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Cannabis medicinal: conheça histórias de quem luta para ter o remédio

Repro­dução: © Divul­gação Polí­cia Fed­er­al

Sancionada nesta semana, lei em SP prevê oferta do remédio no SUS


Pub­li­ca­do em 04/02/2023 — 11:13 Por Thi­a­go Padovan — Repórter da TV Brasil — São Paulo

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“Faz nove anos que eu nun­ca mais pre­ci­sei levar min­ha fil­ha para o pron­to socor­ro por causa de con­vul­são”. O rela­to é de Cid­in­ha Car­val­ho, mãe de Clári­an Car­val­ho, hoje com 19 anos, e que tra­ta a Sín­drome de Dravet com uso do óleo de cannabis, remé­dio extraí­do da cannabis sati­va, plan­ta pop­u­lar­mente con­heci­da como macon­ha. Na últi­ma terça-feira (31), foi san­ciona­da a Lei 17.618/2023, que insti­tui a políti­ca de fornec­i­men­to gra­tu­ito dess­es medica­men­tos no Sis­tema Úni­co de Saúde (SUS) em São Paulo.

A par­tir de ago­ra, o gov­er­no paulista terá de reg­u­la­men­tar e esta­b­ele­cer regras para dis­tribuição dos medica­men­tos. Em 30 dias, a par­tir da pub­li­cação no Diário Ofi­cial, dev­erá ser com­pos­ta uma comis­são, for­ma­da por téc­ni­cos, asso­ci­ações de pesquisa e rep­re­sen­tantes de pacientes e famil­iares, que ficará respon­sáv­el por for­mu­lar as dire­trizes. A lei deve entrar em vig­or em 90 dias.

Antes, os remé­dios só eram forneci­dos pelo gov­er­no paulista por meio de decisão judi­cial. Em nota, o gov­er­no diz que a medi­da “min­i­miza os impactos finan­ceiros da judi­cial­iza­ção e, sobre­tu­do, garante a segu­rança dos pacientes, con­sideran­do pro­to­co­los ter­apêu­ti­cos efi­cazes e aprova­dos pelas autori­dades de Saúde”.

Para a psiquia­tra Clarisse Moreno Farset­ti, espe­cial­iza­da em ter­apia can­abinóide, a lei é um avanço, sobre­tu­do para quem não tem condições de com­prar a med­icação. “A gente começa a ter um meio para que pes­soas, que não tem condições finan­ceiras de arcar com o trata­men­to, muitas vezes nem a papela­da mes­mo, a com­pra dos primeiros pro­du­tos. Provavel­mente, depois da reg­u­la­men­tação, isso vai ser pos­sív­el”.

Clárian e a Síndrome de Dravet

A notí­cia é tam­bém um alen­to para os pacientes que depen­dem dos medica­men­tos à base de cannabis e que, atual­mente, só con­seguem obtê-los por meio de medi­das judi­ci­ais, asso­ci­ações da sociedade civ­il e out­ros mecan­is­mos pri­va­dos. Moradores na Vila For­mosa, zona les­ta de São Paulo, Cid­in­ha Car­val­ho e o mari­do, Rafael Car­val­ho, desco­bri­ram que Clári­an era por­ta­do­ra da Sín­drome de Dravet quan­do a fil­ha era bebê e apre­sen­tou um quadro de con­vul­são. Doença genéti­ca rara, a sín­drome, tam­bém con­heci­da como Epilep­sia Mio­clôni­ca Grave da Infân­cia (EMGI), é pro­gres­si­va, inca­pac­i­tante e não tem cura. Car­ac­ter­i­za-se por crises epilép­ti­cas que podem durar horas e atra­so do desen­volvi­men­to psi­co­mo­tor e cog­ni­ti­vo.

