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Artistas amazônicos usam versos, danças e corpos em defesa da floresta

Escritor Tiago Hakiy vê a poesia como um instrumento político

Rafael Car­doso* — Envi­a­do espe­cial
Pub­li­ca­do em 14/01/2025 — 07:35
Man­aus
Rio de Janeiro (RJ) 13/01/2025 - Tiago Hakiy poeta amazônico - Artistas amazônicos usam versos, danças e corpos na defesa da floresta Foto: Tiago Hakiy/Arquivo pessoal
Repro­dução: © Tia­go Hakiy/Arquivo Pes­soal

“A aldeia toda se incen­deia / Na man­hã de sol na flo­res­ta. / Tem peixe assan­do na fogueira / E suco de cupu para com­ple­tar a fes­ta.” Os ver­sos escritos por Tia­go Hakiy (foto de destaque), poeta e escritor indí­ge­na, per­mitem que o leitor entre no coração da flo­res­ta amazôni­ca e se sin­ta parte dela. Durante alguns instantes, somos parte da fes­ta, dançamos, prova­mos peix­es e sucos típi­cos da região. O tre­cho aci­ma faz parte do livro Abecedário Poéti­co da Flo­res­ta, lança­do em novem­bro. A obra tan­to apre­sen­ta os seg­re­dos da cul­tura para os lei­gos como acol­he os espíri­tos locais.

“Na esco­la, eu sem­pre encon­trei livros que não tin­ham nada a ver com a min­ha real­i­dade. Eles falavam sobre tubarão e eu nun­ca vi tubarão. Falavam de fru­tas, como maçã e moran­go, que eu nun­ca tin­ha comi­do. Sobre peix­es que não eram parte da nos­sa fau­na amazôni­ca. Eu se me sen­tia per­di­do nes­sa lit­er­atu­ra. Quan­do escre­vo hoje, pen­so nos meni­nos e nas meni­nas nasci­dos no meio dos rios e flo­restas, que andam de canoa. Para que eles pos­sam se iden­ti­ficar com a própria real­i­dade”, diz o poeta.

Nem sem­pre os escritos de Tia­go Hakiy seguiram esse cam­in­ho. Per­ten­cente ao povo sateré-mawé, ele nasceu na comu­nidade Fregue­sia do Andirá, no municí­pio de Bar­reir­in­ha, no Ama­zonas, longe de espaços edi­to­ri­ais e grandes cen­tros urbanos. Aos 6 anos de idade, um escritor foi até a comu­nidade e o aju­dou a con­hecer o uni­ver­so dos livros. Aos 19 anos, se mudou para Man­aus, onde entrou na uni­ver­si­dade e teve a pos­si­bil­i­dade de lançar o primeiro livro de poe­sias.

Os ver­sos ini­ci­ais não falavam da real­i­dade cul­tur­al dele e do povo indí­ge­na. Eram poe­mas mais idíli­cos. Tudo mudou quan­do ele encon­trou o escritor Daniel Munduruku, um pre­cur­sor da lit­er­atu­ra indí­ge­na no Brasil.

Brasília (DF), 05/01/2025 - Artista e poeta da Amazônia, Tiago Hakiy. Foto: Tiago Hakiy/Arquivo Pessoal
Repro­dução: O poeta indí­ge­na Tia­go Hakiy tem 17 obras pub­li­cadas — Tia­go Hakiy/Arquivo Pes­soal

“Ele me disse assim: ‘Tia­go, por que você não escreve sobre o teu povo e a tua origem? Se nós não con­tin­uar­mos escreven­do sobre nos­sos povos, o apaga­men­to cul­tur­al vai con­tin­uar acon­te­cen­do’. Ele me instigou a remem­o­rar toda a min­ha ances­tral­i­dade. E a par­tir daí a poe­sia pas­sou a destacar nos­sa riqueza como indí­ge­nas da Flo­res­ta Amazôni­ca, nos­sas tro­cas e cuida­dos com ela, que é tudo para nós. Ela nos dá ali­men­to, mora­dia, cam­in­hos e inspi­rações”, lem­bra Tia­go Hakiy.

