...
quinta-feira ,6 fevereiro 2025
Home / Direitos Humanos / Comunidade quilombola que pede socorro a Lula sofre sem direitos

Comunidade quilombola que pede socorro a Lula sofre sem direitos

Repro­dução: © Foto divul­gação

Carta foi entregue ao presidente em 11 de maio em evento em Salvador


Pub­li­ca­do em 21/05/2023 — 12:42 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

ouvir:

Uma car­ta escri­ta de madru­ga­da. A mãe, Rose, anal­fa­be­ta, e a fil­ha, Fran­ciele, estu­dante de dire­ito, capricharam nas expli­cações. Escrever­am, escrever­am, escrever­am. Quan­do viram, a vida esta­va ali, naque­las oito pági­nas. Era a chance.

O pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va esteve em Sal­vador no dia 11 de maio para assi­nar o decre­to de reg­u­la­men­tação da Lei Paulo Gus­ta­vo, e elas pre­cisavam chamar a atenção para um deses­pero. No dia seguinte, durante o even­to, ouvia-se de longe o gri­to da mul­her: “Lula, pelo amor de Deus. Esta­mos sem água, sem esgo­to, sem esco­la. Socor­ro!”

-  “Tra­ga ela aqui”, pediu o pres­i­dente.

Rose Meire dos San­tos Sil­va, de 44 anos, foi ultra­pas­san­do as fileiras uma a uma e era con­ti­da pelos segu­ranças na Con­cha Acús­ti­ca do Teatro Cas­tro Alves, em Sal­vador, lugar em que o pres­i­dente assi­nou o decre­to de reg­u­la­men­tação da Lei Paulo Gus­ta­vo, no últi­mo dia 11 de maio.

Ela gri­ta­va pedin­do para entre­gar um doc­u­men­to ao pres­i­dente. Primeiro, Lula pediu que ela esperasse um pouco. De tan­to insi­s­tir, Rose foi aten­di­da. Subiu ao pal­co, se ajoel­hou, se emo­cio­nou e ergueu o coração. “Lula, nos­so povo está mor­ren­do. Pelo amor de Deus”.

Bahia. Comunidade Quilombola Rio dos Macacos/ Foto Divulgação.
Repro­dução: Bahia. Comu­nidade Quilom­bo­la Rio dos Macacos/ Foto Divul­gação. — Foto divul­gação

Depois, o pres­i­dente assi­nou o “reci­bo” e tam­bém foi às lágri­mas. Pre­cisou tomar um copo d’água.

“Essa mul­her rep­re­sen­ta um pouco daqui­lo que pas­sa o povo brasileiro”, desta­cou Lula. (O momen­to está reg­istra­do na trans­mis­são da TV Brasil, a par­tir de 1 hora e 44 min­u­tos, no vídeo abaixo)

A mul­her, que subiu ao pal­co naque­le dia, é coor­de­nado­ra da Asso­ci­ação dos Remanes­centes do Quilom­bo Rio dos Maca­cos. “Sou uma mul­her que luta para sobre­viv­er”, disse, em entre­vista à Agên­cia Brasil, na sem­ana seguinte ao even­to

Luta para sobre­viv­er porque a comu­nidade, com 150 famílias em 104 hectares no municí­pio de Simões Fil­ho (BA), carece de dire­itos bási­cos e vive em um con­fli­to com a Mar­in­ha, que con­stru­iu a Base de Aratu naque­las cer­ca­nias, na déca­da de 60. “A gente vem sofren­do há mais de 50 anos. A gente paga, mas não tem ilu­mi­nação públi­ca, nem pos­to de saúde, nem esco­la”. Aliás, para ir e voltar da esco­la, as cri­anças pre­cisam cam­in­har cer­ca de 14 quilômet­ros.

Out­ro prob­le­ma que ela recla­ma é a fal­ta de trans­porte e de aces­so inde­pen­dente à comu­nidade. Para chegar à própria casa, os moradores pre­cisam pas­sar pela área mil­i­tar. Isso difi­cul­ta, con­forme ela expli­ca, até o socor­ro de saúde quan­do há neces­si­dade.

Rose Meire diz que um prob­le­ma gravís­si­mo é a fal­ta de água porque os mil­itares impe­dem o aces­so ao Rio dos Maca­cos, que dá nome à comu­nidade e é trata­do como san­tuário des­de os antepas­sa­dos. “Pre­cisamos do uso com­par­til­ha­do do rio. Andamos com baldes por quilômet­ros para con­seguir água. O que eles nos fornecem não é o sufi­ciente. Fomos trata­dos como inva­sores. E os inva­sores foram eles”.

A comu­nidade está assus­ta­da com o que ouvi­ram de mil­itares, sobre a pos­si­bil­i­dade de con­strução de um muro que impediria qual­quer aces­so às águas. “Esse muro sig­nifi­ca a morte do nos­so povo quilom­bo­la”, escreveu a dupla na car­ta entregue ao pres­i­dente.

