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Áudios secretos do STM revelam novos casos de tortura na ditadura

© Repro­dução

Ministros ignoraram denúncia de violência sexual contra presa política


Pub­li­ca­do em 31/03/2023 — 13:21 Por Por Rafael Car­doso – Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Áudio inédi­to de uma sessão sec­re­ta do Supe­ri­or Tri­bunal Mil­i­tar (STM) em 1977, obti­do ante­ci­pada­mente pela Agên­cia Brasil, rev­ela que o min­istro Rodri­go Octávio diz ter teste­munhado um caso de vio­lên­cia em uma unidade do Exérci­to. Os demais mem­bros da Corte neg­li­gen­ci­am o assun­to e deci­dem não apu­rar essa e out­ras denún­cias semel­hantes.

A gravação está no acer­vo do site Vozes Humanas, lança­do nes­ta sex­ta-feira (31), no Rio de Janeiro, pelo advo­ga­do e pesquisador Fer­nan­do Fer­nan­des. Nele, podem ser encon­tra­dos arquiv­os de jul­ga­men­tos de pre­sos políti­cos no STM no perío­do entre 1975 e 1979. Tan­to os aber­tos ao públi­co ger­al, como os secre­tos, quan­do só min­istros e o Min­istério Públi­co par­tic­i­pavam.

Rio de Janeiro (RJ) - Áudios secretos do STM revelam novos casos de tortura na Ditadura Militar. Ministros ignoraram denúncia de violência sexual contra presa política. - Lista de presos políticos. - Foto: Reprodução
 Foto: Reprodução

O caso em destaque é o jul­ga­men­to da apelação 41.336 (RJ) no dia 2 de março de 1977. Oito estu­dantes foram acu­sa­dos em 1974 de inte­grar o Par­tido Comu­nista Brasileiro, lança­do à clan­des­tinidade pela ditadu­ra. Eles foram absolvi­dos em primeira instân­cia em 1976, mas o Min­istério Públi­co Mil­i­tar entrou com recur­so con­tra a decisão. Des­de o Ato Insti­tu­cional Número 2, civis podi­am ser proces­sa­dos por crimes políti­cos na justiça mil­i­tar. Os réus foram nova­mente absolvi­dos em uma votação aper­ta­da de 5 a 4 no STM. Mas o que chama a atenção nas con­ver­sas entre os min­istros é o debate sobre a existên­cia de tor­tu­ra em insti­tu­ições mil­itares.

Os réus declararam ter sido obri­ga­dos, medi­ante tor­tu­ra, a con­fes­sar par­tic­i­pação em atos ile­gais. O min­istro Rodri­go Octávio, gen­er­al do Exérci­to, defend­eu a apu­ração das denún­cias. Os abu­sos relata­dos pelas víti­mas incluíam choques elétri­cos, agressões físi­cas e psi­cológ­i­cas, e um rela­to especí­fi­co de vio­lên­cia sex­u­al da estu­dante Sel­ma Mar­tins de Oliveira e Sil­va. Um dos min­istros ten­ta min­i­mizar o fato com um eufemis­mo recor­rente nos jul­ga­men­tos do STM.

Min­istro Augus­to Fragoso: Não há prob­le­ma em tor­tu­ra, fala em coação, não é? Não é? Em coação?

Min­istro Rodri­go Octávio: Falou (…) vio­lên­cia sex­u­al.

Min­istro Augus­to Fragoso: Através de coação, coação.

Um out­ro min­istro, que não pode ser iden­ti­fi­ca­do no áudio, ao defend­er que o Exérci­to não com­pactu­a­va com esse tipo de práti­ca, foi inter­rompi­do por Rodri­go Octávio.

Min­istro não iden­ti­fi­ca­do: “Eu não acred­i­to em tor­tu­ra na sala de…”.

Min­istro Rodri­go Octávio: “Bom, eu não pos­so deixar de acred­i­tar ou não acred­i­tar. Porque eu vi, eu vi uma moça esti­ra­da na Aeronáu­ti­ca, lev­a­da para a Polí­cia do Exérci­to e (…) o Min­istro do Exérci­to lá, ven­do. O Gen­er­al Cordeiro escreveu uma car­ta a mim. Cin­co fol­has. Eu li aqui no Tri­bunal. Então, isso existe. Isso existe”.

