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Cerca de 2,4 mil famílias ocupam imóveis abandonados no centro do Rio

Repro­dução: © Tomaz Silva/Agência Brasil

Um desses locais é a Ocupação Zumbi dos Palmares, na Avenida Venezuela


Publicado em 07/07/2024 — 12:09 Por Vitor Abdala — Repórter da Agência Brasil — Rio de Janeiro

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O cheiro de uri­na é forte ao se aprox­i­mar do edifí­cio. Lençóis sub­stituem as janelas. Arbus­tos crescem pela facha­da, dan­do ao pré­dio de oito andares um aspec­to a mais de aban­dono. Tudo parece estar cain­do aos pedaços, se des­fazen­do aos poucos. No portão de fer­ro pre­to da entra­da, dois algar­is­mos pin­ta­dos em bran­co infor­mam, ao cor­reio, que ali é o número 53 da Aveni­da Venezuela, na zona por­tuária da cidade do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro (RJ), 04/07/2024 – Fachada da Ocupação Zumbi dos Palmares, no centro do Rio. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução: Ocu­pação Zumbi dos Pal­mares, no cen­tro do Rio – Tomaz Silva/Agência Brasil

Esse imóv­el insalu­bre e inse­guro, que inclu­sive está ofi­cial­mente inter­di­ta­do pela Defe­sa Civ­il, é o “lar” de cer­ca de 100 pes­soas, que, por diver­sos motivos, pre­cis­aram bus­car uma mora­dia e con­sid­er­aram que ali seria a alter­na­ti­va menos pior.

O local é ape­nas um entre as 69 edi­fi­cações aban­don­adas na região cen­tral do Rio de Janeiro, que foram trans­for­madas em mora­dia por 2.435 famílias sem teto, segun­do lev­an­ta­men­to pub­li­ca­do recen­te­mente pelo Insti­tu­to de Pesquisa e Plane­ja­men­to Urbano e Region­al (Ippur) da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ), Obser­vatório das Metrópoles e Cen­tral de Movi­men­tos Pop­u­lares.

De acor­do com a pesquisa, 50 imóveis ocu­pa­dos (72,5% deles) são pri­va­dos e 19 são públi­cos (27,5%). A maio­r­ia (34 imóveis) é for­ma­da por pré­dios ver­ti­cal­iza­dos. Mas tam­bém há ocu­pações em anti­gos casarões (18), con­jun­tos de casas (11), ter­renos ocu­pa­dos (cin­co) e insta­lações fab­ris ou galpões (um).

Em 30 ocu­pações vis­i­tadas, o estu­do con­sta­tou que as famílias vivi­am geral­mente em cômo­d­os uni­fa­mil­iares. Mas tam­bém foram iden­ti­fi­ca­dos cômo­d­os nos quais residi­am mais de uma família. Os pesquisadores tam­bém perce­ber­am que cer­ca de 25% dos cômo­d­os eram ocu­pa­dos por mães solos e que mais de 500 cri­anças moravam ness­es imóveis.

O lev­an­ta­men­to mostrou que a ocu­pação dess­es imóveis se tor­na alter­na­ti­va habita­cional para os seg­men­tos soci­ais mais vul­neráveis, como mul­heres pre­tas, mães solos, pes­soas em situ­ação de rua, egres­sos do sis­tema pen­i­ten­ciário, desem­pre­ga­dos, migrantes, pes­soas LGBTQIA+ víti­mas de vio­lên­cia, entre out­ros gru­pos soci­ais vul­neráveis.

Ocupação Zumbi dos Palmares

No caso do número 53 da Aveni­da Venezuela, dezenas de famílias, com idosos, adul­tos, jovens e cri­anças, se divi­dem em cômo­d­os impro­visa­dos espal­ha­dos pelos andares daque­le pré­dio aban­don­a­do, numa região da cidade que vem receben­do mil­hões de reais em inves­ti­men­tos para revi­tal­iza­ção, des­de antes dos Jogos Olímpi­cos Rio 2016.

O cole­ti­vo de moradores, chama­do de Ocu­pação Zumbi dos Pal­mares, começou em 2005 e teve que enfrentar uma reti­ra­da força­da em 2011, mas, diante da per­manên­cia da situ­ação de aban­dono da edi­fi­cação, voltou a sofr­er ocu­pações por novas famílias nos anos seguintes. A atu­al ocu­pação começou pouco antes do iní­cio pan­demia de covid-19.

Quase 20 anos se pas­saram des­de a primeira ocu­pação por pes­soas sem teto e as incertezas sobre o futuro per­manece entre aque­les que vivem no local. O pro­pri­etário do edifí­cio, o Insti­tu­to Nacional do Seguro Social (INSS), ten­ta reaver a posse do imóv­el na Justiça.

