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Baile no Rio de Janeiro celebra 50 anos da black music no Brasil

Data marca surgimento da Noite do Shaft, no Rio de Janeiro

Fran­ciel­ly Bar­bosa*
Pub­li­ca­do em 08/11/2024 — 07:08
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro (RJ), 07/11/2024 - DJ Corello, criador do movimento Charme. Foto: Dj Corello/Arquivo Pessoal
Repro­dução: © Dj Corello/Arquivo Pes­soal

“A black music é uma força, é um diál­o­go cole­ti­vo”, descreve o pro­du­tor cul­tur­al e engen­heiro civ­il Asfiló­fio de Oliveira Fil­ho, mais con­heci­do como Dom Filó. Nes­ta sex­ta-feira (8), ele coman­da ao lado de Mar­co Aurélio Fer­reira, o DJ Corel­lo, a primeira edição do baile Eu amo Black Music, em comem­o­ração aos 50 anos da Black Music no Brasil. A fes­ta é real­iza­da pelo Teatro Rival Petro­bras, no Cen­tro do Rio de Janeiro, e pela Cultne TV.

Em 2024, o mar­co tem­po­ral cel­e­bra­do é a cri­ação do baile Noite do Shaft, em 1974, no Renascença Clube, por Dom Filó, que mar­ca a chega­da da black music no país. A fes­ta recebe esse nome em hom­e­nagem ao per­son­agem John Shaft, inter­pre­ta­do por Richard Roundtree em uma série de filmes lança­dos nos anos 1970.

Rio de Janeiro (RJ), 07/11/2024 - Asfilófio de Oliveira Filho, o Dom Filó, foi um dos principais mentores do Movimento Black Rio. Foto: Dom Filó/Arquivo Pessoal
Repro­dução: Dom Filó é um dos prin­ci­pais men­tores do Movi­men­to Black Rio — Dom Filó/Arquivo Pes­soal

“É um dete­tive que pas­sa­va uma imagem muito pos­i­ti­va da comu­nidade negra. Essa série foi mar­cante porque não tín­hamos a pre­sença de pes­soas negras na tele­visão naque­la época. Era uma pro­gra­mação total­mente bran­ca, e aí temos um herói negro”, relem­bra Dom Filó. “Peg­amos a essên­cia afro-amer­i­cana e ressig­nifi­camos aqui no Brasil”.

Black Music no Brasil

Segun­do o pro­du­tor musi­cal, a black music (“músi­ca negra”, em por­tuguês), teve origem nos cam­pos de plan­tação de algo­dão dos Esta­dos Unidos, onde pes­soas negras escrav­izadas uti­lizavam o can­to para apaziguar a dor da escravidão. Esse som deu origem a difer­entes rit­mos musi­cais, sendo o soul um deles. “Soul sig­nifi­ca alma. A soul music é a músi­ca da alma”, comen­ta Dom Filó. “Essa essên­cia nasce nos cam­pos de algo­dão dos Esta­dos Unidos, mas, quan­do ela pas­sa para o entreten­i­men­to, nasce a músi­ca pre­ta amer­i­cana, nasce o soul, o rhythm and blues, o jazz e o blues”.

“A cul­tura negra sem­pre foi musi­cal”, retoma Dom Filó. “Des­de os tem­pos de escravidão, o nos­so grande laz­er era se reunir para amainar um pouco a dor. Aque­las reuniões, os tam­bores, os cân­ti­cos e as danças vier­am através do tem­po”. De pai mineiro e mãe flu­mi­nense, Dom Filó con­ta que sem­pre esteve envolvi­do com a cul­tura musi­cal, em espe­cial a par­tir das esco­las de sam­ba e das religiões de matriz africana. Por vol­ta dos 18 anos, pas­sou a fre­quen­tar o Renascença Clube, fun­da­do por um cole­ti­vo de jovens negros. “ “O Renascença fez com que tivésse­mos aces­so ao cin­e­ma, ao teatro e, prin­ci­pal­mente, a músi­ca. Ali, ouvíamos mui­ta coisa pela rádio, que era o grande top da época”.

Foi pelo rádio que difer­entes expressões musi­cais estrangeiras chegaram aos ouvi­dos brasileiros. Entre elas, a black music, com grande pre­sença nos bailes no Rio de Janeiro.