Rio de Janeiro (RJ) - Áudios secretos do STM revelam novos casos de tortura na Ditadura Militar. Ministros ignoraram denúncia de violência sexual contra presa política. - Apelação STM 1977. - Foto: Reprodução
 Foto: Reprodução

Arquivos anteriores

Por decisão do Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF) em 2017, pesquisadores já tin­ham aces­sa­do um con­jun­to de áudios das reuniões do STM. Parte do con­teú­do foi divul­ga­da pela impren­sa. Tam­bém ficavam claros ness­es arquiv­os que os min­istros mil­itares con­heci­am e eram coniventes com a tor­tu­ra. Eles debochavam de histórias de greve de fome em presí­dios e de doc­u­men­tos rece­bidos da Anis­tia Inter­na­cional. E, com fre­quên­cia, tomavam decisões que igno­ravam a lei, preferindo seguir inter­ess­es pes­soais e do regime mil­i­tar.

No jul­ga­men­to de 1976 do par­la­men­tar Már­cio Mor­eira Alves (MDB), con­de­na­do a dois anos e três meses de prisão por dis­cur­sar con­tra a ditadu­ra na Câmara dos Dep­uta­dos, o min­istro Sam­paio Fer­nan­des defend­eu: “se se tra­ta de faz­er justiça, mes­mo que ela fira a lei, deve-se faz­er justiça”.

Um out­ro lote de arquiv­os sonoros foi pub­li­ca­do em 2022. E nova­mente estavam reg­istradas falas dos min­istros sobre tor­tu­ra. Con­ver­sas de 1977 mostravam pre­ocu­pação com a reper­cussão do caso de Nádia Lúcia, uma mul­her que sofreu abor­to aos três meses de gravidez, depois de ter sido vio­len­ta­da com choques elétri­cos. Em out­ro encon­tro, em 1976, o min­istro Júlio de Sá Bier­ren­bach criti­cou “os méto­dos ado­ta­dos por cer­tos setores poli­ci­ais de fab­ri­carem indi­ci­a­dos, extrain­do-lhes depoi­men­tos per­ver­sa­mente pelos meios mais tor­pes”.

Se o aces­so aos áudios é mais recente, boa parte dos proces­sos físi­cos foram ras­trea­d­os pelo pro­je­to “Tor­tu­ra nun­ca mais”, em 1979. A Lei da Anis­tia, aprova­da nesse mes­mo ano, per­mi­tia que advo­ga­dos reti­rassem proces­sos sobre crimes políti­cos no STM durante 24 horas. Sob a lid­er­ança de Jaime Wright, rev­eren­do da Igre­ja Pres­bi­te­ri­ana amer­i­cana no Brasil, e Dom Paulo Evaris­to Arns, cardeal arce­bis­po de São Paulo, um grupo de advo­ga­dos, jor­nal­is­tas, mil­i­tantes e reli­giosos reuniu sec­re­ta­mente cópias dos proces­sos que acon­te­ce­r­am entre 1964 e 1979. O pro­je­to deu origem ao livro “Brasil: Nun­ca Mais”, em 1985.

Disputa pelos documentos

Respon­sáv­el pelo site Vozes Humanas, Fer­nan­do Fer­nan­des, travou uma lon­ga dis­pu­ta judi­cial para ter aces­so ao mate­r­i­al do STM. Ele é fil­ho do fale­ci­do advo­ga­do Tristão Fer­nan­des, que defend­eu pre­sos políti­cos durante a ditadu­ra e tam­bém chegou a ser deti­do. Em 1997, ele desco­briu a existên­cia das gravações quan­do fazia uma pesquisa de mestra­do.

Depois de um breve perío­do de aces­so nas próprias insta­lações da Corte, as ativi­dades foram sus­pen­sas e os min­istros ameaçaram apa­gar todos os arquiv­os, mas foram impe­di­dos por decisão do STF. O mes­mo órgão só deter­mi­nou a lib­er­ação do acer­vo ao públi­co em 2006. Decisão desre­speita­da pelo STM, até uma nova ordem da min­is­tra Cár­men Lúcia em 2017. Segun­do Fer­nan­do Fer­nan­des, as gravações estão incom­ple­tas, o que indi­ca haver mate­r­i­al reti­do no tri­bunal.

“Quan­do se com­param as atas de que naque­le dia foi jul­ga­do deter­mi­na­do caso e se vai até as gravações, aque­le caso não está na gravação. Ou quan­do há o iní­cio da gravação anun­cian­do o jul­ga­men­to do caso, cor­ta o áudio, e depois vai para o resul­ta­do. A gente tem certeza que estão fal­tan­do os votos, estão fal­tan­do os debates. Então, nós dire­cionamos ao Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al a com­pro­vação de que está fal­tan­do esse mate­r­i­al. Se é delib­er­a­do, o que é prováv­el, ou se foi uma fal­ta de disponi­bi­liza­ção do mate­r­i­al por fal­ta de per­cepção, pouco impor­ta. Esse mate­r­i­al está lá. E se está lá, nós temos dire­ito de aces­sar”.

