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Assassinato de Ana Lídia completa 50 anos de silêncios e impunidade

Repro­dução: © Arqui­vo pessoal/Divulgação

Contexto ditatorial no país favoreceu desfecho de “mistérios”


Pub­li­ca­do em 11/09/2023 — 07:49 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

Uma dor intraduzív­el. Um trau­ma brasileiro imen­su­ráv­el. O silên­cio e o medo típi­cos de um momen­to de ditadu­ra. “Eu nun­ca vi um silên­cio como aque­le. Era um silên­cio sepul­cral. As pes­soas não pre­cisavam falar. Elas só olhavam e cada uma sabia o que a out­ra esta­va pen­san­do e sentin­do”, lem­bra a pro­fes­so­ra uni­ver­sitária Rosân­gela Vieira Rocha, hoje, aos 70 anos de idade, em entre­vista à Agên­cia Brasil. Ela era ami­ga da família de Ana Lídia Bra­ga, meni­na de ape­nas 7 anos de idade, que foi cap­tura­da, tor­tu­ra­da e mor­ta (e ain­da depois vio­len­ta­da sex­ual­mente), em Brasília, naque­le 11 de setem­bro de 1973.

Brasília (DF) 10/09/2023 - Especial Ana Lídia 50 anos, a ex professora de Ana Lídia, Rosângela Vieira Rocha posa para fotografia em sua resodência.Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Repro­dução: Rosân­gela Vieira Rocha fre­quen­ta­va a casa da família. Foto: Joéd­son Alves/Agência Brasil.

Cinquen­ta anos depois, a cru­el­dade se tor­na ain­da mais ina­cred­itáv­el diante da impunidade e da inves­ti­gação fal­ha. Segun­do o proces­so guarda­do pelo Tri­bunal de Justiça do Dis­tri­to Fed­er­al, no dia 11, por vol­ta de 13h50, a meni­na, que era fil­ha caçu­la dos servi­dores públi­cos Álvaro Bra­ga e Eloyza Rossi Bra­ga, desa­pare­ceu na por­ta de um colé­gio par­tic­u­lar (Madre Car­men Salles) na Asa Norte, em Brasília. O proces­so, que trami­tou na 7ª Vara Crim­i­nal e no Tri­bunal do Júri de Brasília, apon­ta que teste­munhas viram que um homem loiro e alto lev­ou a meni­na da esco­la naque­la tarde.

Con­fi­ra o proces­so na ínte­gra disponi­bi­liza­do pelo TJDF.

O mun­do desabou quan­do a empre­ga­da da família foi buscá-la e rece­beu a infor­mação que a meni­na não esteve nas aulas naque­le dia. Ain­da de acor­do com o proces­so, a família chegou a rece­ber dois tele­fone­mas com pedi­do de res­gate. No dia seguinte, o cor­po da cri­ança mor­ta foi encon­tra­do em uma vale­ta, nua, cober­ta por ter­ra, os cabe­los cor­ta­dos e sinais de vio­lên­cia físi­ca e sex­u­al. A esti­ma­ti­va dos per­i­tos é que Ana Lídia ten­ha sido assas­si­na­da às 6h da man­hã do dia 12.

Na ocasião, o inquéri­to poli­cial apon­tou que um fun­cionário públi­co, Raimun­do Lac­er­da Duque (que tra­bal­ha­va com a mãe da meni­na), de 30 anos, e o irmão de Ana Lídia, o estu­dante Álvaro Hen­rique Bra­ga, de 18 anos, foram os respon­sáveis pelo crime.

Duque era sub­or­di­na­do à mãe de Ana Lídia no Depar­ta­men­to Admin­is­tra­ti­vo do Serviço Públi­co (Dasp). Segun­do o proces­so, o rapaz era usuário de dro­gas. Ele fugiu depois que as inves­ti­gações indi­cavam a par­tic­i­pação dele no crime. Eles chegaram a ser pre­sos, mas foram absolvi­dos, em 1974, por “fal­ta de provas”. Duque mor­reu de alcoolis­mo em 2005 . O irmão da meni­na, Álvaro, é médi­co angi­ol­o­gista no Rio de Janeiro. Por tele­fone, ele disse à Agên­cia Brasil que não gostaria de falar sobre o caso.

