Mil­lôr con­hece a jor­nal­ista Cora Rónai, com quem man­te­ria um rela­ciona­men­to pelo resto de sua vida. Comem­o­ra 50 anos de jor­nal­is­mo em 1988. Depois de tra­bal­har para vários jor­nais e revis­tas, adere ao com­puta­dor e lança, em 2000, O Saite Mil­lôr Online, no qual pub­li­ca novos tex­tos e desen­hos e res­ga­ta anti­gos tra­bal­hos. A ini­cia­ti­va, con­sid­er­a­da pio­neira na inter­net brasileira, aca­ba sendo um grande suces­so.

A iro­nia e a sáti­ra que usa­va nos tex­tos para criticar as forças dom­i­nantes tornaram-no alvo da cen­sura. Em fevereiro de 2011, no Rio, sofre um aci­dente vas­cu­lar cere­bral isquêmi­co (AVC). Com a saúde frag­iliza­da, morre em 27 de março de 2012, aos 88 anos de idade, em seu aparta­men­to em Ipane­ma, zona sul do Rio. O cor­po foi cre­ma­do no dia 29, no Cemitério do Caju, zona por­tuária do Rio de Janeiro.

Com pas­sagem mar­cante pelos veícu­los impres­sos mais impor­tantes do país, Mil­lôr é con­sid­er­a­do uma das prin­ci­pais fig­uras da impren­sa brasileira no sécu­lo 20. Tin­ha orgul­ho, por out­ro lado, de sua atu­ação desporti­va, sendo um dos inven­tores do fres­cobol que lançou na pra­ia de Ipane­ma, com alguns ami­gos, em 1958. Em 6 de jul­ho de 2012, foi hom­e­nagea­do com o batismo do Largo do Mil­lôr, entre as pra­ias do Dia­bo e do Arpoador. Em 27 de maio de 2013, gan­hou um ban­co incor­po­ra­do a um mon­u­men­to com sua sil­hue­ta desen­ha­da por Chico Caru­so e bati­za­do de O Pen­sador de Ipane­ma.

Um ano depois da morte de Mil­lôr, seu fil­ho Ivan divid­iu o acer­vo deix­a­do pelo pai em três partes. Os mais de 120 livros pas­saram para a agente literária Lucia Riff; a pro­dução teatral ficou a car­go da Asso­ci­ação Brasileira de Músi­ca e Artes (Abra­mus); enquan­to as ilus­trações e arquiv­os pes­soais foram trans­feri­dos para o Insti­tu­to Mor­eira Salles (IMS).

Amizade

Em tex­to escrito por Fer­nan­da Mon­tene­gro e pub­li­ca­do em seu livro foto­bi­ográ­fi­co, em 2018, a atriz hom­e­nageia o ami­go de lon­ga data:

“Mil­lôr: retra­to 3X4
Cora­josa­mente à maneira do próprio.

Mil­lôr, duas sílabas fortes, descon­cer­tantes e gen­tis, cuja rima pode ser flor e tam­bém dor. Os olhos eram de águia, mas, tam­bém de pin­tas­sil­go, col­ib­ri, sabiá.

A expressão ver­bal adquiria nele a força do sub­stan­ti­vo. Por isso, a palavra lhe vin­ha sem­pre mul­ti­di­vi­di­da em pun­hais.

Des­gar­ra­do de toda e qual­quer ger­ação, flu­tu­a­va aci­ma daque­la em que vivia, nes­sa ter­ra de ninguém, onde é perigoso estar só e, mais perigoso ain­da, acom­pan­hado.

Seu ato de viv­er tin­ha todas as dúvi­das cer­tas. E era um ser míti­co para nós que difi­cil­mente e aparente­mente lhe con­hecíamos a essên­cia. A quem o fre­quen­ta­va regatea­va o aplau­so fácil porque sem­pre bus­cou, nos desvãos dessa não tro­ca, a ver­dade do gesto, da palavra e da fini­tude.

Esmi­uça­va os con­trastes e aceita­va com­bat­i­va­mente as vac­ilações dos que abdicam.

Esto­ico diante da glória, “que não fica, não ele­va, não hon­ra nem con­so­la”, resis­tiu sem­pre a toda e qual­quer apo­teose, emb­o­ra, com toda justiça, a ambi­cionasse.

Como lem­brança de uma dura infân­cia de meni­no órfão, no seu medo, jamais se aco­var­dou. Seu ros­to guar­da­va recor­dações que a memória luta­va para não esque­cer. Acred­i­ta­va no peri­go da ausên­cia, por isso, sem­pre esta­va e nun­ca fica­va. Sua opção era ain­da estar vivo quan­do o ulti­mo res­pi­rasse. Não acred­i­ta­va em Deus, mas, tin­ha com Ele exces­si­va intim­i­dade e nes­sa não fé, tran­scen­den­do, con­seguiu chegar aos con­clu­sivos 88 ou 89 anos em pouquís­si­mos segun­dos, o que lamen­ta­mos, lamen­ta­mos, lamen­ta­mos.

Era visív­el que Mil­lôr esteve sem­pre prepara­do para o Grande Dia. Algu­mas decisões tomadas: a de mor­rer, olhan­do o sol no hor­i­zonte. A de sem­pre brin­car de Deus como uma cri­ança. A de abso­lu­ta­mente só crer no des­ti­no. E no final, como um cigano ou um poeta, escu­tar para sem­pre o silen­cio na luz abso­lu­ta”. Assi­na­do: Fer­nan­da Mon­tene­gro.

Edição: Valéria Aguiar

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