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Artistas recriam obras famosas com viés anticolonial e antirracista

Trabalhos serão expostos no Brasil entre agosto e dezembro

Mar­i­ana Tokar­nia* — Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 04/07/2025 — 08:02
Paris
Brasília (DF), 30/06/2025 - Usando lençóis como tela, o artista beninense Roméo Mivekannin, recria obras consagradas mundialmente, principalmente das coleções do famoso Museu do Louvre, com um novo olhar e novos personagens Tela Galeria Superfície/Divulgação
Repro­dução: © Tela Gale­ria Superfície/Divulgação

Usan­do lençóis como tela, o artista beni­nense Roméo Mivekan­nin recria obras con­sagradas mundial­mente, prin­ci­pal­mente das coleções do famoso Museu do Lou­vre, em Paris, com um novo olhar e novos per­son­agens. Nas releituras, as pes­soas bran­cas que pro­tag­on­i­zam as obras orig­i­nais per­dem espaço para autor­re­tratos de Mivekan­nin, um homem negro.

A exposição O Aves­so do Tem­po, que entre dezem­bro de 2024 e jun­ho de 2025, ocupou o Museu Lou­vre Lens – unidade local­iza­da em Lens, cidade no norte da França, chega ao Brasil no Museu de Arte Mod­er­na da Bahia, em Sal­vador, de agos­to a novem­bro, como parte da Tem­po­ra­da França-Brasil.

» Con­fi­ra os destaques da pro­gra­mação da Tem­po­ra­da da França no Brasil

Nas obras do artista, as sub­sti­tu­ições evi­den­ci­am questões como: Quem está pin­tan­do? Quem está sendo pin­ta­do? Quem está pre­sente nas obras e quem está ausente nelas? Na releitu­ra da Bal­sa da Medusa, de Théodore Géri­cault, de 1819, por exem­p­lo, é ele que aparece ocu­pan­do alguns dos ros­tos daque­les que sobre­viver­am ao naufrá­gio Fra­ga­ta de Medusa, no qual o quadro foi inspi­ra­do.

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“Ele se insere para ree­scr­ev­er a história, para pro­por a sua nar­ra­ti­va. Ele tam­bém nos inter­pela para nos faz­er entrar nes­sa história para, quem sabe, ree­scr­ev­er as nos­sas nar­ra­ti­vas e ques­tionar os sis­temas de dom­i­nação atu­ais”, expli­ca a ger­ente de ativi­dades edu­ca­cionais do museu, Eve­lyne Reboul, que acom­pan­hou a Agên­cia Brasil em visi­ta guia­da pela exposição no Lou­vre Lens.

Brasília (DF), 30/06/2025 - Usando lençóis como tela, o artista beninense Roméo Mivekannin, recria obras consagradas mundialmente, principalmente das coleções do famoso Museu do Louvre, com um novo olhar e novos personagens Foto: FREDERIC IOVINO/Divulgação
Repro­dução: Usan­do lençóis como tela, o artista beni­nense Roméo Mivekan­nin recria obras con­sagradas mundial­mente FREDERIC IOVINO/Divulgação

Roméo Mivekan­nin nasceu em 1986, em Bouaké, na Cos­ta do Marfim, mas vive e tra­bal­ha entre a França e o Benin. É for­ma­do em arquite­tu­ra e começou a pin­tar em 2019, influ­en­ci­a­do pela exposição O cor­po negro, de Géri­cault a Matisse, no Museu D’Orsay, em Paris. A exposição dis­cu­tia a pre­sença negra nas obras de arte.

Mivekan­nin é tam­bém descen­dente da realeza de Benin. O últi­mo rei inde­pen­dente de Daomé – que, quan­do col­o­niza­do pela França, pas­sa a se chamar Benin – foi Behanzin, tatar­avô dele.

O mate­r­i­al escol­hi­do para as obras tam­bém é sim­bóli­co, de acor­do com Reboul. Pela cul­tura à qual per­tence, lençóis não devem ser reuti­liza­dos. Ele usa jus­ta­mente lençóis de brechós europeus, que pas­sam por uma lavagem de ervas para purifi­cação. É sobre eles que o artista redesen­ha a história.

