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Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, mostram entidades

Repro­dução: © Hemorio/Divulgação

Eventos em Brasília discutem problemas causados pela doença


Pub­li­ca­do em 19/06/2023 — 07:25 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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Ele insis­tiu, per­tur­bou, implor­ou. Elvis Mag­a­l­hães, de 21 anos, não iria desi­s­tir. Esta­va inter­na­do no Hos­pi­tal Uni­ver­sitário de Brasília (HUB), por causa da ane­mia fal­ci­forme, e não deixou em paz a médi­ca até que ela per­mi­tisse que ele fos­se para o show da ban­da favorita, a Legião Urbana, naque­le 18 de jun­ho de 1988 (há 35 anos), no Está­dio Mané Gar­rin­cha, com cer­ca de 50 mil pes­soas.

Mas a apre­sen­tação ter­mi­nou em con­fusão e antes do tem­po pre­vis­to. O jovem goiano rad­i­ca­do em Brasília, e com nome de astro do rock, saiu encol­hi­do. Teve medo. Além da situ­ação, sen­tia as dores no cor­po cau­sadas pela doença. Mas não se arrepende. “Nem foi tem­po per­di­do. Somos tão jovens”, can­tou Rena­to Rus­so para ale­gria de Elvis.

Elvis tam­bém que­ria can­tar, se diver­tir. “A músi­ca da min­ha vida é aque­la. Quem acred­i­ta sem­pre alcança” (Mais uma vez, da Legião Urbana). Além das lem­branças do show, jun­ho virou um mês forte para ele por out­ro moti­vo. O dia 19 viria a ser, a par­tir de 2008, o da con­sci­en­ti­za­ção mundi­al sobre a doença fal­ci­forme. Jun­ho virou mês de can­tar mais alto.

Brasília (DF) - Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, Elvis com seu irmão Elder. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Repro­dução: Brasília (DF) — Ane­mia fal­ci­forme foi invis­i­bi­liza­da pelo racis­mo, Elvis com seu irmão Elder. Foto: Arqui­vo pessoal/Divulgação — Arqui­vo pessoal/Divulgação

Elvis faz o som ir longe con­tra o racis­mo (a maior parte dos pacientes é negra) e tam­bém a invis­i­bil­i­dade que, segun­do ele e out­ras pes­soas con­sul­tadas pela Agên­cia Brasil, com­pro­m­e­tem o atendi­men­to no sis­tema públi­co.

O ativista e coor­de­nador cien­tí­fi­co da Fed­er­ação Nacional das Asso­ci­ações de Pes­soas com Doença Fal­ci­forme (Fenafal) foi o paciente mais vel­ho do Brasil a rece­ber o trans­plante de medu­la óssea para se curar da doença.

ane­mia fal­ci­forme tem car­ac­terís­ti­ca hered­itária (pode pas­sar de pais para fil­hos, se ambos os gen­i­tores tiverem o traço da doença). Ocorre por causa de uma mutação genéti­ca, com a alter­ação no for­ma­to das hemá­cias (for­ma­to de meia-lua ou foice).

Isso gera um prob­le­ma na pro­dução da hemo­glo­bi­na, pro­teí­na que dá a cor ver­mel­ha ao sangue e é respon­sáv­el por trans­portar o oxigênio pelo cor­po. A doença ocorre por lesões vas­cu­lares e anor­mal­i­dade na coag­u­lação. Entre os sin­tomas, dores fortes pelo cor­po e cansaço.

Transplante

Hoje, aos 56, o ex-relo­joeiro diz que nun­ca deixou de acred­i­tar e insi­s­tir com out­ras pes­soas na luta con­tra a doença, que causa dores fortes e que pode levar à morte. Após “cen­te­nas de inter­nações”, ele foi cura­do graças a um trans­plante de medu­la óssea (mais tarde tam­bém pre­cisou rece­ber um fíga­do).

Elvis pede políti­cas públi­cas e denun­cia que a doença é invis­i­bi­liza­da pelo racis­mo estru­tur­al. “A doença foi diag­nos­ti­ca­da há mais de um sécu­lo e só foi avançar nas políti­cas públi­cas em 2005”, afir­ma.

Impacto

A médi­ca Joice Aragão de Jesus, coor­de­nado­ra de Sangue e Hemod­eriva­dos do Min­istério da Saúde, tam­bém entende que a história do cuida­do com a doença mostra que o prob­le­ma não gan­hou a atenção dev­i­da em vista de os pacientes serem da pop­u­lação negra e de maior vul­ner­a­bil­i­dade.

“O racis­mo insti­tu­cional é um proces­so sutil na pop­u­lação brasileira. Isso tem impacto tam­bém na qual­i­dade da assistên­cia presta­da a essa pop­u­lação”.

Ela diz que até 2005 não exis­ti­am pro­to­co­los no Sis­tema Úni­co de Saúde (SUS), com ori­en­tação de trata­men­tos. “Naque­le ano foi pub­li­ca­da a primeira por­taria crian­do a Políti­ca Nacional de Atenção Inte­gral às pes­soas com Doença Fal­ci­forme”.