O poeta indí­ge­na tem hoje 44 anos e 17 obras pub­li­cadas. E par­tic­i­pações em diver­sas antolo­gias, as quais ele val­oriza muito, por enten­der que o tra­bal­ho cole­ti­vo é uma car­ac­terís­ti­ca impor­tante das comu­nidades indí­ge­nas. Foi com a antolo­gia Apy­ta­ma, orga­ni­za­da por Kaká Werá, que ele venceu, cole­ti­va­mente, o Prêmio Jabu­ti na cat­e­go­ria Livro Juve­nil.

“Os povos indí­ge­nas são fru­tos da oral­i­dade. Eu nasci ouvin­do histórias dos mais vel­hos. Nat­u­ral­mente, a gente aprende a con­tar histórias que a gente ouve des­de cri­ança, e essas histórias são um instru­men­to de apren­diza­gem, não só de entreten­i­men­to. São uma for­ma de ensi­nar e de trans­mi­tir con­hec­i­men­to”, desta­ca o escritor indí­ge­na.

Tia­go Hakiy tam­bém entende hoje a poe­sia como um instru­men­to políti­co, capaz de ger­ar empa­tia de out­ras pes­soas e enga­já-las na luta pelos dire­itos dos povos indí­ge­nas e pela preser­vação da flo­res­ta.

“A lit­er­atu­ra serve como uma ban­deira para que as pes­soas pos­sam nos con­hecer mel­hor. Nos­sas cul­tura e tradição, que não são nem mel­hores, nem piores. Ape­nas difer­entes. E nós quer­e­mos ser ouvi­dos, com­preen­di­dos e respeita­dos”, diz. “Quer­e­mos que essas pes­soas tam­bém cui­dem dos nos­sos rios, das nos­sas árvores, dos nos­sos pás­saros. Por isso que, quan­do nós cla­mamos pela preser­vação da flo­res­ta, sabe­mos da importân­cia dela não só para o Brasil, mas para todo o plan­e­ta. Pre­cisamos que todos ten­ham esse olhar de sen­si­bil­i­dade para as pes­soas que moram den­tro da flo­res­ta.”

Festival Parintins

Jun­ho é mês de fes­ta na Amazô­nia. Em Par­intins, esta­do do Ama­zonas, quase divisa com o Pará, o Bum­bó­dro­mo recebe os des­files do bois Capri­choso e Garan­ti­do. É o due­lo do azul e do ver­mel­ho, que dura três noites. O espetácu­lo se desta­ca pelas cores, luzes, ves­ti­men­tas, adereços, danças e músi­cas. Mas os impactos não são ape­nas estéti­cos e sen­so­ri­ais.

“Os dois bois vêm trazen­do men­sagens impor­tantes, como a emergên­cia da crise climáti­ca, o foco na Amazô­nia, a preser­vação dos povos tradi­cionais. Tudo isso tem que estar inseri­do no fes­ti­val”, expli­cou Mar­ciele Albu­querque, indí­ge­na do povo Munduruku e cun­hã-poran­ga do Boi Capri­choso, durante o TEDxA­m­azô­nia 2024, even­to real­iza­do entre o final de novem­bro e o iní­cio de dezem­bro, em Man­aus.

Segun­do a tradição, a cun­hã-poran­ga é “moça boni­ta, guer­reira e guardiã, que expres­sa a força através da beleza”. Ela é avali­a­da pelos jura­dos em critérios como beleza, sim­pa­tia, roupas e movi­men­tos. Mas Mar­ciele garante que os atrib­u­tos dela no fes­ti­val vão muito além de ser uma mul­her boni­ta.