O pré­dio, que já foi sede do Insti­tu­to de Aposen­ta­do­ria e Pen­sões dos Empre­ga­dos em Trans­portes e Car­gas (Iapetec) está sem uso pelo INSS há anos e é clas­si­fi­ca­do pelo insti­tu­to como “não opera­cional”, segun­do o Núcleo de Asses­so­ria Jurídi­ca Pop­u­lar (Najup), da Fac­ul­dade de Dire­ito da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ain­da de acor­do com o Najup, o pré­dio encon­tra-se em proces­so de trans­fer­ên­cia para a Sec­re­taria de Patrimônio da União (SPU), que, por sua vez, infor­mou que o imóv­el ain­da não está sob sua admin­is­tração.

Um lev­an­ta­men­to real­iza­do pelo Najup em 2022, com 54 moradores da ocu­pação Zumbi dos Pal­mares, mostrou que 85,2% são pre­tos ou par­dos, 64,8% são mul­heres cis e 3,7% são mul­heres trans. Entre os chefes de família, 63% são do sexo fem­i­ni­no, das quais 34,3% são mães solo. Dos moradores, 61 eram cri­anças e ado­les­centes.

“São famílias que estavam em out­ras ocu­pações urbanas na região cen­tral, tam­bém precárias; muitas pes­soas que estavam em situ­ação de rua; algu­mas mul­heres víti­mas de vio­lên­cia domés­ti­ca; algu­mas pes­soas trans”, afir­ma a pro­fes­so­ra da Fac­ul­dade Nacional de Dire­ito da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ) Mar­i­ana Trot­ta, que coor­de­na o Najup. “É um públi­co majori­tari­a­mente de camelôs, cata­dores de mate­r­i­al reci­cláv­el e algu­mas pes­soas que vivem ape­nas de doação. São pes­soas extrema­mente vul­ner­a­bi­lizadas”.

Dificuldades

Laris­sa Rodrigues, de 26 anos, vive com três de seus cin­co fil­hos. Fug­in­do de uma situ­ação de vio­lên­cia domés­ti­ca, ela saiu de sua casa e pre­cisou bus­car um novo refú­gio.

“Faz três anos que eu moro aqui, mas o pré­dio é cheio de rachaduras e bal­ança muito. A água é escas­sa e a bom­ba só con­segue jog­ar até o quar­to andar. Quem mora no quin­to e sex­to, tem que descer pra bus­car água. E a luz é com­pli­ca­da, porque só tem luz quem con­segue com­prar uma fiação. Quem não tem din­heiro pra com­prar fio, não tem luz”.

Rio de Janeiro (RJ), 04/07/2024 – A moradora, Larissa Rodrigues na Ocupação Zumbi dos Palmares, no centro do Rio. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução: Laris­sa Rodrigues mora com três, dos cin­co fil­hos na ocu­pação – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Laris­sa, que é uma ben­efi­ciária do Pro­gra­ma Bol­sa Família, mas vende doces para com­ple­men­tar a ren­da, diz que, dia dess­es, teve um son­ho aus­pi­cioso. “Son­hei que vin­ha uma pes­soa me procu­ran­do, com uma chave”, con­ta esper­ançosa. “Quem sabe não é a chave de uma casa nova chegan­do”, afir­mou.

A man­i­cure Thayane Cristi­na, de 28 anos, tam­bém teve que sair de casa, víti­ma de um rela­ciona­men­to abu­si­vo, com suas fil­has. “Eu me sep­a­rei do meu mari­do e fiquei uma sem­ana na pra­ia, com as cri­anças, sem ter pra onde ir. Antes de vir pra cá, eu ten­tei viv­er em um out­ro casarão. Era estran­ho viv­er sem água e sem luz. Mas para sair daque­le sofri­men­to que eu vivia na min­ha casa, eu tive que ir pra lá. Depois eu vim pra cá, que era mel­hor e acabei fican­do”.

Hoje ela tem qua­tro fil­has, com idades entre um e nove anos. Mes­mo viven­do em um imóv­el com risco estru­tur­al há cer­ca de dois anos, Thayane diz que pref­ere ficar ali do que na rua. Ela entende que a mel­hor solução para os moradores da Zumbi dos Pal­mares seria a refor­ma do pré­dio para que eles pudessem con­tin­uar no local. Se não for pos­sív­el, ela gostaria de morar em out­ro lugar no cen­tro da cidade.

“Todos os dias é o mes­mo deses­pero, de alguém chegar aqui, despe­jar a gente e a gente não ter pra onde ir. Todo mun­do aqui tem uma história. Ninguém está aqui porque quer”, diz Thayane. “O risco de viv­er aqui é níti­do pelas rachaduras na parede. Mas se a gente sair daqui, vai pra onde com esse tan­to de cri­ança?”

