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Consciência Negra: coletivo destaca trajetórias de servidoras pretas

Repro­dução: © Antônio Araújo

Iniciativa busca combater invisibilidade e servir de inspiração


Pub­li­ca­do em 20/11/2023 — 07:38 Por Bruno de Fre­itas Moura — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Mul­heres pre­tas que tiver­am car­reira de destaque no serviço públi­co são o foco de um per­fil de rede social que bus­ca com­bat­er a invis­i­bil­i­dade dessas per­son­al­i­dades e servir de inspi­ração para out­ras negras. A ini­cia­ti­va é do Cole­ti­vo de Mul­heres Negras Servi­do­ras e Empre­gadas Públi­cas do Gov­er­no Fed­er­al, que criou a pági­na @servidorasnegras no Insta­gram.  

Em cada uma das cin­co sem­anas deste mês da Con­sciên­cia Negra, o cole­ti­vo pub­li­ca uma minibi­ografia das servi­do­ras que abri­ram cam­in­hos no serviço públi­co.

A primeira a ser hom­e­nagea­da pela pági­na reúne ain­da o ele­men­to curiosi­dade. Uma mul­her que ficou con­heci­da como Primeira-Dama do Sam­ba, mas que mar­cou o nome tam­bém na refor­ma psiquiátri­ca no Brasil. Yvonne Lara da Cos­ta era servi­do­ra do Min­istério da Saúde e, no mun­do da músi­ca, ficou con­heci­da como Dona Ivone Lara.

Não bas­tasse a relevân­cia que teve no ambi­ente do sam­ba, Dona Ivone teve uma car­reira de destaque como servi­do­ra públi­ca volta­da para a saúde men­tal. Foram 37 anos de atu­ação. For­ma­da em enfer­magem e assistên­cia social, a can­to­ra e com­pos­i­to­ra teve papel de van­guar­da ao levar para pacientes o mes­mo que ofer­e­cia aos admi­radores de sua pro­dução artís­ti­ca, a músi­ca.

Yvonne Lara da Cos­ta era espe­cial­iza­da em ter­apia ocu­pa­cional. O inter­esse de usar a músi­ca nos trata­men­tos lev­ou à união com out­ro grande nome do cuida­do psiquiátri­co no país, Nise da Sil­veira. As duas tra­bal­ham jun­tas no Rio de Janeiro.

Nise rev­olu­cio­nou o trata­men­to psiquiátri­co no país com ações human­izadas, em con­traste aos pro­ced­i­men­tos agres­sivos como eletro­choques e lobot­o­mia. Yvonne sug­eriu a Nise que cri­asse uma sala com instru­men­tos musi­cais den­tro do hos­pi­tal em que tra­bal­havam, isso na déca­da de 40.

“O tra­bal­ho de Dona Ivone Lara como servi­do­ra foi fun­da­men­tal para a refor­ma psiquiátri­ca no Brasil”, afir­ma o per­fil, que traz uma foto da então enfer­meira no hos­pi­tal em que tra­bal­ha­va. Dona Ivone mor­reu em 2018, aos 96 ano.

Surgimento

O cole­ti­vo de servi­do­ras negras tem cer­ca de 170 par­tic­i­pantes. O grupo foi cri­a­do no começo do ano, depois de uma declar­ação da min­is­tra do Plane­ja­men­to, Simone Tebet, sobre difi­cul­dade de con­seguir mul­heres pre­tas para com­por a equipe.

“Quero não só ter mul­heres, mas mul­heres pre­tas. E a gente sabe, lamen­tavel­mente, que mul­heres pre­tas nor­mal­mente são arri­mo de família. Traz­er de fora de Brasília é muito difí­cil”, disse Tebet, um dia antes de tomar posse em 4 de janeiro.

