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Bônus para catadores impede que plásticos poluam rios da Amazônia

Fintech social utiliza a reciclagem para combater a pobreza

Elaine Patrí­cia Cruz* — Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 01/06/2025 — 11:55
Man­aus
Manaus (AM), 30/05/2025 - Programa instalado em Manaus bonifica catadores para impedir que resíduos plásticos poluam rios da Amazônia. Foto: Sara Rangel/Divulgação
Repro­dução: © Sara Rangel/Divulgação

A ama­zo­nense Cacil­da Soares Viana tem 55 anos de idade e seu sus­ten­to vem do lixo. Foi por meio dele que ela super­ou um rela­ciona­men­to vio­len­to, enfren­tou autori­dades e difi­cul­dades e deu uma vida digna aos três fil­hos. Uma de suas fil­has con­seguiu faz­er fac­ul­dade.

“Eu tra­bal­ha­va no lixão”, começa a con­tar dona Cacil­da à reportagem da Agên­cia Brasil. “A gente ia lá bus­car lata. E eu tra­bal­han­do, sem­pre tra­bal­han­do, sus­ten­tan­do todos eles [os fil­hos]”, disse.

É com os olhos mare­ja­dos, mas reple­tos de con­vicção e muito orgul­ho, que dona Cacil­da fala de sua luta, que sem­pre esteve rodea­da pelos resí­du­os.

Manaus (AM), 30/05/2025 - Programa instalado em Manaus bonifica catadores para impedir que resíduos plásticos poluam rios da Amazônia. Foto: Sara Rangel/Divulgação
Repro­dução: Pro­gra­ma em Man­aus bonifi­ca cata­dores para impedir que resí­du­os plás­ti­cos polu­am rios da Amazô­nia — Foto: Sara Rangel/Divulgação

“O lixo me deu uma vida digna e até hoje eu tô aqui. Ten­ho muito orgul­ho”, afir­ma.

Sua vida de cata­do­ra de lat­in­ha no lixão pas­sou a mudar quan­do, em 2005, a Prefeitu­ra de Man­aus chamou Cacil­da e out­ros cata­dores para ini­ciar um tra­bal­ho de edu­cação ambi­en­tal. Foi desse pro­je­to que surgiu a Asso­ci­ação de Cata­dores de Mate­ri­ais Reci­cláveis (Ascar­man), hoje pre­si­di­da por ela.

“Com a asso­ci­ação mudou muito [a min­ha vida]. Mudou porque não tin­ha mais urubu, que o urubu esta­va na gente [no lixão]. E ninguém mex­ia mais no nos­so lixo [ela rela­tou que, quan­do esta­va no lixão, chegou a ter suas coisas roubadas]. E tam­bém mudou o salário, tudo. Mudou a min­ha vida, mudou a vida dos meus fil­hos, da min­ha nora, de tudin­ho mudou. Quem imag­i­na­va eu, de den­tro do lixão, [ia con­seguir] tirar um car­ro den­tro da con­ces­sionária?”, rela­tou.

A tam­bém cata­do­ra Andreia Soares viveu parte dessas difi­cul­dades. Ela é fil­ha de Cacil­da e recon­hece as dores que a mãe já viveu.

“A Ascar­man é uma asso­ci­ação com­pos­ta por cata­dores que sobre­vivem da catação e do proces­so de triagem e des­ti­nação cor­re­ta dos resí­du­os. Ela existe des­de 2005, quan­do foi fecha­do o lixão. Nós éramos vul­neráveis soci­ais e tín­hamos toda uma questão famil­iar tam­bém. Min­ha mãe foi víti­ma de vio­lên­cia domés­ti­ca. Eu digo que depois que a catação e o proces­so de cole­ta sele­ti­va entraram na vida dela, ela se lib­er­tou e teve mais voz”, disse à Agên­cia Brasil.

Andreia tam­bém enfren­tou muitas difi­cul­dades, mas chegou a faz­er fac­ul­dade, foi pro­fes­so­ra e atual­mente é secretária-ger­al da asso­ci­ação.

“O lixo tirou min­ha mãe dessa vio­lên­cia porque ela começou a se impor. Como ela não tin­ha ren­da, ela depen­dia muito do mari­do e se sub­me­tia a essa vio­lên­cia. Mas a par­tir do momen­to em que ela começou a se empoder­ar, começou a ser a lid­er­ança de um grupo de pes­soas vul­neráveis. Ela renasceu das cin­zas, lit­eral­mente”, lem­bra a fil­ha.