“Trançan­do uma lin­ha do tem­po, você vai ter vários 50 anos. O Brasil já con­sum­ia black music, mas sem pro­movê-la, sem acessá-la como músi­ca pre­ta”, obser­va.

“Você tin­ha as lojas de dis­co, as impor­ta­do­ras, mas poucos tin­ham aces­so àque­les dis­cos. Mais tarde, os DJs con­seguiram alcançar essas prateleiras, traz­er os dis­cos de fora e for­mar suas dis­cote­cas pelas equipes de som. Mas, antes das equipes de som começarem as suas fes­tas, temos out­ra car­ac­terís­ti­ca de pen­e­tração dessa músi­ca, com artis­tas nacionais que rece­ber­am influên­cia dire­ta da soul music e até foram viv­er em solo amer­i­cano, casos do Tim Maia e do Tony Tor­na­do”.

“Naque­le momen­to, não se fala­va em black music ou em músi­ca pre­ta, mas em MPB com um sotaque difer­ente, o sotaque pre­to”, diz Dom Filó. Com o desen­volvi­men­to das equipes de som, surge a neces­si­dade de se cri­arem fes­tas para reunir as pes­soas em bus­ca do mes­mo som. “Aque­la catarse, de traz­er a galera toda para um ambi­ente só e tocar aque­la músi­ca pul­sante e emo­cio­nante; pura dança, pura autoes­ti­ma. Essa é a essên­cia do baile”, comen­ta. Uma dessas fes­tas foi a Soul Grand Prix — tam­bém um grupo musi­cal for­ma­do por músi­cos do Renascença Clube, como Dom Filó — que nasceu não ape­nas para diver­são, mas tam­bém para dis­cu­tir questões raci­ais.

“Sofríamos muito, vivíamos a dor a sem­ana toda. Era dis­crim­i­nação o todo tem­po, baixa autoes­ti­ma. Quan­do vem uma equipe como a Soul Grand Prix, que pas­sa para a comu­nidade a neces­si­dade da autoes­ti­ma, do per­tenci­men­to e da iden­ti­dade, a galera muda o seu com­por­ta­men­to, muda o seu visu­al. Mes­mo viven­do aque­le momen­to de ditadu­ra, em que nós, negros, éramos mas­sacra­dos, ain­da con­seguíamos pas­sar um pouco de black pow­er (poder negro)”.

Movimento Black Rio

A dis­sem­i­nação da black music no Brasil a par­tir das rádios não se lim­i­tou ape­nas aos bailes pro­movi­dos para a comu­nidade negra, mas deu origem a um movi­men­to musi­cal e cul­tur­al con­cen­tra­do, prin­ci­pal­mente, no Rio de Janeiro, recon­heci­do como Movi­men­to Black Rio. Essa man­i­fes­tação lev­ou a músi­ca negra estadunidense aos sub­úr­bios da cidade, fazen­do sur­gir uma ger­ação inspi­ra­da pela reivin­di­cação dos seus dire­itos, que adap­ta o esti­lo norte-amer­i­cano à real­i­dade nacional. A mis­tu­ra do soul e do funk ao sam­ba ain­da deu origem à ban­da black rio, mod­ern­izan­do o som brasileiro.

Autor do livro 1976: Movi­men­to Black Rio ao lado do jor­nal­ista Zé Octávio Sebadel­he, Luiz Felipe de Lima Peixo­to descreve que o Movi­men­to Black Rio não foi uma ação pen­sa­da, mas “algo total­mente orgâni­co”, surgin­do da neces­si­dade da comu­nidade negra se expres­sar a par­tir das músi­cas estadunidens­es. “Foi uma for­ma de afir­mação da iden­ti­dade negra em um perío­do pesa­do da ditadu­ra mil­i­tar em nos­so país”.

De acor­do com Peixo­to, a origem do movi­men­to surge muito antes da intro­dução da black music no país, quan­do o rádio pas­sou a divul­gar o sam­ba para o grande públi­co, nas décadas de 1940 e 1950. A sua pop­u­lar­iza­ção atraiu a classe média, for­ma­da, prin­ci­pal­mente, por pes­soas bran­cas, para as esco­las de sam­ba, que deixaram de ser “vas­cul­hadas” pela polí­cia. “Até aque­le momen­to, o sam­ba era coisa de mar­gin­al, de malan­dro. Os negros que não se iden­ti­fi­cavam mais com tudo isso acabaram se iden­ti­f­i­can­do com a músi­ca negra norte-amer­i­cana e toda a sua reivin­di­cação históri­ca daque­le perío­do”.

