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Apesar de lei, direito de brincar não é plenamente garantido no país

Repro­dução: © Val­ter Cam­pona­to / ABR

Sociedade precisa respeitar o tempo da infância, defende especialista


Pub­li­ca­do em 12/10/2023 — 08:28 Por Bruno de Fre­itas Moura — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Des­de o fim do mês pas­sa­do, a nova sede da Cen­tral Úni­ca das Fave­las (Cufa) no Com­plexo da Pen­ha – região que reúne 13 fave­las na zona norte do Rio de Janeiro – é uma alter­na­ti­va para ativi­dades de laz­er para a pop­u­lação, incluin­do as cri­anças, que encon­tram lá um espaço para brin­cadeiras.

No entan­to, no começo des­ta sem­ana, fre­quen­tar o local não era mais uma coisa triv­ial. O moti­vo é que, na segun­da-feira (9), começou uma mega­op­er­ação da polí­cia à procu­ra de crim­i­nosos, o que des­en­co­ra­ja pais e respon­sáveis de sair de casa com os fil­hos. Assim, o dia da brin­cadeira ficou para out­ra ocasião.

Em out­ra parte da cidade, tam­bém na zona norte, o motorista Ander­son Var­gas encon­tra difi­cul­dades para levar os fil­hos, de 2 e 7 anos, para brin­car. Ele con­ta que em uma das prac­in­has per­to de casa, “os brin­que­dos são precários, mui­ta das vezes que­bra­dos”. Em out­ra, “cachor­ros estão sem­pre na praça, rouban­do espaço de brin­cadeira das cri­anças”.

Crianças brincam no Parque Estadual da Água Branca, na Barra Funda.
Repro­dução: Estatu­to diz que cri­ança têm dire­ito de “brin­car”. Foto:  Rove­na Rosa/Agência Brasil

Declaração

Os dois exem­p­los, mais do que uma fal­ta de opor­tu­nidade, são uma vio­lação de um dire­ito garan­ti­do a todas as cri­anças, o de brin­car. O Arti­go 16 do Estatu­to da Cri­ança e do Ado­les­cente (ECA), de 1990, diz que a cri­ança e o ado­les­cente têm dire­ito de “brin­car, praticar esportes e diver­tir-se”.

Indo além, a Con­sti­tu­ição de 1988, em seu Arti­go 227, impõe que “é dev­er da família, da sociedade e do Esta­do asse­gu­rar à cri­ança e ao ado­les­cente, com abso­lu­ta pri­or­i­dade, o dire­ito à vida, à saúde, à ali­men­tação, à edu­cação, ao laz­er”.

A garan­tia do dire­ito de a cri­ança brin­car está expres­sa tam­bém na Declar­ação Uni­ver­sal dos Dire­itos da Cri­ança, da Orga­ni­za­ção das Nações Unidas (ONU), de 1959. O Princí­pio 7º deter­mi­na que “a cri­ança terá ampla opor­tu­nidade para brin­car e diver­tir-se”.

Saúde e desenvolvimento

Não é à toa que esse dire­ito está crava­do na leg­is­lação. Neste Dia das Cri­anças (12), a médi­ca Eve­lyn Eisen­stein, coor­de­nado­ra do grupo de tra­bal­ho em Saúde Dig­i­tal da Sociedade Brasileira de Pedi­a­tria, expli­ca que “brin­cadeira é um dire­ito de saúde”.

“A cri­ança desen­volve as suas habil­i­dades, não só de coor­de­nação e autono­mia, mas as habil­i­dades do desen­volvi­men­to neu­rop­si­co­mo­tor. Ela vai se tor­nan­do inde­pen­dente à medi­da que aprende a cor­rer, pular, saltar, brin­car de roda, brin­car em uma equipe, com os ami­gos, aprende a gan­har a perder, expli­cou à Agên­cia Brasil.

“Ela ati­va os mecan­is­mos hor­mon­ais. A brin­cadeira é um ele­men­to saudáv­el, inclu­sive da saúde men­tal das cri­anças e ado­les­centes.”

Brincadeira de criança
Repro­dução: Adul­tos pre­cisam enten­der a importân­cia do brin­car. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agênciia Brasil

A coor­de­nado­ra da sec­re­taria exec­u­ti­va da ONG Aliança pela Infân­cia, Leti­cia Zero, com­ple­men­ta que, ao brin­car, a cri­ança aprende a lidar com frus­tações, tol­erân­cia e diver­si­dade. “O brin­car é a expressão mais genuí­na”, diz.