Antes de ini­ciar o trata­men­to com óleo de cannabis, Cid­in­ha con­ta que a fil­ha era apáti­ca, não inter­a­gia e con­vul­sion­a­va por mais de uma hora, com crises gen­er­al­izadas. Não con­seguia elab­o­rar fras­es com­ple­tas e sem coor­de­nação moto­ra: não cor­ria, não pula­va, não tran­spi­ra­va e sequer subia escadas soz­in­ha. Durante o sono, tin­ha episó­dios de apneia, dis­túr­bio que afe­ta a res­pi­ração, fazen­do com que parasse de res­pi­rar uma ou mais vezes ao lon­go da noite.

Cidinha, Rafael e Clárian enfrentaram longa jornada para ter acesso a medicamentos à base de cannabis
Repro­dução: Rafael, Clári­an e Cid­in­ha enfrentaram lon­ga jor­na­da para ter aces­so a medica­men­tos à base de cannabis — Arqui­vo pes­soal

De acor­do com a mãe, com o óleo, a saúde de Clári­an apre­sen­tou mel­ho­ra sig­ni­fica­ti­va. As crises dimin­uíram em 80% e ficaram mais cur­tas, com duração de menos de um min­u­to. Após qua­tro meses de uso, ela começou a tran­spi­rar. E em oito meses, pulou em uma cama elás­ti­ca pela primeira vez. O equi­líbrio, o tônus mus­cu­lar e o sis­tema cog­ni­ti­vo estão mel­hores, e a apneia durante o sono desa­pare­ceu. Clári­an, inclu­sive, con­seguiu ini­ciar o proces­so de alfa­bet­i­za­ção.

Habeas corpus

Até desco­brirem os bene­fí­cios do óleo de cannabis para o trata­men­to da fil­ha, Cid­in­ha e Rafael pas­saram por uma lon­ga jor­na­da de apren­diza­do e de luta con­tra o pre­con­ceito. Foram muitos pas­sos: primeiro, tin­ham que impor­tar o remé­dio a um alto cus­to  (cer­ca de 500 dólares, na época); em segui­da, con­seguiram uma doação men­sal da med­icação por meio de uma “rede sec­re­ta” no Brasil; assumi­ram o risco de cul­ti­var a plan­ta sem autor­iza­ção; apren­der­am a extrair o óleo com uma orga­ni­za­ção chile­na; e, por fim, con­seguiram a autor­iza­ção da Justiça para cul­ti­var em casa a cannabis com fins med­i­c­i­nais.

Em 2016, o casal entrou com pedi­do na Justiça para ter o dire­ito de cul­ti­var e extrair o óleo em casa para fins med­i­c­i­nais. Nes­sa época, con­taram com o apoio da Rede Jurídi­ca pela Refor­ma da Políti­ca de Dro­gas (Rede Refor­ma).

Dois anos antes, pacientes e suas famílias já tin­ham ini­ci­a­do a luta para con­seguir esse dire­ito, já que o Esta­do brasileiro não forne­cia o medica­men­to e havia a ameaça de serem pre­sos por cul­ti­var a plan­ta em casa, ape­sar de des­ti­na­da para fins med­i­c­i­nais. No mes­mo ano em que Cid­in­ha e Rafael ingres­saram com o pedi­do, um fato mar­cou essa jor­na­da: um dos fun­dadores da Rede Refor­ma, do Rio de Janeiro, foi pre­so por ter cul­ti­vo de macon­ha para fins ter­apêu­ti­cos em sua residên­cia. A par­tir desse caso, a rede pas­sou a usar o habeas cor­pus pre­ven­ti­vo, o mecan­is­mo jurídi­co uti­liza­do para pro­te­ger aque­les que já tiver­am a liber­dade coagi­da ou aque­les que estão sob a iminên­cia de serem pre­sos, para que as famílias tivessem o dire­ito de cul­ti­vo.