O espe­cial­ista con­sid­era que o Movi­men­to Black Rio foi fun­da­men­tal para a cri­ação da resistên­cia negra em um perío­do de opressão, assim como para a afir­mação da iden­ti­dade negra no Brasil. “Nos bailes, prin­ci­pal­mente os pro­movi­dos por Dom Filó, dis­cur­sos antir­racista e de afir­mações da negri­tude eram pro­feri­dos durante as músi­cas. Todo esse enre­do, as fes­tas, as músi­cas, as ves­ti­men­tas, con­tribuíram para essa reafir­mação de uma iden­ti­dade negra mais pos­i­ti­va”.

Na vira­da dos anos 1970, a expressão cul­tur­al pas­sa a perder força. A pop­u­lar­iza­ção das dis­cote­cas foi um dos motivos que con­tribuíram para esse novo cenário.

“A mudança das prefer­ên­cias musi­cais do públi­co e a evolução cul­tur­al, mas, prin­ci­pal­mente, a perseguição, a repressão, a cen­sura e a vig­ilân­cia mais evi­dente nos bailes na época, foram pon­tos cru­ci­ais para o declínio”, desta­ca o autor.

Mes­mo com a diminuição da força dessa man­i­fes­tação, Dom Filó ressalta a relevân­cia do Movi­men­to Black Rio no país, que pas­sou a ser vis­to a par­tir de uma óti­ca negra. “Esse movi­men­to teve uma importân­cia muito grande na questão do com­por­ta­men­to, do per­tenci­men­to, da iden­ti­dade e da autoes­ti­ma, tudo isso numa tec­nolo­gia ances­tral tra­bal­ha­da até hoje para que a nos­sa comu­nidade, a comu­nidade negra, seja repara­da. Só usamos a músi­ca como ele­men­to”.

Movimento Charme

Uma das expressões mais mar­cantes desse perío­do de trans­for­mação musi­cal no Brasil é o Movi­men­to Charme, cri­a­do pelo DJ Corel­lo (foto em destaque). À Agên­cia Brasil, ele con­ta que o movi­men­to começou quan­do ele próprio tomou a ini­cia­ti­va de tocar um gênero musi­cal difer­ente do soul nos bailes de black music, como o rhythm and blues, abre­vi­a­do para R&B. “Fui o primeiro DJ de soul a sair do soul e entrar em out­ro cam­in­ho. No tem­po do soul, você tin­ha que dançar uma músi­ca e parar para entrar no rit­mo de out­ra, mas eu já pen­sa­va na mix­agem”, relem­bra.

“O Movi­men­to Charme, que começou nos anos 1980, já ini­ciou com essa pega­da de uma músi­ca den­tro da out­ra. Essa sonori­dade pegou out­ra ger­ação, que não era a ger­ação do soul, com o ouvi­do virgem. Eu con­segui cate­quizar essa ger­ação para o Movi­men­to Charme”, con­tin­ua. Tam­bém é atribuí­do ao DJ Corel­lo o uso do ter­mo “charme” para iden­ti­ficar o movi­men­to, que nos bailes sem­pre dizia

“Chegou a hora do charmin­ho, transe seu cor­po bem deva­gar­in­ho” para anun­ciar a mudança do repertório musi­cal.

Por muitos anos, o movi­men­to teve o Viadu­to de Madureira como prin­ci­pal refer­ên­cia de charme no Rio de Janeiro, mas, com a mudança de repertório, que pas­sou a tocar out­ros gêneros musi­cais além do R&B, o Baile Black Bom, cri­a­do em 2013 na Pedra do Sal, no bair­ro de Saúde, assum­iu esse papel. Ape­sar de não rep­re­sen­tar mais o charme da mes­ma for­ma que no pas­sa­do, o DJ desta­ca que o Viadu­to de Madureira não deve ser esque­ci­do, porque teve sua importân­cia para a man­i­fes­tação cul­tur­al. “Hoje, o Black Bom é refer­ên­cia, daqui a cin­co anos, vai ser out­ro, porque é uma con­stante evolução”.