Dificuldades históricas

O com­por­ta­men­to do STM segue um padrão históri­co, segun­do Nadine Borges. Ela é douto­ra em Soci­olo­gia e Dire­ito, e já foi mem­bro e pres­i­dente da Comis­são da Ver­dade do Rio de Janeiro entre 2013 e 2015. Por exper­iên­cia própria, Nadine descon­fia de doc­u­men­tos divul­ga­dos por insti­tu­ições mil­itares, que cos­tu­mam, segun­do ela, omi­tir con­teú­dos sen­síveis.

Ela diz que, durante os tra­bal­hos da Comis­são da Ver­dade, a con­tribuição das Forças Armadas era sem­pre difí­cil. Depois de uma visi­ta ao Hos­pi­tal Cen­tral do Exérci­to no Rio de Janeiro, os mem­bros da comis­são foram aler­ta­dos de uma denún­cia no Min­istério Públi­co Fed­er­al: pron­tuários do perío­do da ditadu­ra foram escon­di­dos em sacos de lixo den­tro de um galpão dias antes da visi­ta.

“A gente está falan­do de dez anos atrás, então imag­i­na a quan­ti­dade de acer­vo que existe de fato. Essa decisão do STM de não divul­gar as coisas na inte­gral­i­dade mostra que con­tin­ua existin­do uma seleção daqui­lo que pode ser con­heci­do da sociedade brasileira. Nós não vamos ter um regime democráti­co, não vamos avançar, não vamos ter a Con­sti­tu­ição garan­ti­da, enquan­to per­du­rar esse coman­do de esquec­i­men­to sobre os nos­sos cor­pos, sobre as nos­sas vidas. Acho que isso é muito sin­tomáti­co do avanço do fas­cis­mo no Brasil e das ideias da extrema dire­i­ta nos últi­mos anos”.

Procu­ra­do pela reportagem para respon­der às críti­cas de Nadine e acusações de Fer­nan­do, o Supe­ri­or Tri­bunal Mil­i­tar não respon­deu.

Imagens da ditadura

Um dos pesquisadores que rece­ber­am os áudios em 2017 foi Car­los Fico, his­to­ri­ador e pro­fes­sor da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ). Des­de aque­le ano, ele estu­da e pub­li­ca arti­gos sobre o tema. Ele enfa­ti­za o val­or dess­es doc­u­men­tos para o tra­bal­ho acadêmi­co e para a veic­u­lação jor­nalís­ti­ca. Mas é pes­simista sobre os impactos que essas gravações têm sobre parte da pop­u­lação brasileira.

Para ele, o regime mil­i­tar vai con­tin­uar sendo vis­to de for­ma pos­i­ti­va por muitos. Além da con­strução políti­ca e ide­ológ­i­ca dessa imagem, há questões de ordem psi­cológ­i­ca.

“As pes­soas, por uma questão de apazigua­men­to de espíri­tos, con­stroem memórias con­fortáveis que expli­cam a própria atu­ação nesse pas­sa­do traumáti­co ou dos seus pais. No caso brasileiro, a gente tem várias dessas memórias con­fortáveis. Uma delas é essa, que a ditadu­ra não foi tão ruim. Tem gente até que fala em ‘ditabran­da’, que teve um lado bom, porque teve a Transamazôni­ca, a ponte Rio-Niterói, a hidrelétri­ca de Itaipu. Então, igno­ram toda a real­i­dade da desigual­dade social, da repressão, o fato de que have­ria cresci­men­to econômi­co mes­mo numa democ­ra­cia porque as condições inter­na­cionais favore­ci­am. Por mais que a gente tente mostrar os fatos, o alcance da história é muito reduzi­do. Sobre­tu­do em um país onde a edu­cação bási­ca e secundária é tão precária e com um altís­si­mo grau de anal­fa­betismo fun­cional”.

Já o pesquisador Fer­nan­do Fer­nan­des acred­i­ta que os reg­istros aju­dam a con­stru­ir uma con­sciên­cia cole­ti­va de que regimes de exceção não podem voltar a acon­te­cer no país.

“Esse pro­je­to dev­e­ria ser sobre o pas­sa­do da ditadu­ra, sobre o pas­sa­do de tor­tu­ra, sobre o pas­sa­do de desa­parec­i­men­tos políti­cos ain­da não cura­dos, porque não con­seguimos achar os cor­pos. Mas ele aca­ba sendo um pro­je­to sobre o pre­sente. Sobre os riscos da democ­ra­cia que acabamos de viven­ciar e que ain­da exis­tem, como acon­te­ceu no dia oito de janeiro deste ano. E é um pro­je­to sobre o futuro, porque con­hecer os abu­sos e a história é o que nos per­mite con­sol­i­dar o regime democráti­co”.

Edição: Heloisa Cristal­do

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