Foi para escapar dessa vio­lên­cia em casa, que Andreia começou a tra­bal­har muito cedo, inclu­sive no lixão. E tam­bém foi logo cedo que ela começou a faz­er cur­sos de infor­máti­ca, moti­va­da por seu padrin­ho. Foi assim que ela con­seguiu faz­er licen­ciatu­ra em lín­gua ingle­sa e até pós-grad­u­ação em pro­je­tos.

“O pouco que a gente tem, a gente ain­da con­segue espal­har e aju­dar o próx­i­mo. O impacto da Ascar­man na mudança da vida de todo mun­do aqui é extra­ordinário. Todas as pes­soas que estão aqui, sobre­vivem do que catam e do que ven­dem, mas ao mes­mo tem­po a gente tam­bém sobre­vive da união, do laço famil­iar e do laço social”, disse Andreia.

A Ascar­man con­ta atual­mente com oito colab­o­radores que tra­bal­ham na sep­a­ração e preparação dos resí­du­os para des­ti­nação, para a reci­clagem em indús­trias ou empre­sas.

Anto­nia Alves de Fre­itas, 40 anos de idade, é uma delas. Ela começou a tra­bal­har como cata­do­ra des­de que a cri­ação da asso­ci­ação.

Manaus (AM), 30/05/2025 - Programa instalado em Manaus bonifica catadores para impedir que resíduos plásticos poluam rios da Amazônia. Foto: Sara Rangel/Divulgação
Repro­dução: Cata­dores de resí­du­os na Amazô­nia — Foto: Sara Rangel/Divulgação

“Des­de então sus­ten­to a min­ha família ess­es anos todos, sus­ten­to eu e meus sete fil­hos. Graças a Deus, sou abençoa­da com o que eu gan­ho. Acor­damos cedo e pas­samos o dia aqui na asso­ci­ação. Fico mais tem­po aqui den­tro do que em casa. O mate­r­i­al chega aqui, a gente sep­a­ra. E quan­do tem que bus­car mate­r­i­al fora, a gente vai tam­bém. Aqui chega papelão, pet e todo tipo de lixo”.

Meio ambiente

O tra­bal­ho desen­volvi­do por Cacil­da, Andreia e Anto­nia não somente pro­por­ciona uma vida digna para suas famílias como tam­bém é fun­da­men­tal para reduzir o número de resí­du­os em Man­aus.

“Meu tra­bal­ho é impor­tante para o meio ambi­ente. Gos­to muito do que eu faço”, ressalta Anto­nia.

E ago­ra esse tra­bal­ho pas­sou a ter um novo estí­mu­lo. Para con­tribuir para a redução da poluição plás­ti­ca em Man­aus e impedir que ess­es resí­du­os cheguem aos rios e igara­pés da Amazô­nia, um pro­je­to pas­sou a ser desen­volvi­do jun­to com a Ascar­man, na cap­i­tal ama­zo­nense.

A ini­cia­ti­va, que já fun­ciona no Rio de Janeiro, no Espíri­to San­to e em São Paulo, é lid­er­a­da pela Plas­tic Bank, uma fin­tech social que uti­liza a reci­clagem como fer­ra­men­ta de com­bate à pobreza, e pela Lord, empre­sa espe­cial­iza­da na pro­dução de filmes e embal­a­gens plás­ti­cas flexíveis.

Por meio desse pro­je­to, os cata­dores vão rece­ber um bônus por cada qui­lo de plás­ti­co que for entregue para reci­clagem, o que pode faz­er com que suas ren­das aumentem em até 30%, segun­do as empre­sas.

É a primeira oper­ação do tipo volta­da à trans­fer­ên­cia de ren­da para cata­dores da Região Norte. Todas as transações são reg­istradas em uma platafor­ma basea­da em blockchain, garan­ti­n­do, segun­do as empre­sas, ras­tre­abil­i­dade, segu­rança, transparên­cia e ren­da extra aos cata­dores. E todo o vol­ume cole­ta­do nesse pro­je­to será encam­in­hado depois para reci­clagem.

Manaus (AM), 30/05/2025 - Programa instalado em Manaus bonifica catadores para impedir que resíduos plásticos poluam rios da Amazônia. Foto: Sara Rangel/Divulgação
Repro­dução: Fin­tech social uti­liza a reci­clagem como fer­ra­men­ta de com­bate à pobreza — Foto: Sara Rangel/Divulgação

“Nós esta­mos ini­cian­do o pro­je­to ago­ra, e nos­sa meta, até dezem­bro, é cole­tar 3 mil­hões de gar­rafas e quin­tu­plicar isso até 2030. Como é que a gente faz isso? A gente mon­e­ti­za quem tra­bal­ha com a reci­clagem, que é o elo prin­ci­pal. Se você não tiv­er o cata­dor, o coop­er­a­do, a reci­clagem morre no iní­cio. Então a gente incen­ti­va através de paga­men­to de bônus”, expli­cou Ricar­do Araújo, dire­tor de oper­ações Plas­tic Bank Brasil.