Daí em diante, foram esta­b­ele­ci­dos pro­to­co­los de trata­men­to de cuida­dos na rede de hemo­cen­tros. “De 2005 a 2015, hou­ve par­tic­i­pação e real­iza­ção de sim­pó­sios inter­na­cionais e nacionais. Então a doença gan­hou mais vis­i­bil­i­dade den­tro da emergên­cia dos hos­pi­tais e nos ambu­latórios”.

Ela con­sid­era que, nos últi­mos anos, hou­ve uma desati­vação de políti­cas públi­cas e menos ativi­dades de capac­i­tação e pesquisa. “De fato, há um impacto não só pela pan­demia. Hou­ve um arrefec­i­men­to nas ativi­dades ref­er­entes às políti­cas públi­cas”.

A médi­ca diz que o atu­al pro­gra­ma é uma refer­ên­cia como políti­ca de qual­i­dade den­tro do SUS.

“Nós tive­mos uma pro­jeção inter­na­cional em coop­er­ação com país­es da África, por exem­p­lo (leia mais aqui sobre o tema). Ago­ra, esta­mos retoman­do. A ciên­cia tem pos­si­bil­i­ta­do mel­ho­ria na qual­i­dade de vida. Nós mudamos a história nat­ur­al da doença, que era de mor­rer até os cin­co anos de idade”.

Pouca divulgação

A cien­tista social Maria Renó Soares, coor­de­nado­ra da Fed­er­ação Nacional das Asso­ci­ações de Pes­soas com Doença Fal­ci­forme (Fenafal), que reside em Belo Hor­i­zonte (MG), lamen­ta a baixa vis­i­bil­i­dade da enfer­mi­dade. “Mes­mo sendo a doença hered­itária com maior prevalên­cia no Brasil, pouco se fala. Por ser preva­lente na pop­u­lação negra, é pouco divul­ga­da. A gente ain­da tem mui­ta difi­cul­dade de aces­so ao trata­men­to. E isso se dá dev­i­do ao racis­mo”, avalia.

Brasília (DF) - Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, Maria Soares Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Repro­dução: Brasília (DF) — Ane­mia fal­ci­forme foi invis­i­bi­liza­da pelo racis­mo, Maria Soares Foto: Arqui­vo pessoal/Divulgação — Arqui­vo pessoal/Divulgação

Ela expli­ca que há uma esti­ma­ti­va de mais de 100 mil pes­soas com a doença — “95% das pes­soas com a doença são negras e a maio­r­ia é ben­efi­ciária do Bol­sa Família. A maior difi­cul­dade é de aces­so ao trata­men­to, às med­icações, às novas tec­nolo­gias. Prin­ci­pal­mente no que diz respeito à urgên­cia e emergên­cia”.

A cien­tista social lamen­ta que  a mor­tal­i­dade pela doença no Brasil ain­da é muito alta. “Há sobre­v­i­da de pes­soas de até 42 anos e a morte de mais de 30 mil pes­soas por ano no Brasil, que pode­ri­am ser evi­tadas se tivessem aces­so ao trata­men­to ade­qua­do”.

Um dos medica­men­tos uti­liza­dos é a hidrox­i­ureia, de alto cus­to e que deve ser dis­tribuí­do pelos poderes públi­cos. A coor­de­nado­ra da Fenafal diz que uma deman­da impor­tante é a autor­iza­ção para que o Min­istério da Saúde autor­ize o remé­dio já fra­ciona­do para a cri­ança, a fim de evi­tar que haja a manip­u­lação incor­re­ta do medica­men­to a par­tir do mes­mo remé­dio dado ao adul­to.

Uma políti­ca públi­ca impor­tante foi a pos­si­bil­i­dade de o Teste de Pez­in­ho poder faz­er o diag­nós­ti­co pre­coce. Isso pode sal­var a vida da cri­ança, já que o trata­men­to pode ser ini­ci­a­do mais cedo.

Indicação do transplante

No caso de Elvis, os pais desco­bri­ram a doença quan­do ain­da era cri­ança. Ele con­viveu com dores indefiníveis e incon­táveis inter­nações demor­adas. O prob­le­ma só foi resolvi­do com o trans­plante de medu­la óssea. Ele foi um dos primeiros casos no Brasil. “Fui indi­ca­do porque tin­ha mui­ta crise de dor. Em 2005, fez o pro­ced­i­men­to na Fac­ul­dade de Med­i­c­i­na da Uni­ver­si­dade de São Paulo, na cidade de Ribeirão Pre­to (SP).

Para realizar o trans­plante, ele desco­briu que o irmão, Elder, qua­tro anos mais novo (que não tin­ha a doença) era 100% com­patív­el. Atual­mente, o coor­de­nador cien­tí­fi­co da enti­dade de paciente com a doença expli­ca que o pro­ced­i­men­to tem sido feito até com com­pat­i­bil­i­dade de 50% entre paciente e doador.

