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Brasileira concorre a prêmio no Festival de Documentário de Amsterdã

Repro­dução: © Paulo Pinto/Agência Brasil

Mariana Luiza criou instalação que questiona projeto de branqueamento


Pub­li­ca­do em 02/11/2023 — 11:38 Por Elaine Patri­cia Cruz – Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

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Ao final de um labir­in­to sen­so­r­i­al, há duas salas. Na primeira delas, toda bran­ca, encon­tra-se o quadro A Redenção de Cam, uma pin­tu­ra fei­ta pelo espan­hol Modesto Bro­cos em 1895, quan­do ele já esta­va rad­i­ca­do no Brasil. Nes­ta sala tam­bém é apre­sen­ta­do um vídeo com ima­gens de arqui­vo mostran­do que o país já abrigou um pro­je­to de euge­nia (teo­ria de que seria pos­sív­el cri­ar seres humanos mel­ho­ra­dos a par­tir do con­t­role genéti­co). Já na segun­da sala, que sim­u­la uma mata fecha­da, toda escu­ra, um filme é pro­je­ta­do entre os reflex­os de um pequeno lago ques­tio­nan­do o pro­je­to racista de bran­quea­men­to da pop­u­lação que esteve em cur­so no país.

Essa insta­lação imer­si­va, poéti­ca e críti­ca sobre a história brasileira, cri­a­da pela roteirista e doc­u­men­tarista Mar­i­ana Luiza, chama-se Redenção e é o úni­co pro­je­to brasileiro sele­ciona­do para a cat­e­go­ria com­pet­i­ti­va de doc­u­men­tários imer­sivos do Fes­ti­val Inter­na­cional de Doc­u­men­tário de Ams­ter­dã (IDFA), que é con­sid­er­a­do o maior fes­ti­val de doc­u­men­tários do mun­do. Essa exper­iên­cia imer­si­va ficará disponív­el na gale­ria de arte LND­W­Stu­dio. Neste ano, o fes­ti­val está mar­ca­do para o perío­do de 10 a 19 de novem­bro.

Em entre­vista à Agên­cia Brasil, Mar­i­ana Luiza con­ta que tem estu­da­do o pro­je­to de bran­quea­men­to do país e que isso surgiu por um ques­tion­a­men­to famil­iar. “Eu sem­pre tra­bal­hei com iden­ti­dade e per­tenci­men­to porque eu sem­pre fiquei num lim­bo de não saber, não enten­der dire­ito o que eu era, qual era a min­ha iden­ti­dade racial. Sou uma pes­soa mis­ci­ge­na­da: eu ten­ho irmão bran­co, um pai bran­co e uma mãe mestiça que nem eu. Isso foi me levan­do a ques­tionar por que eu não con­seguia enten­der quem eu era.”

São Paulo SP 30/10/2023 Mariana Luiza, escritora e roteirista, participa do Festival Internacional de Documentário de Amsterdã (IDFA). Reprodução de fotos da avó de Mariana. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
Reproidução: Repro­dução de fotos da avó de Mar­i­ana Luiza — Paulo Pinto/Agência Brasil

Esse ques­tion­a­men­to se fez mais forte quan­do a doc­u­men­tarista obser­vou duas fotos de sua avó Div­ina: uma delas, uma foto de época, orig­i­nal, em que se nota o cabe­lo cre­spo e a pele negra (à dire­i­ta na imagem ao lado). A out­ra, um retra­to de sua avó que depois ela col­oriu com aquarela e se pin­tou com a pele bran­ca e o cabe­lo ondu­la­do (à esquer­da). “Min­ha avó se acha­va bran­ca e que­ria que a gente fos­se bran­co”, lem­bra. “O que me chamou mui­ta atenção é que eu vivi com essa foto da min­ha avó a vida inteira e eu nun­ca tin­ha perce­bido que ela tin­ha se pin­ta­do de bran­co. Isso para mim foi o mais chocante”, rela­ta.