Todo esse proces­so terá ras­tre­abil­i­dade em blockchain o que, segun­do Araújo, per­mi­tirá inte­grar a econo­mia cir­cu­lar, a val­oriza­ção do tra­bal­ho dos cata­dores e o impacto ambi­en­tal.

“A gente mon­ta um ecos­sis­tema, que é, jus­ta­mente, essa com­posição com os pon­tos de cole­ta, que pode ser tan­to uma asso­ci­ação, uma coop­er­a­ti­va ou um sucateiro. Todas as pes­soas que mex­em ou orbitam naque­le pon­to de cole­ta são reg­istra­dos no nos­so aplica­ti­vo, cri­a­do em cima da tec­nolo­gia blockchain. A gente tem total ras­tre­abil­i­dade, mon­i­toran­do do primeiro dia útil do mês até o últi­mo dia útil do mês. Em cima da per­for­mance daque­le mês será deposi­ta­do um bônus”, expli­ca o dire­tor da Plas­tic Bank.

Além do bônus, out­ros pro­je­tos soci­ais são desen­volvi­dos com os cata­dores como os de inclusão dig­i­tal e capac­i­tação.

“A ideia é impactar ou, em out­ras palavras, traz­er bene­fí­cio ambi­en­tal dire­ta­mente, mas tam­bém traz­er um bene­fí­cio social porque à medi­da que você paga um bônus para o cata­dor, você está geran­do ali um incre­men­to de ren­da. E uma vez que ele gan­ha bônus em cima de cole­ta de plás­ti­co, ele começa a cole­tar mais plás­ti­co”, ressalta.

“A gente sabe do impacto ambi­en­tal que todas as indús­trias têm hoje no meio ambi­ente e a gente pre­cisa faz­er mais. Eu cos­tu­mo diz­er que a indús­tria tem a faca e o quei­jo na mão. Então a gente sabe da nos­sa respon­s­abil­i­dade”, disse Patrí­cia Azeve­do da Cruz, super­vi­so­ra de ESG da Lord Brasil.

Plástico

Por ser ver­sátil, duráv­el e de baixo cus­to, os plás­ti­cos têm sido ampla­mente uti­liza­dos em embal­a­gens, na indús­tria auto­mo­bilís­ti­ca, na con­strução civ­il, nos eletrôni­cos, em pro­du­tos médi­cos e em uten­sílios domés­ti­cos e têx­teis. No entan­to, a dura­bil­i­dade do plás­ti­co é tam­bém uma das suas car­ac­terís­ti­cas mais prob­lemáti­cas, uma vez que sua degradação nat­ur­al pode levar sécu­los. O descarte incor­re­to de plás­ti­co con­t­a­m­i­na o solo, a água e a atmos­fera, poden­do afe­tar a saúde humana e ani­mal, além de causar danos a ecos­sis­temas.

“Se você descar­tar incor­re­ta­mente o plás­ti­co, a natureza levará cen­te­nas de anos para absorvê-lo, então esse é um prob­le­ma urgente”, desta­cou Araújo.

“Em segun­do lugar, o plás­ti­co, por diver­sas razões, não tem um val­or atra­ti­vo para quem mexe com reci­clagem. Por isso a gente está pagan­do um bônus [aos cata­dores]. Assim, quem está com­pran­do o plás­ti­co dos cata­dores já está pagan­do pelo val­or do pro­du­to do mer­ca­do, que varia por região e por época do ano, porque é uma com­mod­i­ty. Mas o nos­so bônus é con­stante, vai em cima de per­for­mance. Cole­tou mais, recebe mais”, disse Araújo.

Segun­do o cata­dor Ronal­do Soares, a úni­ca coisa que não se aprovei­ta de uma embal­agem plás­ti­ca é o rótu­lo. De resto, tudo pode ser aproveita­do para reci­clagem.

Catadores de lixo podem aproveitar resíduos de prédios públicos de Brasília
Repro­dução: Cata­dores de lixo podem aproveitar resí­du­os plás­ti­cos — Mar­cel­lo Casal Jr./Agência Brasil

“A gente vende [tudo] para a empre­sa para eles faz­erem aque­le sis­tema de trata­men­to dess­es deje­tos”, expli­cou.

“Se a gente não cole­tasse isso, ia tudo para o ater­ro. E isso, quan­do vai para o ater­ro, ain­da tem um des­ti­no, mas tam­bém pode chegar nos igara­pés e rios, entupir bueiros. A gente cole­tan­do o plás­ti­co aqui, já gera um impacto na natureza. A gente tiran­do o plás­ti­co da natureza, mes­mo que seja um mín­i­mo, já é um grande avanço para a gente e para a sociedade”, disse.