“Quan­do a gente vai para a are­na, quer faz­er mais que uma apre­sen­tação, um movi­men­to de dança difí­cil, algo espetac­u­loso. A gente quer real­mente protes­tar através da nos­sa dança, do nos­so olhar, da nos­sa potên­cia e força. É ir muito além da parte físi­ca da mul­her. A gente car­rega essa ances­tral­i­dade. Eu não sou ape­nas uma rep­re­sen­tação. Eu sou indí­ge­na, cun­hã-poran­ga. O meu cor­po é políti­co. É força. É ances­tral­i­dade”, diz Mar­ciele.

Nasci­da em Juri­ti, no Pará, ela mora em Man­aus há mais de 13 anos. É for­ma­da em admin­is­tração e tem par­tic­i­pa­do como ativista con­tra as mudanças climáti­cas, a fome e o futuro da Amazô­nia. Já par­ticipou da Sem­ana do Cli­ma, da Orga­ni­za­ção das Nações Unidas (ONU) em Nova York, Esta­dos Unidos, em 2023. E, no mes­mo ano, esteve na Con­fer­ên­cia da Juven­tude pelo Cli­ma, pro­movi­da pela Orga­ni­za­ção das Nações Unidas para a Ali­men­tação e a Agri­cul­tura (FAO), em Roma, na Itália.

“A arte des­per­ta o sen­so políti­co. Você começa a ques­tionar e bus­car respostas. Começa a quer­er lutar por algo. Foi assim que eu des­pertei, não foi porque alguém veio falar comi­go da políti­ca tradi­cional. Através da arte con­segui ter esse sen­so bem críti­co, des­per­tar para essa luta cole­ti­va. Mes­mo que eu não sofra por deter­mi­na­da situ­ação, out­ros podem estar sofren­do e vou lutar por elas. A arte tem a força de união. Isso, de uma for­ma mais leve e capaz furar bol­has”, defende a cun­hã-poran­ga.

Brasília (DF), 05/01/2025 - Artista da Amazônia, Maria Flor. Foto: Maria Flor/Arquivo Pessoal
Repro­dução: Maria Flor em ensaio políti­co em defe­sa da Amazô­nia — Maria Flor/Arquivo Pes­soal

Trans amazônica

O cor­po tam­bém pos­sui uma dimen­são políti­ca para Maria Flor, de 25 anos, nasci­da e cri­a­da nas mar­gens do Rio Tapa­jós, em San­tarém. Trav­es­ti per­iféri­ca, artista e ativista ambi­en­tal, ela define o próprio cor­po como “ter­ritório e fer­ra­men­ta de comu­ni­cação”. Por meio da moda, de per­for­mances de rua, apre­sen­tações e des­files, ela conec­ta a práti­ca artís­ti­ca com os dire­itos das pes­soas trans­gên­eras e os povos da Amazô­nia.

“Come­cei por vol­ta de 2016 fazen­do inter­venções cor­po­rais sobre uma per­spec­ti­va tran­scen­tra­da. Foi quan­do eu me enten­di enquan­to trav­es­ti. As primeiras inter­venções foram exper­i­men­tações cor­po­rais através da ves­ti­men­ta, do me recon­hecer enquan­to iden­ti­dade fem­i­ni­na”, con­ta Maria Flor.

“Eu mora­va per­to de uma pra­ia e ali começaram as min­has inqui­etações. Eu via mui­ta degradação, bal­sas e navios vin­do do exte­ri­or, pegan­do água nos nos­sos rios. Pela BR-163, que cor­ta o Brasil, eu via sain­do de San­tarém mui­ta soja, mil­ho, tora de árvore, madeira, bauxi­ta, fer­ro. Tudo que era extraí­do dali de den­tro da flo­res­ta. Foi quan­do eu come­cei a faz­er inter­venções visuais, através de fotos e vídeos sobre esse ter­ritório que esta­va sendo poluí­do”, con­ta Maria Flor.