“Em cer­tas obras, ele nos mostrou que cos­tur­ou, den­tro dos lençóis, car­tas que ele escreveu para pedir às per­son­agens autor­iza­ção para ocu­par os seus lugares”, con­ta. O pedi­do, segun­do Reboul, faz parte de práti­ca reli­giosa do vudu, religião que nasce no Benin. Além de prat­icá-la, Mivekan­nin a retra­ta em suas próprias obras.

Out­ra obra da exposição traz uma releitu­ra do quadro Retra­to de Madeleine, de Marie-Guillem­ine Benoist, de 1800. Ao invés de Madeleine, é ele quem aparece com um tur­bante na cabeça, olhan­do dire­ta­mente para quem obser­va a obra.

“Esse quadro se chama­va Retra­to de uma Mul­her Negra. Durante muito tem­po, foi uma obra sem iden­ti­dade”, diz Reboul. O quadro orig­i­nal foi renomea­do em 2019, quan­do a mul­her foi recon­heci­da como Madeleine, que foi de Guadalupe para a França após a abolição da escravidão nos ter­ritórios france­ses, em 1794. Ela tra­bal­hou para a família de Bernoist.

O tatar­avô tam­bém é hom­e­nagea­do na exposição. O últi­mo rei inde­pen­dente de Daomé aparece com as esposas em uma fotografia. Mivekan­nin tam­bém se insere no retra­to. Assim como se insere em out­ra fotografia, que mostra um grupo de mul­heres negras e um homem bran­co col­o­nizador jun­to com elas. Uma delas tem um olhar desafi­ador, mostran­do descon­tenta­men­to com a situ­ação. É essa mul­her que Mivekan­nin imi­ta.

Brasil ilustrado

A exposição Brasil Ilustra­do – Um lega­do pós-colo­nial de Jean-Bap­tiste Debret tam­bém impõe um desafio: olhar cuida­dosa­mente para as ima­gens pro­duzi­das pelo pin­tor francês sobre o Brasil, entre 1816 e 1839, evi­den­cian­do as vio­lên­cias ali pre­sentes e pro­pon­do ressig­nifi­cações. A exposição, apre­sen­ta­da em Paris, na Casa da Améri­ca Lati­na, chegará ao Museu do Ipi­ran­ga, em São Paulo, acom­pan­ha­da de colóquio e pub­li­cação sobre a obra de Debret, tam­bém como parte da pro­gra­mação da Tem­po­ra­da França-Brasil.

Debret foi um pin­tor, desen­hista e pro­fes­sor francês que inte­grou a Mis­são Artís­ti­ca France­sa (1817). O grupo fun­dou, no Rio de Janeiro, uma acad­e­mia de Artes e Ofí­cios, mais tarde Acad­e­mia Impe­r­i­al de Belas Artes, onde lecio­nou. Quan­do voltou à França, pub­li­cou Viagem Pitoresca e Históri­ca ao Brasil (1834–1839), com gravuras que havia man­ti­do em seg­re­do, não envian­do ao país de origem. As ima­gens mostram o cotid­i­ano do Rio de Janeiro, em uma sociedade escrav­ocra­ta reple­ta de vio­lên­cias con­tra pes­soas negras.

O livro chegou a ser cen­sura­do pela bib­liote­ca impe­r­i­al na França e foi esque­ci­do, até ser pub­li­ca­do no Brasil em 1940. O prob­le­ma, de acor­do com o pesquisador espe­cial­ista na obra de Jean-Bap­tiste Debret, Jacques Leen­hardt, curador da exposição, é que o que era vio­lên­cia e chocou a sociedade france­sa não teve o mes­mo impacto no Brasil, que viu as cenas como cor­riqueiras. As gravuras foram ampla­mente divul­gadas em livros didáti­cos e até mes­mo em sou­venires, em panos de pra­to e out­ros obje­tos.

“Por isso, eu colo­quei na exposição uma seleção de ima­gens lig­adas ao tra­bal­ho, porque o tem­po todo ele está falan­do que quem tra­bal­ha no Brasil é o escra­vo. O por­tuguês não tra­bal­ha. Aparece comen­do doces, etc. Quem tra­bal­ha é o negro, é o escra­vo”, diz.