“Algu­mas mul­heres negras se sen­ti­ram par­tic­u­lar­mente atingi­das por essa fala, que não con­diz com a real­i­dade. A gente tem um grupo sig­ni­fica­ti­vo de mul­heres com qual­i­fi­cações até mais altas que a de algu­mas pes­soas que estão em deter­mi­na­dos car­gos do gov­er­no. Então, essas mul­heres começaram a se orga­ni­zar”, expli­cou à Agên­cia Brasil Bar­bara Rosa, uma das orga­ni­zado­ras do cole­ti­vo.

Bar­bara é servi­do­ra do Min­istério da Edu­cação (MEC) e está cedi­da ao Min­istério das Relações Exte­ri­ores (MRE), onde atua como coor­de­nado­ra de plane­ja­men­to de con­tratações.

À época da posse, a min­is­tra da Igual­dade Racial, Anielle Fran­co, se com­pro­m­e­teu a aju­dar Tebet com uma lista de cur­rícu­los de mul­heres pre­tas. No dia da posse, Tebet comen­tou sobre a aju­da. “Foi bom que ago­ra está vin­do um monte de cur­rícu­lo. Estou achan­do óti­mo”.

Diplomata

O Ita­ma­raty foi a casa de out­ra hom­e­nagea­da pelo per­fil @servidorasnegras. Tra­ta-se de Môni­ca de Menezes Cam­pos. Em 1978, aos 22 anos, Môni­ca foi a primeira mul­her pre­ta a ingres­sar no Insti­tu­to Rio Bran­co, órgão do gov­er­no para for­mação de diplo­matas. Em 1980, se tornou a primeira negra diplo­ma­ta.

“Sua admis­são à car­reira diplomáti­ca foi um mar­co. A tra­jetória de Môni­ca de Menezes Cam­pos é um ref­er­en­cial para mul­heres negras do serviço exte­ri­or brasileiro e para can­di­datas às car­reiras de diplo­ma­ta e de ofi­cial de chance­lar­ia”, pub­li­cou o cole­ti­vo no Insta­gram. Môni­ca mor­reu em 1985, aos 27 anos, víti­ma de um aneuris­ma cere­bral.

No últi­mo dia 9 de novem­bro, o Ita­ma­raty real­i­zou o sem­i­nário Relações Inter­na­cionais, Políti­ca Exter­na e Igual­dade Racial: Reflexões em Hom­e­nagem a Môni­ca de Menezes Cam­pos. O encon­tro abor­dou o pro­gra­ma de ação afir­ma­ti­va do MRE, igual­dade racial como obje­ti­vo trans­ver­sal da políti­ca exter­na, impacto de acadêmi­cas negras na teo­ria das relações inter­na­cionais e igual­dade racial no serviço exte­ri­or.

Primeira engenheira negra

Out­ra servi­do­ra lem­bra­da é Ene­d­i­na Alves Mar­ques, a primeira engen­heira negra do Brasil. Fil­ha de um lavrador e de uma empre­ga­da domés­ti­ca, a curitibana se for­mou em engen­haria civ­il em 1945, pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná (UFPR). Pre­cisou tra­bal­har como domés­ti­ca para aju­dar a pagar os estu­dos. Foi a primeira mul­her a atin­gir a for­mação em engen­haria no esta­do.

“Ao lon­go da grad­u­ação, Ene­d­i­na teve embat­es com cole­gas, pro­fes­sores e com a própria insti­tu­ição de ensi­no, por ser mul­her, negra e pobre em um cur­so reser­va­do aos home­ns bran­cos e ricos”, diz a pub­li­cação no Insta­gram.

Fun­cionária do Depar­ta­men­to Estad­ual de Águas e Ener­gia Elétri­ca do Paraná, Ene­d­i­na foi uma das respon­sáveis pela con­strução da Usi­na Capi­vari-Cachoeira (atu­al Parig­ot de Souza), inau­gu­ra­da em 1971 no municí­pio de Anton­i­na, litoral do Paraná.

“Ene­d­i­na abriu espaços para a pre­sença de pes­soas negras e de mul­heres na engen­haria, sendo ain­da hoje inspi­ração para mul­heres negras que bus­cam espaço nas áreas de ciên­cia e tec­nolo­gia”, escreveu o cole­ti­vo.

