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Casais homoafetivos ainda enfrentam preconceitos para adotar crianças

Repro­dução: © Tomaz Silva/Agência Brasil

Direitos da população LGBTQI+ são garantidos por decisões do STF


Publicado em 17/05/2024 — 07:36 Por Rafael Cardoso — Repórter da Agência Brasil — Rio de Janeiro

A ter­apeu­ta Car­oli­na Rua e a empresária Laís Guer­ra, que vão ado­tar uma cri­ança jun­tas, dizem que a mater­nidade começa no proces­so de preparação afe­ti­va para rece­ber o novo inte­grante da família — ges­tar um fil­ho no coração. A frase pode soar estran­ha, quan­do existe uma ideia fixa e lim­i­ta­da ao proces­so biológi­co.

“Des­de que a decisão de ter um fil­ho por adoção foi toma­da, tudo que faze­mos já con­sid­era a existên­cia dessa pes­soin­ha. Por exem­p­lo, nos mudamos recen­te­mente e a escol­ha do aparta­men­to depen­dia de ter um quar­to para nos­so fil­ho”, con­ta Car­oli­na, que tem 39 anos. “Com o tem­po e mui­ta ter­apia, fomos iden­ti­f­i­can­do que ges­tar bio­logi­ca­mente não era um dese­jo nos­so. Nós queríamos ser mães, mas não nos víamos grávi­das e foi aí que decidi­mos ges­tar pela adoção, ges­tar no coração”.

O cam­in­ho até a decisão não foi fácil, muito por causa de pressões famil­iares e soci­ais, que colo­cavam a alter­na­ti­va biológ­i­ca como a úni­ca legí­ti­ma, o que as duas enten­dem ser um tipo de resistên­cia mais comum para casais homoafe­tivos. No Dia Inter­na­cional de Com­bate à LGBT­fo­bia, a Agên­cia Brasil con­ver­sou com pes­soas que ain­da enfrentam pre­con­ceitos ao ten­tar ado­tar fil­hos por con­ta da ori­en­tação sex­u­al.

Na con­sul­ta fei­ta esta sem­ana pela reportagem ao Sis­tema Nacional de Adoção e Acol­hi­men­to (SNA), admin­istra­do pelo Con­sel­ho Nacional de Justiça (CNJ), 4.772 cri­anças e ado­les­centes esper­avam por pais ado­tivos. O número de adul­tos pre­tendentes era de 36.318.

De acor­do com o sis­tema, 21.292 cri­anças e ado­les­centes foram ado­ta­dos des­de 2019. Destas adoções, 1.353 foram feitas por casais homoafe­tivos, ou seja, 6,35% do total. O número vem crescen­do a cada ano, e pas­sou de 143 adoções em 2019 para 401 em 2023.

Não exis­tem entrav­es legais para que casais homoafe­tivos adotem cri­anças. O Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF) recon­heceu uniões estáveis do tipo em 2011 e nova decisão em 2015 reforçou esse dire­ito à adoção. O proces­so é o mes­mo para todos: reunir doc­u­men­tos, entre­vis­tas com psicól­o­gos e assis­tentes soci­ais e vis­i­tas a abri­gos, até que um juiz dê a aprovação. Ou, seja, hoje o prob­le­ma é essen­cial­mente social, de men­tal­i­dade de algu­mas pes­soas.

“É lamen­táv­el que ain­da haja quem defen­da um mod­e­lo restri­to de família, igno­ran­do a diver­si­dade e a riqueza das relações afe­ti­vas. Temos em mente que, como mães ado­ti­vas, desafi­are­mos ess­es estereóti­pos, mostran­do que amor, cuida­do e capaci­dade de cri­ar um ambi­ente acol­he­dor não têm nada a ver com ori­en­tação sex­u­al ou iden­ti­dade de gênero. Para nós, o que impor­ta é a capaci­dade de con­stru­ir vín­cu­los, dar amor e cuidar dos nos­sos fil­hos”, defende Laís, que tem 36 anos.