Música negra no Brasil

“Quan­do pen­so músi­ca no Brasil, pen­so que toda músi­ca adquiri­da no país tem mar­cas negras”, afir­ma a pro­fes­so­ra do Depar­ta­men­to de Edu­cação da Uni­ver­si­dade do Esta­do do Rio de Janeiro (Uerj) Denise Bara­ta.

Ela defende que a músi­ca no país é con­struí­da a par­tir de uma exper­iên­cia negra, resul­tan­do da diás­po­ra africana que provo­cou o deslo­ca­men­to de mais de 12,5 mil­hões de africanos para as Améri­c­as e para a Europa entre os sécu­los XVI e XIX, como abor­da no arti­go “A músi­ca na Diás­po­ra Africana da Améri­ca Lati­na”. Assim, gêneros musi­cais nasci­dos na comu­nidade negra são for­mas de socia­bil­i­dade e de difusão da memória negra.

“Quan­do falam­os da músi­ca negra brasileira, esta­mos falan­do de uma for­ma de socia­bil­i­dade que na voz emana memória. Quan­do ouço Dona Ivone Lara ou Joveli­na Péro­la Negra, a memória da diás­po­ra está ali pre­sente, e não é só pela cor da pele”, traz a pesquisado­ra.

“Essa memória se faz pre­sente ain­da hoje. Ela não desa­parece e pode ser encon­tra­da no sam­ba, no funk e nos jovens que revivem a black music. Quan­do falam­os da memória negra, esta­mos falan­do de uma cul­tura que é muito impor­tante e que não desa­parece ape­sar de todo racis­mo, de toda pressão injus­ta da indús­tria radiofôni­ca e da ideia de democ­ra­cia racial. A memória negra se faz pre­sente até os dias de hoje, exata­mente pela potên­cia que ela é”.

Para Peixo­to, a black music no Brasil pode ser vista como uma con­tin­u­ação e uma evolução da cul­tura musi­cal que já exis­tia no país, trazen­do novos ele­men­tos sonoros e abor­dan­do assun­tos que enrique­ce­r­am a músi­ca brasileira. Além  dis­so, o movi­men­to veio for­t­ale­cer a iden­ti­dade e a vis­i­bil­i­dade da comu­nidade negra, ape­sar da resistên­cia aos rit­mos estrangeiros no momen­to que pas­saram a ser difun­di­dos pelas rádios em alta na época.

“Hoje se rela­cionam bem, mas, naque­le perío­do, a black music foi moti­vo de dis­cór­dia e revol­ta da sociedade brasileira, colo­can­do o sam­ba como algo real­mente legí­ti­mo e autên­ti­co da nos­sa expressão cul­tur­al. Então a black music sofreu, sim, muito pre­con­ceito naque­le perío­do, mas inegavel­mente trouxe grande influên­cia”, pon­tua. “Hoje, podemos obser­var um lega­do incrív­el, através de gêneros como o sam­ba-funk, o sam­ba-rock e o próprio funk car­i­o­ca”.

Diante dos 50 anos da black music no Brasil, Dom Filó desta­ca esse perío­do como um momen­to de trans­for­mação, em que a comu­nidade negra obteve avanços na luta racial, ape­sar de não serem sufi­cientes para lidarem com o pre­con­ceito e com a dis­crim­i­nação no país. “Tive a hon­ra e a benção de estar viven­do essa trans­for­mação”, cel­e­bra.

“Hoje, eu me deparo com várias ger­ações e com várias pes­soas, inclu­sive da min­ha ger­ação, que se influ­en­cia­ram por tudo isso e trazem isso para a nova ger­ação. Hoje, temos respostas. Na min­ha época, eu não tin­ha refer­ên­cias. As refer­ên­cias eram todas neg­a­ti­vas. Na esco­la, nos livros esco­lares, nas rep­re­sen­tações artís­ti­cas, todas elas eram neg­a­ti­vas. A min­ha ger­ação viveu essa trans­for­mação e a min­ha maior esper­ança é que a garo­ta­da que está chegan­do ten­ha con­sciên­cia de que esse proces­so não começou ago­ra, ele vem de lá atrás”.

*Estag­iária sob super­visão de Viní­cius Lis­boa

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