A Aliança pela infân­cia foi cri­a­da para faz­er esse dire­ito se espal­har por várias partes do país e class­es soci­ais.

Uma das ini­cia­ti­vas é a difusão da Sem­ana da Infân­cia e Cul­tura de Paz, ini­ci­a­da na segun­da-feira (9) e que vai até o domin­go (15).

Barreiras do brincar

Ape­sar de tan­to incen­ti­var o livre brin­car, Leti­cia con­hece bem as bar­reiras que as cri­anças brasileiras enfrentam para faz­er valer essa neces­si­dade. O primeiro obstácu­lo a ser cita­do é o viven­ci­a­do pelos moradores do Com­plexo da Pen­ha, grandes cidades e áreas de per­ife­ria: a vio­lên­cia urbana. “Muitas vezes os espaços não são seguros para que a cri­ança vá brin­car.”

Leti­cia acres­cen­ta out­ros fatores à lista, como a zelado­ria e con­ser­vação de equipa­men­tos públi­cos. Ela dá o exem­p­lo de praças com mato alto, brin­que­dos que­bra­dos e calça­men­tos irreg­u­lares que expõem ao risco de aci­dentes. Ou sim­ples­mente a inex­istên­cia de prac­in­has em algu­mas regiões.

A coor­de­nado­ra da ONG desta­ca prob­le­mas como aces­si­bil­i­dade, tan­to ao tornar o local inad­e­qua­do para cri­anças com defi­ciên­cia, quan­to o deslo­ca­men­to dos pais ao local em si. “Muitas vezes você tem jor­nadas de trans­porte que demor­am muito tem­po e cus­tam din­heiro para chegar em um espaço onde a cri­ança pode brin­car.”

Uma pesquisa divul­ga­da terça-feira (10) pelo Fun­do das Nações Unidas para a Infân­cia (Unicef) apon­ta que 60% das cri­anças e ado­les­centes brasileiros tin­ham algu­ma pri­vação de dire­itos, como mora­dia, sanea­men­to, edu­cação e ren­da. Isso rep­re­sen­ta quase 32 mil­hões de pes­soas.

Consequências

“Cri­ança que não brin­ca é uma cri­ança doente”, com­para Eve­lyn Eisen­stein, da Sociedade de Pedi­a­tria. “Ela fica deprim­i­da, iso­la­da, vai fican­do seden­tária.” Pro­va de que a neces­si­dade de brin­car é tão essen­cial é que nos hos­pi­tais há espaço para brin­que­dote­cas, cita a médi­ca. O mes­mo vale para as esco­las. Ao mes­mo tem­po em que dão o ensi­no obri­gatório, ofer­e­cem o tem­po que, para muitas cri­anças, é a mel­hor coisa do dia de aula: a hora do recreio.

“Quan­do a cri­ança tem o aces­so ao brin­car prej­u­di­ca­do ou nega­do, ela deixa de se desen­volver”, acres­cen­ta Leti­cia Zero.

Ander­son percebe clara­mente as mudanças no com­por­ta­men­to dos fil­hos quan­do não brin­cam como dev­e­ri­am. Ele nota que os fil­hos estran­ham a inter­ação com out­ras cri­anças, ficam agi­ta­dos e dormem mal.

“Seria óti­mo se tivesse um lugar onde eles pudessem gas­tar ener­gia e faz­er ativi­dades com out­ras cri­anças. Quan­do eles fazem isso, eles dormem mel­hor, ficam real­iza­dos, com as car­in­has de muito felizes”, afir­ma o pai.

Busca de soluções

Para a coor­de­nado­ra Letí­cia, a  for­ma de faz­er com que as brin­cadeiras sejam cada vez mais acessíveis às cri­anças pas­sam por ini­cia­ti­vas do poder públi­co, da sociedade e dos próprios pais ou respon­sáveis.

Um exem­p­lo que a gesto­ra da ONG cita é a reg­u­la­men­tação de leis, como a da existên­cia de brin­que­dote­cas em hos­pi­tais. Ela con­sid­era que algu­mas são deca­dentes e não cumprem o propósi­to.

Aa garan­tia de brin­car, segun­do a coor­de­nado­ra, não deve ser trata­da como políti­ca especí­fi­ca, dire­ciona­da para cri­anças ape­nas. Um exem­p­lo que ela sug­ere seria “uma políti­ca públi­ca que favoreça o trans­porte urbano em grandes cidades, de for­ma que os pais não fiquem duas horas para ir e voltar do emprego e pos­sam ter um tem­po de qual­i­dade com a cri­ança em casa”.