Quan­do o livro é rejeita­do na França, ele recebe um pare­cer: “Esta não é a real­i­dade brasileira. Tem um desen­ho que mostra os negros escrav­iza­dos que chegam ao Val­on­go [por­to no Rio de Janeiro] muito magros e quase mor­ren­do após a viagem. E o comen­tário que se faz, que hoje é ina­cred­itáv­el, é de que ‘o que Debret faz são esquele­tos, ele não sabe desen­har‘. Mas a real­i­dade era exata­mente aque­la”, diz Leen­hardt.

Brasília (DF), 30/06/2025 - Usando lençóis como tela, o artista beninense Roméo Mivekannin, recria obras consagradas mundialmente, principalmente das coleções do famoso Museu do Louvre, com um novo olhar e novos personagens Galeria Nara Roesler/Divulgação
Repro­dução:  A obra Tra­bal­ho (2017), de Jaime Lau­ri­ano, reúne uma série de ele­men­tos que reforçam o racis­mo pre­sente na sociedade Gale­ria Nara Roesler/Divulgação

A exposição reúne obras de 15 artis­tas brasileiros que dialogam ou mes­mo recri­am os desen­hos de Debret. Uma delas, a obra Retra­to da Mãe e trans­for­mações (2022), de Eustáquio Neves, uti­liza ima­gens da própria mãe em uma série de neg­a­tivos fotográ­fi­cos nos quais vai, aos poucos, inserindo uma más­cara de met­al que era usa­da nas pes­soas escrav­izadas, tapan­do a boca para que elas não pudessem se matar para fugir da situ­ação de escravidão, comen­do ter­ra. Ao lado, o desen­ho de Debret no qual a más­cara aparece.

A obra Tra­bal­ho (2017), de Jaime Lau­ri­ano, reúne uma série de ele­men­tos que reforçam o racis­mo pre­sente na sociedade, como avi­sos de “A entra­da de serviço é pelos fun­dos” e uma lista de profis­sões muitas vezes ocu­padas por pes­soas negras sem que seja dada a elas alter­na­ti­vas, como empa­co­ta­dor, fax­ineira, empre­ga­da domés­ti­ca, garçom, gari, entre out­ras. Ele reúne tam­bém obje­tos que uti­lizam e nor­mal­izam os desen­hos de Debret, como cal­endários e tapeçarias.

Em Espera da reza pro bater do tam­bor (2024), Gê Viana recria a obra de Debret, dan­do pro­tag­o­nis­mo às pes­soas negras e inserindo ele­men­tos atu­ais como uma apar­el­hagem de som.

Temporada França-Brasil

A Tem­po­ra­da 2025 foi acor­da­da em 2023, pelos pres­i­dentes Luiz Iná­cio Lula da Sil­va e Emmanuel Macron. O obje­ti­vo é for­t­ale­cer a relação bilat­er­al entre os dois país­es, prin­ci­pal­mente por meio da cul­tura. No primeiro semes­tre deste ano, ocor­reu a Tem­po­ra­da Brasil-França, ou seja, a pro­gra­mação brasileira em solo francês. Ago­ra, no segun­do semes­tre, é a vez da Tem­po­ra­da França-Brasil, elab­o­ra­da pela França.

Os temas pri­or­itários da Tem­po­ra­da são: a diver­si­dade de sociedades e diál­o­go com África; democ­ra­cia e Esta­do de dire­ito; e, cli­ma e tran­sição ecológ­i­ca. A pro­gra­mação, que ocorre de agos­to a dezem­bro, será dis­tribuí­da entre 15 cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belém, Sal­vador, Recife, For­t­aleza, Belo Hor­i­zonte, Por­to Ale­gre, Curiti­ba, Camp­inas, São Luís, Teresina, João Pes­soa e Macapá.

Entre os dias 17 e 24 de maio, a Agên­cia Brasil esteve em Paris, a con­vite do Insti­tu­to Francês, vin­cu­la­do ao Min­istério dos Negó­cios Estrangeiros da França, respon­sáv­el pela pro­gra­mação do segun­do semes­tre, para con­hecer um pouco da pro­gra­mação.

*A repórter via­jou a Paris a con­vite do Insti­tu­to Francês.

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