Essa edu­cação ambi­en­tal não ocorre somente den­tro da asso­ci­ação, segun­do o cata­dor. Tam­bém fun­ciona den­tro de sua casa.

“Lá em casa a gente faz a sep­a­ração do lixo. Há um saco para o orgâni­co, que vai para o ater­ro. E a gente sep­a­ra o papelão, o plás­ti­co, tudin­ho em saco­las. Aí, quan­do está cheio, a gente traz para a coop­er­a­ti­va para faz­er toda a triagem e sep­a­rar o lixo. A pop­u­lação então tem que se con­sci­en­ti­zar que é impor­tante sep­a­rar o lixo. O mín­i­mo que a gente fiz­er já é um efeito grande”, defende.

Para Soares, a parce­ria da asso­ci­ação com o pro­je­to que está sendo desen­volvi­do pela Plas­tic Bank e pela Lord vai sig­nificar um bom incen­ti­vo para os cata­dores coletarem e sep­a­rarem os plás­ti­cos.

“A gente já tra­bal­ha­va feliz sem o incen­ti­vo, tipo só ficar ali cole­tan­do e venden­do e receben­do. Ago­ra a gente gan­ha um bônus a mais pelo que a gente faz. Eu achei muito inter­es­sante isso aí e aju­dou bas­tante mes­mo”, comem­o­ra.

Resíduos em Manaus

No ano em que o Brasil vai sedi­ar a 30ª Con­fer­ên­cia das Nações Unidas sobre Mudança do Cli­ma (COP30), em Belém, a gestão ade­qua­da de resí­du­os gan­ha ain­da mais força.

Ape­nas 58,5% dos resí­du­os sóli­dos urbanos ger­a­dos em 2023 foram encam­in­hados para des­ti­nação ambi­en­tal­mente ade­qua­da no país, apon­ta o Panora­ma dos Resí­du­os Sóli­dos no Brasil 2024, divul­ga­do no final do ano pas­sa­do pela Asso­ci­ação Brasileira de Resí­du­os e Meio Ambi­ente (Abre­ma).

Manaus (AM), 30/05/2025 - Programa instalado em Manaus bonifica catadores para impedir que resíduos plásticos poluam rios da Amazônia. Foto: Sara Rangel/Divulgação

Repro­dução: No ano em que o Brasil vai sedi­ar a COP30, a gestão ade­qua­da de resí­du­os gan­ha mais força — Foto: Sara Rangel/Divulgação

De acor­do com o estu­do, 41,5% do que foi descar­ta­do pelos brasileiros e encam­in­hado para dis­posição final tiver­am des­ti­nação inad­e­qua­da, como os lixões, que rece­ber­am 35,5% dos resí­du­os ger­a­dos no país.

Grande parte desse lixo que é descar­ta­do irreg­u­lar­mente em Man­aus vai parar nos igara­pés e no Rio Negro e, para con­ter esse avanço, a prefeitu­ra tem insta­l­a­do eco­bar­reiras, uma espé­cie de bar­reira flu­tu­ante, para reduzir em mais de 50% o vol­ume de resí­du­os sóli­dos que são reti­ra­dos do rio.

Segun­do a admin­is­tração munic­i­pal, a cap­i­tal pro­duz mais de 2,3 mil toneladas de resí­du­os por dia, o equiv­a­lente a 575 cam­in­hões de caçam­ba cheios. Saco­las plás­ti­cas, embal­a­gens e gar­rafas PET são os prin­ci­pais com­po­nentes desse lixo.

“Quan­do ini­ci­amos a nos­sa gestão, eram de 600 a 700 toneladas de lixo por mês reti­radas do Rio Negro. Com a insta­lação das eco­bar­reiras, con­seguimos reduzir esse número para algo entre 200 e 250 toneladas men­sais. Isso rep­re­sen­ta uma redução de mais de 50% no vol­ume de resí­du­os den­tro do rio. É um tra­bal­ho ambi­en­tal­mente cor­re­to”, infor­mou o prefeito David Almei­da.

Em Man­aus, a maior parte do lixo cole­ta­do segue para o ater­ro munic­i­pal, emb­o­ra ape­nas 15% do vol­ume seja, de fato, rejeito.

De acor­do com a Asso­ci­ação Brasileira de Recu­per­ação Energéti­ca de Resí­du­os (Abre­ma), os out­ros 85% pode­ri­am ser reaproveita­dos na cadeia pro­du­ti­va, mas acabam descar­ta­dos de for­ma inad­e­qua­da.

* A repórter via­jou a con­vite da Plas­tic Bank

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