Nesse con­tex­to, surgiu a Mulam­bra, um dos nomes e iden­ti­dades artís­ti­cas da ativista, que daria nome tam­bém à mar­ca de roupas cri­adas por ela, a Mulam­bra Grif.

“Eu mis­turei as questões ambi­en­tais com as per­spec­ti­vas do que era o cor­po enquan­to ter­ritório e iden­ti­dade. Eu enten­di que a Mulam­bra era uma ener­gia ances­tral que vin­ha para ques­tionar as situ­ações que acon­te­ci­am ali. O quan­to era nat­u­ral­iza­da uma casa de garim­po na orla da cidade e um cor­po trav­es­ti, não. Esse era demo­niza­do, expul­so de casa, sem aces­so a serviços de saúde e edu­cação, sem espaço no mer­ca­do de tra­bal­ho for­mal”, diz.

Um dos ver­sos da artista é bem rep­re­sen­ta­ti­vo desse impul­so de luta e ativis­mo conec­ta­da à natureza amazôni­ca: “Revolta­da / Enger­ou-se / De toda a mata se apro­pri­ou / No espin­ho do cuan­dú / No aper­to da sucuri­ju / No veneno da suru­cu­cu / No can­tar do uira­pu­ru / Na mag­ni­tude de seu Rei urubu / Na força de sus­suarana / No gri­to de um guari­ba / Na desconfiança da cutia / Nas gar­ras de um gavião.”

Rio de Janeiro (RJ) 13/01/2025 - Arte em roupa feita pela artista trans Maria Flor - Artistas amazônicos usam versos, danças e corpos na defesa da floresta Foto:Maria Flor/Arquivo pessoal
Repro­dução: Arte em roupa fei­ta pela artista trans Maria Flor — Maria Flor /Arquivo pes­soal

Maria Flor mora há três anos em Belém. A estam­par­ia man­u­al tornou-se sím­bo­lo de resistên­cia, con­sci­en­ti­za­ção e empodera­men­to. Peças úni­cas, pro­duzi­das à mão e inspi­radas na fau­na e flo­ra da Amazô­nia, viraram um man­i­festo con­tra o des­mata­men­to e a poluição. Além de mate­ri­ais reci­cla­dos, a artista usa ele­men­tos reci­cla­dos e até mate­ri­ais encon­tra­dos em cas­cas de árvores.

“Muitas vezes a Améri­ca Lati­na é vista como lugar para descar­tar roupas que não foram ven­di­das na Europa. Eu par­to de uma per­spec­ti­va de per­ife­ria, da ped­a­gogia do lixo. Tudo o que eu faço é recon­stru­ir roupas já prontas, indo em brechó, pegan­do coisa de segun­da mão, ou em lugares de descarte. Recon­struo os teci­dos através da estam­par­ia e con­to out­ras histórias”, expli­ca a artista. “Faço com que as pes­soas saibam de onde vem tudo isso que a gente está vestin­do. Muitas, sem perce­ber, com­pram coisas que estão finan­cian­do o garim­po, o des­mata­men­to da Amazô­nia. Tudo isso está amar­ra­do de uma cer­ta for­ma enquan­to comu­ni­cação e per­for­mance artís­ti­ca.”

Série sobre a Amazônia

A reportagem faz parte da série Tril­has Amazôni­cas, que abre o ano da 30ª Con­fer­ên­cia da ONU sobre Mudanças Climáti­cas (COP30), a ser real­iza­da em Belém, em novem­bro deste ano. Nas matérias pub­li­cadas na Agên­cia Brasil, povos da Amazô­nia e aque­les dire­ta­mente enga­ja­dos na defe­sa da flo­res­ta dis­cutem os impactos das mudanças climáti­cas e respostas para lidar com elas.

* A equipe via­jou a con­vite da CCR, patroci­nado­ra do TEDxA­m­azô­nia 2024.

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