Para bus­car uma solução para o pré­dio da aveni­da Venezuela e seus moradores, o Min­istério Públi­co Fed­er­al con­vo­cou uma audiên­cia públi­ca, para o próx­i­mo dia 16. Foram con­vi­da­dos rep­re­sen­tantes do INSS, da Sec­re­taria de Patrimônio da União, do Min­istério das Cidades e das sec­re­tarias estad­ual e munic­i­pal de Habitação.

Segun­do o procu­rador region­al dos Dire­itos do Cidadão adjun­to no Rio de Janeiro, Julio Arau­jo, o obje­ti­vo da audiên­cia públi­ca é garan­tir a res­olução dos prob­le­mas estru­tu­rais do imóv­el e a des­ti­nação do pré­dio para mora­dia digna das famílias de baixa ren­da.

“O Min­istério Públi­co entende que, inde­pen­den­te­mente dos prob­le­mas estru­tu­rais do imóv­el e da neces­si­dade even­tu­al de reti­ra­da tem­porária dos moradores, é fun­da­men­tal garan­tir a des­ti­nação daque­le imóv­el para uma final­i­dade social e uma final­i­dade social de mora­dia, já que é um pré­dio vago que o INSS não ocu­pa, [um pré­dio] que não cumpre sua função social bas­tante tem­po”, expli­cou Arau­jo, à Agên­cia Brasil.

Autoridades

A Defe­sa Civ­il Munic­i­pal real­i­zou 23 vis­to­rias no pré­dio da aveni­da Venezuela des­de 2007, sendo a últi­ma delas em 29 de maio deste ano. Segun­do o órgão, durante esta últi­ma inspeção, os téc­ni­cos iden­ti­ficaram “o pés­si­mo esta­do de con­ser­vação do local, com condições insalu­bres e insta­lações clan­des­ti­nas que podem oca­sion­ar risco de incên­dio. O imóv­el foi inter­di­ta­do pela Defe­sa Civ­il e o doc­u­men­to foi entregue aos respon­sáveis do INSS, uma vez que a vis­to­ria foi fei­ta com a pre­sença de rep­re­sen­tantes do insti­tu­to”.

A Defe­sa Civ­il infor­mou que tam­bém encam­in­hou o lau­do téc­ni­co para a Sec­re­taria Munic­i­pal de Assistên­cia Social e para a Sub­prefeitu­ra do Cen­tro.

Rio de Janeiro (RJ), 04/07/2024 – Fachada da Ocupação Zumbi dos Palmares, no centro do Rio. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução:  Ocu­pação Zumbi dos Pal­mares, na Aveni­da Venezuela. Pré­dio per­tence ao INSS – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Segun­do Mar­i­ana Trot­ta, os prob­le­mas estru­tu­rais do imóv­el colo­cam a vida dos moradores em risco. Para ela, a solução seria con­ced­er pro­vi­so­ri­a­mente aluguel social para essas famílias, até que elas fos­sem realo­cadas em um imóv­el per­ma­nente no próprio cen­tro da cidade.

“Ou que o imóv­el fos­se requal­i­fi­ca­do pelo INSS ou pela Sec­re­taria de Patrimônio da União, por esse pro­gra­ma de democ­ra­ti­za­ção dos imóveis da União, para que fos­se fei­ta a locação social para essas famílias”, desta­cou a pro­fes­so­ra da UFRJ.

Por meio de sua asses­so­ria de impren­sa, o INSS infor­mou que está nego­cian­do com a prefeitu­ra do Rio de Janeiro para que o poder públi­co munic­i­pal com­pre o imóv­el da aveni­da Venezuela e faça a dev­i­da alo­cação das pes­soas que atual­mente o ocu­pam.

O Min­istério das Cidades não respon­deu à Agên­cia Brasil sobre pos­síveis pro­postas para o des­ti­no da ocu­pação. A Sec­re­taria Estad­ual de Habitação infor­mou ape­nas que o pré­dio per­tence ao gov­er­no fed­er­al.

Segun­do a Sec­re­taria Munic­i­pal de Habitação, a prefeitu­ra já fez o cadas­tra­men­to dos moradores da ocu­pação Zumbi dos Pal­mares e está retoman­do o Pro­gra­ma Min­ha Casa, Min­ha Vida jun­to ao Gov­er­no Fed­er­al para dar prossegui­men­to às ações necessárias.

No entan­to, a Sec­re­taria não respon­deu à Agên­cia Brasil sobre quais são os planos de mora­dia para as famílias que vivem nas out­ras ocu­pações do cen­tro da cidade do Rio de Janeiro.

Edição: Aécio Ama­do

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