Elvis tin­ha 38 anos de idade quan­do se sub­me­teu ao pro­ced­i­men­to para colo­car fim às crises em que pre­cisa­va até de mor­fi­na para amenizar a dor. Out­ra ter­apia que o relo­joeiro desco­briu foi escr­ev­er. Fez uma auto­bi­ografia: Qua­tro décadas de lua min­guante.

Pági­nas espe­ci­ais são ded­i­cadas ao irmão. “Nun­ca briguei na vida com ele. Sem­pre foi um ami­go. Tin­ha certeza de que ele era com­patív­el”. O irmão, Elder, sabe que Elvis faria o mes­mo por ele se pre­cisas­se. “Foi emo­cio­nante quan­do soube que pode­ria ajudá-lo”.

No Dis­tri­to Fed­er­al, por exem­p­lo, o hemo­cen­tro cadas­trou, durante o ano de 2023, 26.510 doadores de sangue. Já as pes­soas cadastradas no ban­co de doadores de medu­la óssea foram 1.283 pes­soas. Cabe ao hemo­cen­tro “o fornec­i­men­to de todos os hemo­com­po­nentes necessários para as trans­fusões deman­dadas no trata­men­to dos pacientes com doença fal­ci­forme”.

A Fun­dação Hemo­cen­tro expli­ca que o can­dida­to à doação pode col­her sangue e se cadas­trar como doador de medu­la óssea no mes­mo dia. “Nesse caso, bas­ta agen­dar a doação e, no dia do atendi­men­to, infor­mar logo na primeira eta­pa que tam­bém dese­ja se cadas­trar como doador de medu­la”, esclare­ceu a enti­dade em nota.

Diagnóstico precoce

Se Elvis é do rock, o servi­dor públi­co paraibano Dal­mo Oliveira, de 56 anos, nasci­do em Guara­bi­ra e rad­i­ca­do em João Pes­soa, apre­cia o for­ró e as fes­tas de São João, que ocor­rem nes­ta época do ano prin­ci­pal­mente em Camp­ina Grande (PB). Ele é da Asso­ci­ação Paraibana dos Por­ta­dores de Ane­mias Hered­itárias e foi diag­nos­ti­ca­do com a doença quan­do era cri­ança.

Brasília (DF) - Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, Dalmo Oliveira Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Repro­dução: Brasília (DF) — Ane­mia fal­ci­forme foi invis­i­bi­liza­da pelo racis­mo, Dal­mo Oliveira Foto: Arqui­vo pessoal/Divulgação — Arqui­vo pessoal/Divulgação

“Só desco­b­ri­mos porque min­ha mãe me lev­ou para faz­er exam­es em João Pes­soa. A min­ha sorte é que o diag­nós­ti­co foi bem pre­coce para aque­le momen­to. E isso me salvou e me deu uma qual­i­dade de vida até hoje”. O trata­men­to lim­i­ta­va-se à trans­fusão de sangue. Lem­bra-se que pre­cisou faz­er trans­fusão de sangue até os 15 anos de idade. As crises foram dimin­uin­do à medi­da que foi envel­he­cen­do. E resolveu depois aju­dar pes­soas que enten­di­am pouco sobre a doença.

“Como a doença atinge mais forte­mente a pop­u­lação negra, existe ain­da hoje uma neg­ligên­cia. Nos esta­dos brasileiros onde a pop­u­lação negra é mais pre­sente, a doença tam­bém é mais pre­sente. Mes­mo assim, a gente ain­da encon­tra médi­cos e enfer­meiros desin­for­ma­dos sem saber como tratar o paciente que chega à unidade”.

Ele diz que cobra muito das autori­dades médi­cas que pro­por­cionem e con­sci­en­tizem sobre o acon­sel­hamen­to genéti­co para casais que pre­ten­dem ter filhos.“Um exame de sangue sim­ples, que é a eletro­forese da hemo­glo­bi­na, gra­tui­ta pelo SUS, pode iden­ti­ficar se os pais car­regam genes com pos­si­bil­i­dade de ter um fil­ho com a doença”. Dal­mo tem cin­co fil­hos. Nen­hum deles tem a ane­mia fal­ci­forme.

Eventos em Brasília

Para pro­por­cionar mais con­hec­i­men­to sobre a doença, o Min­istério da Saúde pro­move, nes­ta segun­da-feira (19), em Brasília, qua­tro palestras, das 9h às 12h, com profis­sion­ais de saúde espe­cial­is­tas no tema. O encon­tro será no auditório PO 700, na Aveni­da W5.

No dia 22 (quin­ta-feira), no mes­mo local, a coor­de­nação da Fenafal pro­move sem­i­nário nacional, das 13h às 17h, e uma audiên­cia públi­ca no Sena­do, de man­hã (a par­tir das 9h). O tele­fone para infor­mações é o (31) 99199.6985.

Edição: Graça Adju­to

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