Rio de Janeiro (RJ), 14/05/2024 – A terapeuta Carolina Rua e a empresária Lais Guerra recebem auxílio do grupo Cores da Adoção que apoia famílias LGBTQIA+ no processo de adoção, posam para foto, em sua residência, no Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro — A ter­apeu­ta Car­oli­na Rua e a empresária Lais Guer­ra recebem auxílio do grupo Cores da Adoção que apoia famílias LGBTQIA+ no proces­so de adoção — Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

O casal está jun­to há 12 anos e vai apre­sen­tar em breve a doc­u­men­tação exigi­da para se habil­i­tar à adoção. Elas escol­her­am uma cri­ança de 0 a 5 anos, sem prefer­ên­cia de gênero e etnia, e não colo­cam restrições caso ten­ha doenças infec­to­con­ta­giosas. O proces­so todo pode durar até cin­co anos, mas elas já estão ansiosas e não descar­tam uma segun­da adoção depois, de uma cri­ança aci­ma dos 7 anos.

Nesse proces­so de preparação, Car­oli­na criou até um jogo para aju­dar pais aspi­rantes à adoção a enfrentar tabus comuns, rela­ciona­dos ao gênero, etnia e idade das cri­anças. O tema é basea­do no Har­ry Pot­ter, per­son­agem da ficção que tam­bém foi ado­ta­do tar­dia­mente.

“Digo que nos­so fil­ho, fil­ha ou fil­he já trans­for­mou de mil for­mas nos­sas vidas, nos abriu mun­dos novos e têm nos tor­na­do pes­soas mel­hores mes­mo antes de chegar”, diz Car­oli­na. “Se você entrar no site do sis­tema nacional de adoção vai perce­ber que a maio­r­ia das cri­anças é da etnia negra (pre­tas e par­das) e isso foi cru­cial para o nos­so movi­men­to de racial­iza­ção (somos bran­cas) e pela bus­ca de uma edu­cação antir­racista. Esta­mos envolvi­das em rodas de con­ver­sa com esse con­teú­do, já como preparação para uma família inter­ra­cial”.

Cores da Adoção

Para que a Car­oli­na e a Laís gan­has­sem mais con­fi­ança, foi essen­cial o tra­bal­ho do Cores da Adoção, um cole­ti­vo de vol­un­tários que com­par­til­ha exper­iên­cias e infor­mações téc­ni­cas sobre o proces­so de adoção e as buro­c­ra­cias envolvi­das. O grupo foi fun­da­do em 4 de agos­to de 2017. É for­ma­do por pais e mães de fil­hos ado­tivos, que fazem um tra­bal­ho vol­un­tário para aju­dar out­ras famílias a seguir o mes­mo cam­in­ho. O nome e o sím­bo­lo do grupo (com cores do arco-íris) rep­re­sen­tam a diver­si­dade das famílias aten­di­das, de todas as ori­en­tações sex­u­ais e gêneros, inclu­sive het­eros­sex­u­ais.

Eles afir­mam que uma das mis­sões é per­mi­tir que as famílias “com­par­til­hem da mel­hor for­ma pos­sív­el suas exper­iên­cias, angús­tias e pre­ocu­pações”, além de estim­u­lar na sociedade uma “ati­tude ado­ti­va que cele­bre toda a for­ma de amor e val­orize todas as famílias e tipos de laços de afe­to”.

Eles têm uma sede para os encon­tros men­sais em Vargem Peque­na e vão inau­gu­rar uma novo local no Sesc de Copaca­bana na próx­i­ma sem­ana, dia 21 de maio. As reuniões são gra­tu­itas e aber­tas a todos os que pre­ten­dem ado­tar uma cri­ança. O Cores da Adoção tem o apoio das qua­tro Varas da Infân­cia, da Juven­tude e do Idoso da Comar­ca da cap­i­tal flu­mi­nense.