Em janeiro deste ano, quan­do com­ple­tou 110 anos de nasci­men­to, a engen­heira pre­ta rece­beu uma hom­e­nagem na pági­na de bus­ca prin­ci­pal do Google.

A biografia de Ene­d­i­na, que em 1940 bus­cou inserir-se em uma área profis­sion­al ocu­pa­da majori­tari­a­mente por home­ns, foi tema do tra­bal­ho de con­clusão do cur­so de história na UFPR.

Ene­d­i­na mor­reu em 20 de agos­to de 1981, aos 61 anos.

Pioneira na medicina

A baiana Maria Odília Teix­eira é mais uma das hom­e­nageadas pelo per­fil. Fil­ha de um médi­co bran­co de origem pobre e neta — por parte de mãe – de uma ex-escrav­iza­da, Maria Odília se tornou a primeira negra for­ma­da em med­i­c­i­na no país, em 1909.

Ain­da na grad­u­ação, tra­bal­hou para desmisti­ficar teo­rias embasadas no racis­mo cien­tí­fi­co. Apre­sen­tou tese sobre a cir­rose, desvinculando‑a da pop­u­lação pre­ta.

“A médi­ca optou por não dis­cu­tir os aspec­tos soci­ais da doença, nem atribuiu fatores genéti­cos e raci­ais às pes­soas que desen­volvi­am a cir­rose alcoóli­ca. Difer­ente­mente de muitos con­tem­porâ­neos, Odília não recor­reu a nen­hum pres­su­pos­to das teo­rias racial­is­tas”, escreveu em dis­ser­tação acadêmi­ca Mayara San­tos, mestre em história social pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al da Bahia (UFBA).

Em 1914, Maria Odília atingiu mais um pio­neiris­mo ao ser a primeira pro­fes­so­ra negra da Fac­ul­dade de Med­i­c­i­na da Bahia, onde se for­mou. A primeira médi­ca negra do Brasil mor­reu em 1970, aos 86 anos.

Música e ativismo

Aos 85 anos, uma hom­e­nagea­da que une ativis­mo pelo movi­men­to negro e pio­neiris­mo na edu­cação é Lydia Gar­cia, primeira pro­fes­so­ra de músi­ca da rede públi­ca do Dis­tri­to Fed­er­al. A car­i­o­ca, for­ma­da em piano clás­si­co, é fil­ha de uma cos­tureira e de um fun­cionário públi­co. Ela foi para a cap­i­tal fed­er­al na déca­da de 60, onde vive atual­mente.

Lydia se uti­liza­va de ativi­dades como ciran­da, coral, canti­gas, entre out­ras, para ini­ciar cri­anças no mun­do musi­cal. Além do ensi­no de alunos, atu­ou tam­bém na for­mação de pro­fes­sores.

Ela criou, há mais de 30 anos, o Bazafro, ateliê cul­tur­al de moda e arte étni­ca que val­oriza a autoes­ti­ma e his­to­ri­ci­dade do povo negro. Além dis­so, é matri­ar­ca do Cole­ti­vo de Mul­heres Negras Baobá.

A pianista, pro­fes­so­ra e ativista é vence­do­ra do 1º Prêmio Cul­tura Afro-Brasileira, pro­movi­do pela Sec­re­taria de Cul­tura do Dis­tri­to Fed­er­al, e do 3º Prêmio Marielle de Dire­itos Humanos, ofer­e­ci­do pela Câmara Leg­isla­ti­va do Dis­tri­to Fed­er­al.

Inspiração

A servi­do­ra do MEC Bar­bara Rosa con­tou que os nomes foram escol­hi­dos em reuniões do cole­ti­vo, e a divul­gação dos per­fis tem dois obje­tivos prin­ci­pais.

“O primeiro é pro­por­cionar reflexão sobre a car­reira, sobre as pos­si­bil­i­dades que a gente tem. O segun­do é recon­hecer e val­orizar o lega­do dessas mul­heres, seja em vida ou pós-morte. Traz­er à luz essas tra­jetórias.”

