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Demarcação para Avá-canoeiro é reparação histórica, diz antropóloga

Repro­dução: © Mário Vilela/Funai

Etnia sofreu deslocamentos forçados e quase foi extinta na ditadura


Publicado em 26/03/2024 — 07:06 Por Camila Boehm — Repórter da Agência Brasil — São Paulo

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A decisão da Justiça Fed­er­al que esta­b­elece pra­zo de 15 meses para con­clusão da demar­cação da Ter­ra Indí­ge­na (TI) Taego Ãwa, do povo Avá-canoeiro do Aragua­ia, rep­re­sen­ta uma reparação históri­ca das vio­lações sofridas por este povo. A avali­ação é da antropólo­ga Patrí­cia de Men­donça Rodrigues, respon­sáv­el pelo relatório que iden­ti­fi­cou e delim­i­tou a TI. A etnia tem sido víti­ma de deslo­ca­men­tos força­dos ao lon­go da história. Atual­mente, os cer­ca de 40 sobre­viventes ain­da vivem fora do ter­ritório tradi­cional.

“É um dos casos mais graves de vio­lên­cia genocídi­ca, que tem destaque no relatório da Comis­são Nacional da Ver­dade, está lá com destaque o caso dos Avá-canoeiro do Aragua­ia. Na época dos gov­er­nos mil­itares, chegou à beira da extinção, chegaram a ser cin­co pes­soas e foram removi­das para a ter­ra dos seus anti­gos inimi­gos, onde sofr­eram todo tipo de mar­gin­al­iza­ção”, lamen­tou a antropólo­ga, desta­can­do que a decisão judi­cial foi um pas­so impor­tante para se faz­er justiça em prol da etnia.

O Tri­bunal Region­al Fed­er­al da 1ª Região (TRF‑1) rever­teu decisão da Justiça Fed­er­al de Gurupi (TO) que havia reduzi­do em cer­ca de 30% a TI Taego Ãwa. Essa fatia de quase um terço do ter­ritório tin­ha sido reser­va­da para assen­ta­dos da refor­ma agrária e fazen­deiros que atual­mente estão sobre­pos­tos à TI. A decisão do TRF1, que ocor­reu no fim do mês pas­sa­do, teve assi­natu­ra do acórdão no últi­mo dia 15.

O ter­ritório está em proces­so de demar­cação há mais de dez anos, no entan­to, a decisão judi­cial deter­mi­nou pra­zo de 15 meses para que a Fun­dação Nacional dos Povos Indí­ge­nas (Funai) con­clua a ação, a fim de que o grupo pos­sa retornar à região, de onde foram cap­tura­dos e expul­sos durante a ditadu­ra mil­i­tar.

A antropólo­ga ressalta que a decisão ante­ri­or, pro­feri­da em 2022, além da diminuição em quase um terço das ter­ras, havia reti­ra­do tam­bém o aces­so da TI Taego Ãwa ao rio Javaés, que é o prin­ci­pal rio da região, dá pas­sagem a out­ras comu­nidades indí­ge­nas e é o prin­ci­pal meio para nave­g­ação e pescaria. “Eles havi­am fica­do com 70%, a maior parte de áreas inundáveis. A mel­hor parte da área foi reti­ra­da, então foi uma decisão con­sid­er­a­da absur­da”, disse.

O juiz rela­tor do caso, Emmanuel Mas­ce­na de Medeiros, escreveu ain­da que o Insti­tu­to Nacional de Col­o­niza­ção e Refor­ma Agrária (Incra), jun­ta­mente com a Funai, deve faz­er a desin­trusão das ter­ras, reassen­tar as pes­soas do Pro­je­to de Assen­ta­men­to Cara­col dire­ta­mente afe­ta­dos pela for­mação da TI Taego Ãwa e o paga­men­to de ben­feito­rias esta­b­ele­ci­das no ter­ritório.

O relatório de iden­ti­fi­cação e delim­i­tação da ter­ra indí­ge­na, com cer­ca de 29 mil hectares, foi pub­li­ca­do pela Funai em 2012 e, em 2016 o Min­istério da Justiça pub­li­cou a por­taria declaratória reconhecendo‑a como ter­ra de ocu­pação tradi­cional do povo indí­ge­na Avá-canoeiro. A TI Taego Ãwa está local­iza­da na região do médio cur­so do Rio Aragua­ia, no Tocan­tins. O ter­ritório fica local­iza­do à margem dire­i­ta do Rio Javaés, a leste da Ilha do Bananal.

No entan­to, diante da estag­nação do proces­so, o Min­istério Públi­co Fed­er­al (MPF) entrou com ação civ­il públi­ca, em 2018, con­tra a União, a Funai e o Incra, para que fos­se final­iza­da a demar­cação. O MPF apon­tou que lim­i­tações mate­ri­ais, finan­ceiras e de pes­soal não legit­i­mam o retar­do no proces­so demar­catório, acres­cen­tan­do “que o con­t­role judi­cial pleit­ea­do na pre­sente ação públi­ca visa cor­ri­gir vício de ile­gal­i­dade na atu­ação do órgão indi­genista”. A decisão do TRF1 é uma respos­ta à ação do MPF.

Após a ação, hou­ve lev­an­ta­men­to fundiário pela Funai e a ter­ra foi demar­ca­da fisi­ca­mente. Segun­do a antropólo­ga, fal­ta a desin­trusão do ter­ritório, retorno dos Avá-canoeiro e homolo­gação pelo pres­i­dente da Repúbli­ca.

Assentados do Incra

Em entre­vista à Agên­cia Brasil, o procu­rador region­al da Repúbli­ca, Felí­cio Pontes Jr., rep­re­sen­tante do MPF no proces­so, ressaltou que a desin­trusão é uma das grandes difi­cul­dades em casos como este.