Além de mais zelado­ria para equipa­men­tos públi­cos e inte­gração dess­es locais com a natureza, ela propõe a visão de que, mes­mo lugares que não são especí­fi­cos exclu­si­va­mente para cri­anças pre­cisam ter um espaço para brin­cadeiras, por exem­p­lo, em salas de espera de unidades bási­cas de saúde e serviços públi­cos de atendi­men­to à pop­u­lação.

Peque­nas e sim­ples ativi­dades cotid­i­anas tam­bém devem ser vis­tas pelos pais e respon­sáveis como opor­tu­nidades de brin­cadeiras para as cri­anças, segun­do a rep­re­sen­tante da ONG. “Enten­der que brin­car não é uma ativi­dade que só que vai acon­te­cer em um perío­do cur­to, especí­fi­co”, ressalta.

“Qual­quer ativi­dade que a gente faça, seja levan­do a cri­ança para cam­in­har, para ir na padaria, ela vai quer­er subir e descer das ramp­in­has, pular degraus”, exem­pli­fi­ca. É pre­ciso, de acor­do com Leti­cia, enten­der que cri­ança não se com­por­ta como adul­to. “A cri­ança pre­cisa poder se expres­sar livre­mente o tem­po todo”, diz. “Os adul­tos pre­cisam enten­der essa importân­cia do brin­car. É pre­ciso reen­can­tar o olhar do adul­to para a cri­ança.”

Recomendações

Ape­sar da importân­cia do ato de brin­car, pais e respon­sáveis pre­cisam saber impor lim­ites quan­do se tra­ta de entreten­i­men­to por meio de telas, adverte a pedi­atra Eve­lyn Eisen­stein.

“Uso exces­si­vo pre­coce e pro­lon­ga­do dos videogames, tele­visão e qual­quer tipo de tela é prej­u­di­cial à saúde das cri­anças e ado­les­centes. Ela fica fazen­do uma dis­tração pas­si­va”, aler­ta.

Crianças assistem vídeos em celulares conectados no programa “Wi-fi na Praça”
Repro­dução: Cri­anças assis­tem vídeos em celu­lares — Isac Nobrega/ PR

Essa “epi­demia” das telas começa a ser trata­da por políti­cas públi­cas.

Na terça-feira (10), o gov­er­no fed­er­al lançou uma con­sul­ta públi­ca para a elab­o­ração de um guia com ori­en­tações para o uso de telas e dis­pos­i­tivos dig­i­tais por cri­anças e ado­les­centes. A con­sul­ta é aber­ta a toda a sociedade e ficará disponív­el por 45 dias na platafor­ma Par­tic­i­pa + Brasil.

Out­ro cuida­do que a médi­ca da SBP ori­en­ta é em relação a clas­si­fi­cação etária e indica­ti­va de brin­que­dos e fontes de entreten­i­men­to como filmes e vídeos. “As brin­cadeiras devem ser de acor­do com a maturi­dade de cada cri­ança”, ori­en­ta.

A ade­quação dos brin­que­dos em prac­in­has públi­cas é mais um pon­to que deve ser mais ade­qua­do, de acor­do com Leti­cia Zero. “Par­ques estão acessíveis para cri­anças a par­tir de três, qua­tro anos. Onde ficam os bebês, onde brin­cam as cri­anças com menos de três anos?”, per­gun­ta. “Qual­i­ficar os espaços para as cri­anças peque­nas e para os bebês tam­bém é muito impor­tante”.

Leti­cia defende que o tem­po da infân­cia seja respeita­do. “A cri­ança vai ser cri­ança por 12 anos. É um tem­po muito cur­to e ele é fun­da­men­tal. Os proces­sos de desen­volvi­men­to que acon­te­cem durante esse perío­do são fun­da­men­tais para dig­nidade dessa pes­soa.”

Para ela, uma lição deve ser apren­di­da com as comu­nidades indí­ge­nas. “Um indí­ge­na nun­ca per­gun­ta o que a cri­ança vai ser quan­do crescer, porque ele sabe que a cri­ança já é tudo que ela pre­cisa ser ago­ra. Então a gente pre­cisa garan­tir os dire­itos da cri­ança. Ela pre­cisa poder exercer a sua infân­cia ago­ra.”

Edição: Maria Clau­dia

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