Além de com­bat­er o que clas­si­fi­ca como invis­i­bil­i­dade de servi­do­ras públi­cas pre­tas, o cole­ti­vo acred­i­ta que a ini­cia­ti­va é um incen­ti­vo para que mais negras queiram faz­er car­reira no setor.

“Nos­so per­fil atinge não só mul­heres que já são servi­do­ras. Quer­e­mos inspi­rar nes­sas tra­jetórias históri­c­as e con­sol­i­dadas, porém não tão visíveis, out­ras mul­heres que alme­jam destaque no serviço públi­co”.

Representatividade

Reportagem pub­li­ca­da pela Agên­cia Brasil no mês pas­sa­do mostrou que pes­soas negras, ape­sar de fig­u­rarem como maio­r­ia da pop­u­lação brasileira (56%), são ape­nas 35% no serviço públi­co fed­er­al, além de rece­ber menores salários.

O cole­ti­vo de mul­heres negras recon­hece a baixa rep­re­sen­ta­tivi­dade. Esse é um dos motivos para a real­iza­ção de sem­i­nários preparatórios para con­cur­sos públi­cos. De agos­to a out­ubro, 250 pes­soas par­tic­i­param dos encon­tros.

Bar­bara acred­i­ta que a val­oriza­ção de mul­heres negras no setor públi­co se dá por meio de mais pre­sença e igual­dade.

“Essa val­oriza­ção se dá tan­to por val­orizar as car­reiras onde esta­mos, na redução das desigual­dades salarias entre car­reiras, na garan­tia de opor­tu­nidades de ascen­são e exer­cí­cio de lid­er­ança, e na ampli­ação da par­tic­i­pação nas car­reiras onde somos mino­ria”, disse.

“Para faz­er isso é necessário refor­mu­lar a for­ma de ingres­so a fim de garan­tir diver­si­dade e, ao mes­mo tem­po, prop­i­ciar que pes­soas que já são servi­do­ras ten­ham opor­tu­nidades de terem car­reiras que garan­tam qual­i­dade de vida e dig­nidade”, con­clui.

Lei de Cotas

A dis­pari­dade entre negros e bran­cos pode­ria ser pior não fos­se a Lei de Cotas (Lei 12.990, de 9 de jun­ho de 2014), que reser­va 20% das vagas em con­cur­sos públi­cos da União para pre­tos e par­dos. No ano 2000, para cada 100 novos servi­dores do Exec­u­ti­vo fed­er­al, 17 eram negros. Em 2020, essa relação saltou para 43 em 100 novos aprova­dos.

A lei tem vigên­cia de dez anos a con­tar de 2014, mas há ini­cia­ti­vas para que seja pror­ro­ga­da. Uma delas é o Pro­je­to de Lei 1.958, de 2021, de auto­ria do senador Paulo Paim (PT/RS), que trami­ta no Sena­do e man­tém a reser­va de 20% por mais dez anos.

Den­tro do gov­er­no, além de inter­esse na pror­ro­gação da lei, há um movi­men­to para aumen­tar a faixa de reser­va de 20% para 30%. A pro­pos­ta foi con­struí­da pelos min­istérios da Igual­dade Racial, da Gestão e da Ino­vação em Serviços Públi­cos e da Justiça e Segu­rança Públi­ca.

Comissionados

Out­ra medi­da para diminuir a desigual­dade den­tro do serviço públi­co é o decre­to assi­na­do pelo pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va, em março deste ano, que reser­va 30% dos car­gos de con­fi­ança na admin­is­tração dire­ta, autar­quias e fun­dações para pes­soas negras.

As cotas são para os car­gos comis­sion­a­dos exec­u­tivos (CCE), de livre nomeação, e as funções comis­sion­adas exec­u­ti­vas (FCE), tam­bém de livre nomeação, mas exclu­si­vas para servi­dores con­cur­sa­dos. A nor­ma deter­mi­na a obser­vação da pari­dade de gênero na ocu­pação dess­es car­gos.

Edição: Graça Adju­to

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