“Nos­so povo foi cri­a­do aí nes­sas águas, pes­can­do, cuidan­do do cor­po, do espíri­to. Não tem como a gente sobre­viv­er sem água. O que eu colo­quei naque­la car­ta foi pedin­do as políti­cas públi­cas”.

O que vem da terra

Para sobre­viv­er, a comu­nidade tra­bal­ha com agri­cul­tura famil­iar. Rose Meire rela­ta que mais de 100 famílias já foram emb­o­ra por causa da fal­ta de condições mín­i­mas. A jaca e a man­dio­ca naque­las ter­ras já foram mais promis­so­ras e atraíam com­pradores de fora.

Bahia. Comunidade Quilombola Rio dos Macacos/ Foto Divulgação.
Repro­dução: Bahia. Comu­nidade Quilom­bo­la Rio dos Macacos/ Foto Divul­gação. — Foto divul­gação

O perío­do de seca, a pou­ca água, a fal­ta de insumos e equipa­men­tos deixaram a situ­ação mais com­pli­ca­da para vender o exce­dente. “Aqui é todo mun­do só na enx­a­da. Se tivesse um tra­torz­in­ho, a situ­ação pode­ria ser difer­ente”.

Mes­mo assim, a ter­ra ain­da rende para sub­sistên­cia. “Fei­jão, man­dio­ca, banana, mil­ho, amen­doim, bata­ta. A gente plan­ta den­tro da comu­nidade. Se a gente tivesse mate­r­i­al para desen­volver, não pas­sa­va fome”. Rose Meire diz que já perdeu sete irmãos por causa do iso­la­men­to.

“Segurança nacional”

Em nota à reportagem da Agên­cia Brasil, a Mar­in­ha entende que foi esta­b­ele­ci­do um pro­ced­i­men­to con­cil­i­atório para uma “solução nego­ci­a­da” com a comu­nidade quilom­bo­la.

“A área atribuí­da à Mar­in­ha englo­ba a Bar­ragem Rio dos Maca­cos e é con­sid­er­a­da de segu­rança nacional, por con­tribuir para o plane­ja­men­to das ativi­dades rela­cionadas ao inter­esse nacional e à exe­cução de políti­cas definidas para a área marí­ti­ma”, diz a nota.

Os mil­itares admitem que o prin­ci­pal aces­so à comu­nidade é pela área mil­i­tar. “Nesse con­tex­to, a Mar­in­ha sem­pre per­mi­tiu, como ain­da per­mite, a pas­sagem reg­u­lar dos moradores, de seus con­vi­da­dos, vis­i­tantes e de qual­quer mem­bro dos órgãos gov­er­na­men­tais”. Acres­cen­ta o doc­u­men­to que o gov­er­no da Bahia faz a con­strução de estradas de aces­so inde­pen­dente à comu­nidade para apri­morar as políti­cas públi­cas.

Bahia. Comunidade Quilombola Rio dos Macacos/ Foto Divulgação.
Repro­dução: Bahia. Comu­nidade Quilom­bo­la Rio dos Macacos/ Foto Divul­gação. — Foto divul­gação

Porém a Mar­in­ha não pre­vê o uso com­par­til­ha­do do rio. “Sobre esse pon­to, é impor­tante reg­is­trar que a bar­ragem é fonte de água úni­ca e essen­cial ao fun­ciona­men­to e existên­cia de todas as orga­ni­za­ções mil­itares que se encon­tram na área da Base Naval de Aratu (BNA), con­sti­tuin­do o Com­plexo Naval de Aratu, onde tra­bal­ham 1.800 mil­itares e civis”.

Providências

Tam­bém em nota à Agên­cia Brasil, o Min­istério da Igual­dade Racial garante que “acom­pan­ha de per­to e com pre­ocu­pação a situ­ação do quilom­bo Rio dos Maca­cos”.

“Nos­sa equipe já real­i­zou atendi­men­tos à pop­u­lação e está orga­ni­zan­do uma mis­são inter­min­is­te­r­i­al ao local para exe­cu­tar escu­ta qual­i­fi­ca­da e ampla da situ­ação de vio­lações e vul­ner­a­bil­i­dades por qual a comu­nidade quilom­bo­la está pas­san­do”

Direitos

Em caso de escu­ta qual­i­fi­ca­da, os servi­dores públi­cos poderão ouvir histórias vari­adas, como a de Fran­ciele dos San­tos Sil­va, de 23 anos, fil­ha de Rose Meire. A mãe pede que nem ela nem as out­ras três irmãs apareçam em fotografias. Tem medo de represálias.  Ela é a primeira da comu­nidade a chegar a uma fac­ul­dade. Con­seguiu ingres­sar no cur­so de dire­ito da Uni­ver­si­dade Fed­er­al da Bahia. Para ir todos os dias às aulas, sai da comu­nidade às 16h e chega per­to das 19h no cam­pus. Mas o esforço é com ale­gria.