“É assim que surge a tese, da junção da cria­tivi­dade dos nos­sos fun­dadores com a sen­si­bil­i­dade con­tra as injustiças cau­sadas pela Lei de Dro­gas, que começou a afe­tar a saúde de tan­tos brasileiros, prej­u­di­can­do o aces­so a essa saúde, à dig­nidade humana”, expli­ca a advo­ga­da da Rede Refor­ma, Gabriel­la Ari­ma. A tese foi repli­ca­da para mil­hares de out­ros casos. Hoje, esti­ma-se que exis­tam cer­ca de 2 mil salvos-con­du­tos no Brasil, grande parte con­ce­di­do pelo Tri­bunal Fed­er­al de São Paulo (TRF3).

Com o habeas cor­pus em mãos, Cid­in­ha e Rafael pas­saram a cul­ti­var a plan­ta e a extrair o óleo em casa. E jun­to nasceu a Cul­tive – Asso­ci­ação de Cannabis e Saúde, com a mis­são de rep­re­sen­tar os anseios de quem neces­si­ta da cannabis como trata­men­to e defend­er a refor­ma das leis e políti­cas sobre dro­gas, de acor­do com o site da asso­ci­ação lid­er­a­da pelo casal.

Sobre a sanção da lei paulista, Cid­in­ha diz que o mais impor­tante é que seja cumpri­da. “Tão impor­tante quan­to a reg­u­la­men­tação é o esta­do cumprir. Nós temos três esta­dos que já san­cionaram, mas não estão cumprindo. Então, espero que São Paulo faça a difer­ença, mas para isso pre­cisa ter uma reg­u­la­men­tação”.

Próximos passos

Segun­do a advo­ga­da Gabriel­la Ari­ma, Goiás, Rio de Janeiro e Paraná já dis­põem de leis semel­hantes à san­ciona­da em São Paulo, porém ain­da há entrav­es ao aces­so aos remé­dios.  “Ain­da há uma difi­cul­dade dos pacientes obterem ess­es medica­men­tos via SUS, o que tor­na essas leis inócuas”, apon­ta.

Sobre como a Lei paulista pode con­tribuir para o avanço do debate sobre a políti­ca de dro­gas no país, a espe­cial­ista lem­bra que a leg­is­lação tra­ta do aces­so, o que ben­e­fi­cia a pop­u­lação de baixa ren­da, mas não traz mecan­is­mos que estim­ulem a pro­dução nacional dess­es medica­men­tos, reforçan­do a dependên­cia pelos pro­du­tos impor­ta­dos, mais caros. “De um lado, acho que a gente cam­in­ha para uma desmisti­fi­cação do tema, está cam­in­han­do para uma políti­ca públi­ca que, teori­ca­mente, abrange­ria os mais pobres, pen­san­do que hoje o trata­men­to com cannabis é carís­si­mo. Mas a gente não tem uma pro­dução inter­na dos óleos. Então, depen­demos de um mer­ca­do exter­no”, expli­ca.

A psiquia­tra Clarisse Farset­ti espera que, na rede públi­ca, os medica­men­tos à base de cannabis cheguem tam­bém para pacientes que sofrem de epilep­sias, doenças neu­rológ­i­cas e para os que estão em cuida­dos palia­tivos. “Em out­ros esta­dos, isso está acon­te­cen­do e a tendên­cia é que, com o tem­po, se fixe cada vez mais na nos­sa sociedade, e out­ras pes­soas tam­bém ten­ham aces­so ao trata­men­to”.

Já Cid­in­ha dese­ja que o proces­so de reg­u­la­men­tação seja feito em con­jun­to com a sociedade civ­il, prin­ci­pal­mente com os famil­iares, pacientes, médi­cos e advo­ga­dos pio­neiros nes­sa luta. “É pre­ciso capac­i­tar os médi­cos do SUS, não somente na pre­scrição, mas no atendi­men­to, no acom­pan­hamen­to de pacientes que fazem uso de can­abinóides. É pre­ciso faz­er uma reed­u­cação na parte poli­cial, ape­nas para enten­der a neces­si­dade do paciente, que pre­cisa do uso da cannabis”, afir­ma.

Edição: Car­oli­na Pimentel

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