A então estu­dante de jor­nal­is­mo Rosân­gela Vieira Rocha era ami­ga de esco­la de Cristi­na Eliz­a­beth Bra­ga, que tin­ha 20 anos, irmã mais vel­ha da meni­na Ana Lídia. Rosân­gela fre­quen­ta­va a casa da família. “Eu lem­bro da voz da Ana Lídia. Ela sem­pre con­ver­sa­va com a gente. A meni­na era cer­ca­da de muito car­in­ho por parte da irmã e de todos. O tem­po não tirou da gente essas lem­branças fortes”, disse, emo­ciona­da, em entre­vista à Agên­cia Brasil.

Depois da morte da meni­na, Rosân­gela nun­ca mais viu Cristi­na (que era estu­dante de soci­olo­gia) ou a família dela. “Lem­bro que eram todos muito car­in­hosos com a meni­na tam­bém em função da difer­ença de idade. Ana Lídia tin­ha uma voz fin­in­ha, era muito engraça­da e não tin­ha timidez. Loir­in­ha com os olhos azuis, que vivi­am com as revistin­has do Pate­ta”.

Rosân­gela recor­da que a família tin­ha um piano na sala de casa com a foto da mãe grávi­da de Ana Lídia. Out­ra lem­brança é que Duque, acu­sa­do pelo Min­istério Públi­co pelo assas­si­na­to, antes havia pas­sa­do a con­viv­er com a família a par­tir do apoio que Eloyza resolveu prestar ao fun­cionário, que era usuário de dro­gas. Quan­do chegou a notí­cia do desa­parec­i­men­to e da morte, con­forme Rosân­gela recor­da, hou­ve um grande deses­pero da família.

Uma viz­in­ha da família na Asa Norte, Luna­mar Queiroz, que atual­mente tra­bal­ha como artesã, recor­da de um momen­to mar­cante, sobre quan­do o irmão soube pela polí­cia que a irmã esta­va mor­ta. “Nós escu­ta­mos o gri­to dele ime­di­ata­mente. Eu escu­to até hoje aque­le gri­to de hor­ror”.

Cerceamento

A tris­teza, naque­les dias, não podia ser expres­sa­da de for­ma mais enfáti­ca, segun­do Rosân­gela Vieira, porque havia medo. Havia receio de real­iza­ção de protestos, mas a cidade esta­va atôni­ta. “Olhá­va­mos uns para os out­ros e chorá­va­mos. Mas a impren­sa noti­ciou o fato com super­fi­cial­i­dade. Como estu­dante de jor­nal­is­mo, sabíamos que a profis­são era cercea­da. Era tudo muito difí­cil.”

O Brasil vivia a ditadu­ra do gov­er­no de Emílio Gar­ras­tazu Médi­ci.  A mes­ma certeza do cercea­men­to tem o jor­nal­ista e pesquisador Rober­to Seabra. Ele escreveu o livro Silên­cio na Cidade, uma obra de ficção total­mente inspi­ra­da no que pesquisou sobre o crime.

Brasília (DF) 10/09/2023 - Especial Ana Lídia 50 anos - Roberto Seabra. Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação
Repro­dução: Rober­to Seabra inves­tigou o tema por cin­co anos — Arqui­vo pessoal/Divulgação

Para escr­ev­er, ele tro­cou os nomes das per­son­agens em vista de não haver respostas ofi­ci­ais, nem de famil­iares, que tam­bém silen­cia­ram a respeito do episó­dio. Assim, no livro, o nome Ana Lídia foi tro­ca­do por Ana Clara, por exem­p­lo. O pai do jor­nal­ista, inclu­sive, era poli­cial na ocasião do crime e dizia ao fil­ho que não fal­tavam provas, mas sim von­tade de con­cluir o inquéri­to.

Uma ver­são do livro de Seabra volta­da para ado­les­centes será lança­da no final de setem­bro.

Silêncio

“Meu pai fala­va que havia um cam­in­hão de provas e que não inves­ti­gavam porque não que­ri­am. A inves­ti­gação foi inter­romp­i­da e a impren­sa foi proibi­da de falar sobre o tema. Por que proibir a cober­tu­ra do assas­si­na­to de uma cri­ança de sete anos?” Ele atribui a situ­ação ao fato do país viv­er uma ditadu­ra mil­i­tar e estran­hamente haver ordens para um silen­ci­a­men­to.

O caso gan­hou mais mis­tério quan­do a impren­sa pas­sou a divul­gar um supos­to envolvi­men­to do fil­ho do então min­istro da Justiça, Alfre­do Buzaid Júnior, e do fil­ho do senador Eduar­do Rezende, Eduar­do Euri­co Rezende. A par­tir dessas reper­cussões, como expli­cam pesquisadores do caso, a cen­sura mostrou sua mão mais forte.