Foi desse proces­so pes­soal, quan­do teve a per­cepção de que sua avó era negra, mas não se via como tal, que ela começou a pesquis­ar sobre qual era o papel do Esta­do brasileiro na cri­ação da iden­ti­dade nacional. “Exis­tia, de fato, um pro­je­to para bran­quear o Brasil e isso acon­te­ceu des­de a Inde­pendên­cia. Vin­ha-se atrain­do colonos alemães ou europeus para bran­quear o Brasil des­de a Inde­pendên­cia. Mas a par­tir do final do sécu­lo 19 e iní­cio do sécu­lo 20 é que isso teve uma explosão maior no Brasil. Nes­sa época tam­bém estavam surgin­do as pseudo­ciên­cias de euge­nia, que foi cul­mi­nar no nazis­mo na Ale­man­ha, por exem­p­lo. No Brasil, isso apare­ceu de uma for­ma difer­ente porque o país já era muito mis­ci­ge­na­do. Não fun­cionar­ia para a nação sim­ples­mente apartar bran­cos e negros, porque não dava: a maio­r­ia da pop­u­lação já era mestiça. Então, a ‘solução’ encon­tra­da pelos eugenistas para resolver esse prob­le­ma seria bran­quear grada­ti­va­mente [a pop­u­lação].”

Redenção

Esse pro­je­to de bran­quea­men­to grada­ti­vo ou de exter­mínio da raça negra é o que se vê na pin­tu­ra A Redenção de Cam, de Modesto Bro­cos. A tela mostra uma avó negra, uma mãe mestiça e um pai bran­co olhan­do para seu bebê, de pele clara.

Essa pin­tu­ra, que faz parte do acer­vo do Museu de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, foi apre­sen­ta­da em 1911 no Con­gres­so Uni­ver­sal das Raças, em Lon­dres, como um sím­bo­lo da ide­olo­gia de bran­quea­men­to racial no Brasil. Nesse con­gres­so, o médi­co João Batista de Lac­er­da (1846–1915) defend­eu seu pro­je­to de exter­mínio dos negros. “O negro pas­san­do a bran­co, na ter­ceira ger­ação, por efeito do cruza­men­to de raças”, disse ele, na ocasião.

Para mostrar ao mun­do que o Brasil já teve um pro­je­to de exter­mínio de parte de sua pop­u­lação, a brasileira vai apre­sen­tar um labir­in­to sen­so­r­i­al em Ams­ter­dã para redis­cu­tir e apro­fun­dar reflexões sobre a pin­tu­ra eugenista de Bro­cos.

“Nes­sa primeira sala [do labir­in­to], que é toda bran­ca, você vai ver o quadro que a gente fil­mou fazen­do um pas­seio nos detal­h­es”, descreve a doc­u­men­tarista. “Depois tem um vídeo de mate­r­i­al de arqui­vo que expli­ca o que foi esse pro­je­to de nação. Então, a gente vai con­tan­do com doc­u­men­tos e com ima­gens como foi que o Brasil foi con­stru­in­do esse ide­al de um país, de uma Europa dos trópi­cos”, com­ple­ta.

Ela tam­bém pre­tende mostrar que esse pro­je­to foi ven­ci­do por uma resistên­cia que sem­pre ficou escon­di­da na história ofi­cial, mas se fez pre­sente pela força do movi­men­to negro.

“Quan­do você ter­mi­na o labir­in­to, haverá uma sala toda escu­ra, com um lago e cheiro de mata. O que eu que­ria faz­er era a mata como um ide­al civ­i­liza­tório, um pro­je­to de civ­i­liza­ção con­tra esse ‘pro­gres­so’ que não deu cer­to porque não é um pro­gres­so, não é um desen­volvi­men­to. O filme se espel­ha na água para forçar as pes­soas a olharem para o espel­ho d’água e, em vez de verem sua própria imagem, elas verão ima­gens de pes­soas negras que estão resistin­do a esse pro­je­to”, con­ta.

Em seu vídeo pro­je­ta­do na água, uma répli­ca de A Redenção de Cam será queima­da. “Queimar um quadro é tam­bém cri­ar um novo sím­bo­lo”, desta­ca. “Queríamos pen­sar o fogo como esse ele­men­to pri­mor­dial da cri­ação, mas tam­bém como um ele­men­to de destru­ição para o renasci­men­to. Então, o que a gente está queren­do ali, sim­boli­ca­mente, é destru­ir esse pro­je­to de nação para que a gente ten­ha um pro­je­to de per­tenci­men­to para todo mun­do.”

Nesse labir­in­to de som­bras e luzes, água e fogo, cheiros e ima­gens, Mar­i­ana Luiza quer insti­gar dis­cussões. Entre elas, se caberia redenção a um país que já dese­jou exter­mi­nar seu povo. “Acho que não dá para red­imir [o país], acho que é pos­sív­el nego­ciar. Não vamos con­seguir destru­ir essa nação, mas nego­ciar um pro­je­to de nação que seja per­ten­cente para todas as pes­soas”, obser­va.

Edição: Juliana Andrade

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