“O que leva uma cri­ança para adoção não é uma história boni­ta. Elas geral­mente são arran­cadas de lares dis­fun­cionais, por terem sofri­do abu­so, aban­dono, neg­ligên­cia ou vio­lên­cia. E como faz­er com que essa aprox­i­mação com a nova família seja exi­tosa? Que não gere na cri­ança um segun­do trau­ma? O Cores aju­da pes­soas que querem ado­tar a refle­tir sobre temas que as tiram do sen­so comum. A qual­i­fi­cação da ges­tação ado­ti­va só vem real­mente pelo esforço da sociedade civ­il enga­ja­da”, diz o advo­ga­do Saulo Amor­im, um dos fun­dadores e coor­de­nadores do Cores da Adoção.

Ape­sar de não ser volta­do exclu­si­va­mente para a pop­u­lação LGBT+, o cole­ti­vo tem cumpri­do papel impor­tante de aju­dar ess­es gru­pos, his­tori­ca­mente mar­gin­al­iza­dos no proces­so de adoção.

“O fato de não terem dire­ito no pas­sa­do, não quer diz­er que pes­soas LGBTQI+ não ten­ham sido pais e mães. Quan­tas mul­heres viver­am jun­tas como se fos­sem pri­mas ou ami­gas e cri­aram fil­hos? Eram casais lés­bi­cos. Quan­tos home­ns cri­aram fil­hos de suas irmãs e eram homos­sex­u­ais, mas escon­di­dos porque a sociedade não os per­mi­ti­am viv­er isso pub­li­ca­mente? As famílias LGBTQI+ não são con­tem­porâneas. Sem­pre exi­s­ti­ram. Mas antes vivi­am em silên­cio, nos gue­tos, apartadas dos dire­itos que eram exclu­sivos de het­eros­sex­u­ais”, diz Saulo.

Henrique e Ryan

O engen­heiro Hen­rique dos San­tos Poley, de 27 anos, e o assis­tente de con­tabil­i­dade Ryan Poley dos San­tos, de 22 anos, estão jun­to des­de 2021. No ano seguinte se casaram e ten­taram dar iní­cio à habil­i­tação para ado­tar uma cri­ança. Mas, acabaram esbar­ran­do na fal­ta de con­hec­i­men­to e o proces­so não foi para a frente. Em dezem­bro de 2023, com a aju­da do Grupo Cores da Adoção, con­seguiram dar entra­da ofi­cial­mente no proces­so. Esta sem­ana, tiver­am a aprovação do Min­istério Públi­co e estão na expec­ta­ti­va para avançar mais um está­gio, quan­do o juiz lib­era o aces­so do casal ao SNA.

Casais homoafetivos ainda enfrentam preconceitos para adotar crianças. - Engenheiro Henrique dos Santos Poley, de 27 anos, e o assistente de contabilidade Ryan Poley dos Santos, de 22 anos. Foto: Arquivo Pessoal
Repro­dução: Rio de Janeiro — Casais homoafe­tivos ain­da enfrentam pre­con­ceitos para ado­tar cri­anças. O engen­heiro Hen­rique dos San­tos Poley, de 27 anos, e o assis­tente de con­tabil­i­dade Ryan Poley dos San­tos, de 22 —  Foto Arqui­vo pes­soal

Eles sem­pre son­haram em ser pais, antes mes­mo de se con­hecerem. Chegaram a con­sid­er­ar insem­i­nação arti­fi­cial, mas decidi­ram pela adoção. Ain­da não defini­ram prefer­ên­cia de sexo das cri­anças, mas con­sid­er­am ado­tar até dois irmãos de uma vez.

“O coração não cabe den­tro do peito. Temos esse dese­jo muito grande de ser­mos pais. No últi­mo Natal, preparamos o ter­reno na família. Infor­mamos que está­va­mos nesse proces­so de adoção. Foi uma fes­ta ger­al nas duas famílias. Somos muito unidos, todos aceitaram, enten­der­am o nos­so son­ho e embar­caram jun­tos”, con­ta Hen­rique.