A pesquisa é com­plexa porque, em 1974, o Depar­ta­men­to de Polí­cia Fed­er­al encam­in­hou aos veícu­los de comu­ni­cação uma “ordem supe­ri­or” que tor­na­va proibi­da a divul­gação do caso Ana Lídia.

Seabra inves­tigou o tema durante cin­co anos e uti­li­zou até a doc­u­men­tação de uma Comis­são Par­la­men­tar de Inquéri­to (CPI), do ano de 1974, for­ma­da na Câmara para inves­ti­gar o trá­fi­co de dro­gas em Brasília. Ele ouviu de out­ros cole­gas jor­nal­is­tas que a inves­ti­gação do caso não seria pri­or­i­dade na cober­tu­ra. “A inves­ti­gação foi mal fei­ta, a impren­sa foi proibi­da de cobrir o assun­to e o Min­istério Públi­co foi afas­ta­do do caso.”

Con­fi­ra dados res­gata­dos da CPI de 1974.

Silêncio ruidoso

Per­to do final do gov­er­no mil­i­tar, em 1982, o proces­so foi reaber­to. “Mas o caso não evoluiu porque tudo foi mal instruí­do”. A família nun­ca se comu­ni­cou com o escritor nem respon­deu os pedi­dos de entre­vis­tas. Ao lig­ar o episó­dio ao silen­ci­a­men­to movi­do por autori­dades, Seabra diz que recebe xinga­men­tos.

“Um dos argu­men­tos que o pes­soal usa pra me atacar nas redes soci­ais é que hoje mor­re­ri­am mais cri­anças do que naque­le tem­po. Se não hou­vesse impunidade, não estaríamos falan­do sobre este silen­ci­a­men­to até hoje”.

Seabra entende que a vis­i­bil­i­dade é fun­da­men­tal para a história ao mostrar que a cen­sura é capaz de ocul­tar dire­itos bási­cos de cidada­nia, como o de encon­trar os cul­pa­dos de um crime. “Eu não quero que meus fil­hos cresçam achan­do que Ana Lídia era uma san­ta. Era uma cri­ança de sete anos que foi assas­si­na­da e os crim­i­nosos nun­ca foram descober­tos. Um crime con­tra infân­cia e de gênero.”

A pro­fes­so­ra de história Joel­ma Rodrigues da Sil­va, da Uni­ver­si­dade de Brasília, escreveu a tese Amor­daçadas e rui­dosas, sobre histórias de cri­anças víti­mas de crimes hor­ren­dos como o de Ana Lídia e que pas­saram a ser cul­tuadas como “san­tas”. Ela con­tex­tu­al­iza que, em maio de 1973, a meni­na Araceli, de 8 anos, tam­bém havia sido estupra­da e mor­ta.

Brasília (DF) 10/09/2023 - Especial Ana Lídia 50 anos. - Professora Joelma. Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação
Repro­dução: Pro­fes­so­ra  Joel­ma Rodrigues da Sil­va, da UnB, escreveu a tese sobre histórias de cri­anças víti­mas de crimes hor­ren­dos — Arqui­vo pessoal/Divulgação

“Em ambos os casos, pes­soas influ­entes da políti­ca foram envolvi­das. Tra­ta-se de um ano de vio­lên­cia da ditadu­ra não só no Brasil, mas tam­bém na Améri­ca Lati­na. A gente tem um con­tex­to de vio­lên­cia e de silên­cio. Um silên­cio rui­doso. É um silên­cio que gri­ta.”

A pro­fes­so­ra Joel­ma acres­cen­ta que uma estraté­gia do Esta­do dita­dor da ocasião foi aproveitar o caso de Ana Lídia para inve­stir con­tra e atribuir cul­pas a “dro­ga­dos” e “homos­sex­u­ais”, e ao final, não pren­derem ninguém. “Há sus­peitas que caíram sobre fil­hos de autori­dades e, então, desviaram do assun­to.”

Diante da ineficá­cia do Esta­do, a sociedade, con­forme avalia a pesquisado­ra, pas­sou a san­tificar essas cri­anças vio­len­tadas e mor­tas. “Aqui em Brasília, há uma fila de pes­soas com pre­sentes para chegar ao túmu­lo de Ana Lídia. A sacral­iza­ção dessas meni­nas mor­tas aca­ba servin­do à lóg­i­ca de silen­ci­a­men­to”. No enten­der da pesquisado­ra, quan­do se con­strói a imagem de “san­ta”, a estru­tu­ra de impunidade pode gan­har espaço.

Edição: Maria Clau­dia

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