“Eu resolvi, na ver­dade, estu­dar dire­ito porque ven­ho de uma comu­nidade quilom­bo­la que não tem nen­hum tipo de políti­ca públi­ca. Já sofreu diver­sas vio­lên­cias e ameaças. A Mar­in­ha inva­diu nos­sas ter­ras há mais de 50 anos e a par­tir daí, a gente vem sofren­do inúmeras vio­lações de dire­itos”.

Bahia. Comunidade Quilombola Rio dos Macacos/ Foto Divulgação.
Repro­dução: Bahia. Comu­nidade Quilom­bo­la Rio dos Macacos/ Foto Divul­gação. — Foto divul­gação

O que a inspirou tam­bém foi o fato de ter per­di­do anos letivos no ensi­no fun­da­men­tal porque não con­seguia chegar à esco­la por fal­ta de trans­porte. “Entrei na fac­ul­dade em 2019 para cur­sar ciên­cia e tec­nolo­gia. Depois, fiz o Exame Nacional do Ensi­no Médio nova­mente e entrei em dire­ito”. O exem­p­lo de Fran­ciele fez com que out­ros jovens tam­bém son­has­sem com o ensi­no supe­ri­or. “Ago­ra temos o total de oito pes­soas da comu­nidade na uni­ver­si­dade públi­ca”.

Ela lamen­ta, entre­tan­to, que pre­cisa pas­sar por den­tro da Vila Naval e tem até o aces­so nega­do. “A gente não tem ilu­mi­nação públi­ca, nem água encana­da, nem esgo­ta­men­to san­itário”. Toda vez que pen­sa em desi­s­tir, em função de estu­dar no perío­do noturno, lem­bra da força da mãe.

“Uma mul­her de força, luta e inspi­ração. Ago­ra a gente espera que esse esforço dela não ten­ha sido em vão. Foi um pedi­do de socor­ro a car­ta que ela entre­gou nas mãos do pres­i­dente. Eu e ela sen­ta­mos e a gente escreveu essa car­ta na madru­ga­da daque­le dia”.

A Asso­ci­ação dos Advo­ga­dos dos Tra­bal­hadores Rurais (AATR) tra­bal­ha em apoio às neces­si­dades da comu­nidade quilom­bo­la Rio dos Maca­cos. Asses­sores jurídi­cos da enti­dade ouvi­dos pela reportagem enten­dem que o Min­istério Públi­co tem apoia­do as ações para que o Esta­do Brasileiro cumpra o dev­er de cuidar daque­las pes­soas. Mas expli­cam que há um lon­go cam­in­ho para a garan­tia dess­es dire­itos diante de tan­ta desas­sistên­cia.

Prob­le­mas, inclu­sive, que são anti­gos, e que datam da déca­da de 60. Vio­lações con­tra a comu­nidade foram reg­istradas pelo doc­u­men­tarista baiano Josias Pires Neto. Mes­mo assim, a Mar­in­ha nega que haja reg­istro de vio­lên­cia. O primeiro filme foi um cur­ta, Quilom­bo Rio do Maca­co, lança­do em 2011.

Depois, veio o lon­ga Quilom­bo Rio dos Maca­cos (lança­do em 2017).

 

Os tra­bal­hos têm dire­itos aber­tos de exibição. “Os filmes foram impor­tantes para mostrar que exis­ti­am quilom­bo­las com mais de 90 de idade e que não era inva­sores. Eles já estavam ali”.

O doc­u­men­tarista expli­ca que, des­de a con­strução da Vila Naval, onde iri­am morar os mil­itares que serviri­am naque­la orga­ni­za­ção mil­i­tar, os quilom­bo­las tra­bal­haram nas casas dos mil­itares.

Depois os con­fli­tos foram crescen­do com histórias de humil­hação e vio­lên­cia, segun­do o doc­u­men­tarista. Con­forme teste­munha o cineas­ta, as situ­ações ficam rígi­das ou flexíveis a depen­der do coman­dante que serve na base. Ele entende que dar vis­i­bil­i­dade à comu­nidade aju­dou para que os quilom­bo­las não fos­sem expul­sos do local, como se fos­sem inva­sores. “Um acor­do judi­cial foi via­bi­liza­do”.

“É uma comu­nidade muito frágil e sem aces­so a dire­itos humanos bási­cos e fun­da­men­tais. A luta con­tin­ua para que eles pos­sam ter pelo menos o uso com­par­til­ha­do da repre­sa porque é uma área em que eles pescam”.

Quase 10 anos depois do últi­mo filme, as ima­gens ain­da são difí­ceis, mas tam­bém são de luta, de madru­gadas em claro e de uma car­ta com pedi­do de esper­ança.

Edição: Graça Adju­to

LOGO AG BRASIL

Você pode Gostar de:

Ambulantes terão “creche” para deixar os filhos no carnaval do Rio

Prefeitura vai oferecer centros de convivência enquanto mães trabalham Mar­i­ana Tokar­nia — Repórter da Agên­cia …