Eles ain­da não tiver­am nen­hu­ma exper­iên­cia hos­til por ser um casal homoafe­ti­vo em bus­ca da adoção, mas já tiver­am de ouvir questões pre­con­ceitu­osas de alguns cole­gas com quem con­vivem.

“Acabamos de pas­sar pelo Dia das Mães. E nos per­gun­taram quem rep­re­sen­taria a mãe em uma data como essa, porque dev­e­ria ter uma figu­ra fem­i­ni­na na família. Sendo que o meu mari­do cresceu sem uma figu­ra mas­culi­na na vida dele, porque não teve con­ta­to com o pai dele. E eu não cresci com a min­ha mãe, só com o meu pai. Então, as pes­soas acabam trazen­do algu­mas situ­ações pre­con­ceitu­osas para algo que nem é con­cre­to ain­da. Os fil­hos nem chegaram ain­da, mas já ante­ci­pam ess­es cenários”, diz Hen­rique.

O futuro pai reforça que, quan­do se tratam de cri­anças e ado­les­centes à espera de um novo lar, o que está em jogo é a pos­si­bil­i­dade de ofer­e­cer o acol­hi­men­to necessário para o desen­volvi­men­to delas.

“As pes­soas pre­cisam enten­der que religião, ori­en­tação sex­u­al e iden­ti­dade de gênero não são parâmet­ros para diz­er quem pode prover afe­to para uma cri­ança. Um ambi­ente saudáv­el para cri­anças e ado­les­cente inde­pende dessas questões”, afir­ma Hen­rique. “O mais impor­tante é garan­tir um ambi­ente que seja lugar de amor e de afe­to, apren­diza­do, de cresci­men­to saudáv­el. Uma família que ten­ha diál­o­go, tro­ca, com­preen­são, escu­ta. Para a cri­ança, inde­pen­den­te­mente da com­posição famil­iar em que ela este­ja. Aci­ma de tudo um lugar onde pos­sa rece­ber afe­to”.

O coor­de­nador do Cores da Adoção endos­sa o dis­cur­so e rebate os argu­men­tos de gru­pos con­ser­vadores con­trários à adoção por pes­soas LGBTQI+.

“Qual é a relação da ori­en­tação sex­u­al ou da con­for­mação dos cor­pos dos pais no desen­volvi­men­to do caráter ou da moral das cri­anças? De nada me influ­en­ciou a ori­en­tação sex­u­al do meu pai ou o cor­po dele para me definir como pes­soa. As pes­soas de matriz con­ser­vado­ra que se assus­tam com a per­spec­ti­va de uma cri­ança ser cri­a­da por dois pais ou por duas mães estão muito mais pre­ocu­pa­dos com aspec­tos sex­u­ais do que pro­pri­a­mente com os inter­ess­es da infân­cia. Se essa relação fos­se deter­mi­nante para con­stru­ir a sex­u­al­i­dade da cri­ança, não have­ria pes­soas LGBTQI+, porque a maio­r­ia de nós nasceu em famílias het­ero­nor­ma­ti­vas”, diz Saulo Amor­im, coor­de­nador do Cores da Adoção.

“Existe tam­bém um dis­cur­so muito des­on­esto, que frentes reli­giosas cos­tu­mam falar muito, que é ‘Deus criou o homem e a mul­her, então esse deve ser o padrão’. Isso é pre­ocu­pante na per­spec­ti­va da democ­ra­cia (e não somos uma teoc­ra­cia), quan­do vozes se lev­an­tam para diz­er que deter­mi­na­da inter­pre­tação den­tro do uni­ver­so cristão é o mod­e­lo que deve ser apli­ca­do para toda uma nação. Que pode até ter uma maio­r­ia cristã, mas não exclu­si­va­mente. Exis­tem várias out­ras práti­cas de fé. E muitas delas divergem de con­ceitos defen­di­dos por quem acred­i­ta que existe Deus, que criou algu­ma coisa e que deter­mi­nou isso em dois gêneros”, com­ple­men­ta Saulo.

Edição: Graça Adju­to

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