“Esse é o pon­to mais difí­cil, avis­ar as pes­soas que estão lá que elas não pode­ri­am estar. Quan­do se tem clientes da refor­ma agrária, que tam­bém são pes­soas que devem ser defen­di­das pelo Min­istério Públi­co Fed­er­al, tem que faz­er isso com base em mui­ta nego­ci­ação”, rela­tou.

“Nós já avisamos para que eles não fiquem pre­ocu­pa­dos, que eles não iri­am sair e ficar na beira da estra­da, nós não faze­mos isso. Nós temos um com­pro­mis­so em não faz­er a desin­trusão antes que isso seja nego­ci­a­do. Nor­mal­mente o Incra faz a disponi­bil­i­dade da ter­ra, mas a gente exige tam­bém que eles aceit­em a ter­ra, porque eles con­hecem, sabem se a ter­ra pode ser pro­du­ti­va ou não”, expli­cou o pro­mo­tor.

A sobreposição de assen­ta­men­tos da refor­ma agrária com ter­ritórios que vier­am a ser recon­heci­dos como tradi­cionais não é par­tic­u­lar­i­dade da TI Taego Ãwa. “Nós temos vários casos em que isso acon­te­ceu. Nós acabamos de ter a desin­trusão no Alto Rio Guamá, que era um assen­ta­men­to do Incra. Ness­es casos, a gente nego­cia com o Incra e com os assen­ta­dos. Nós defend­emos os sem ter­ra tam­bém, assim como defend­emos os indí­ge­nas”, con­tou o pro­mo­tor.

Patrí­cia Rodrigues apon­ta que o grupo de reassen­ta­dos, na ocasião, tam­bém foi víti­ma de erro históri­co do esta­do brasileiro, já que foram trans­feri­dos de uma ter­ra indí­ge­na local­iza­da na Ilha do Bananal para out­ro ter­ritório con­sid­er­a­do tradi­cional, de onde terão que ser removi­dos nova­mente. “Dese­jamos que eles sejam reassen­ta­dos num lugar dig­no, onde eles pos­sam desen­volver as suas ativi­dades com dig­nidade e justiça tam­bém.”

A antropólo­ga con­ta que, na déca­da de 1990, o Incra adquir­iu áreas na região da Mata Azul, local onde os Avá-canoeiro foram con­tata­dos forçada­mente na ditadu­ra mil­i­tar, para o reassen­ta­men­to de famílias que ocu­pavam áreas pro­te­gi­das na Ilha do Bananal.

“Ape­sar de estarem moran­do na aldeia dos Javaé, os Avá-canoeiro con­tin­uaram caçan­do, cole­tan­do nes­sa área da Mata Azul, que é do out­ro lado do rio. A Funai ignorou sumari­a­mente que ali era uma ter­ra indí­ge­na, que o povo con­tin­u­a­va fre­quen­tan­do aque­le lugar”, afir­mou Patrí­cia. Segun­do ela, quan­do fiz­er­am a iden­ti­fi­cação da ter­ra indí­ge­na, o assen­ta­men­to do Incra ocu­pa­va metade da área total demar­ca­da.

A região da Mata Azul  foi a últi­ma mora­da dos Avá-canoeiro do Aragua­ia, onde seus mor­tos foram enter­ra­dos e onde se deu o con­ta­to com out­ros povos. Ela enfa­ti­zou que os indí­ge­nas con­heci­am ain­da cada cen­tímetro do ter­ritório, quan­do foi fei­ta a iden­ti­fi­cação das ter­ras. “Ape­sar dos des­mata­men­tos que estão sendo feitos, eles con­hecem cada árvore, cada lugar que tem ali den­tro dessa ter­ra indí­ge­na, mas estão fora dessa ter­ra até hoje, até hoje eles estão moran­do na ter­ra do Javaé, aguardan­do o momen­to de voltar”, disse Patrí­cia Rodrigues.

Para o procu­rador Pontes, os Avá-canoeiro do Aragua­ia não têm ain­da seus dire­itos garan­ti­dos pelo esta­do brasileiro. “Enquan­to eles não estiverem na ter­ra deles, é um esta­do con­stante de vio­lação de dire­itos fun­da­men­tais.”

História dos Avá-canoeiro

Esti­ma-se que a pop­u­lação dos Avá-Canoeiro, no sécu­lo XVIII, era de 4 mil pes­soas. Patrí­cia Rodrigues rela­ta que o grupo foi se refu­gian­do ao lon­go da história, a par­tir da col­o­niza­ção por­tugue­sa, e que resi­s­ti­ram ao con­ta­to exter­no.

“Eles eram um povo guer­reiro e ficaram con­heci­dos na lit­er­atu­ra como o povo do Brasil cen­tral que mais resis­tiu à col­o­niza­ção. Eles nun­ca aceitaram o con­ta­to pací­fi­co. Hou­ve um primeiro momen­to de embat­es fortes com os col­o­nizadores, no sécu­lo XVIII até mea­d­os do sécu­lo XIX, e a par­tir de então, como eles foram mas­sacra­dos, eles se dividi­ram em dois gru­pos de refu­gia­dos”, con­tou.

Parte do grupo que vivia nas cabe­ceiras do Rio Tocan­tins se deslo­cou para a região do médio Rio Aragua­ia, onde pas­sou a dis­putar o mes­mo ter­ritório com os Kara­já e Javaé, que já habitavam a região há sécu­los. Com isso, hou­ve a sep­a­ração dos Avá-canoeiro em dois gru­pos, do Rio Aragua­ia e do Rio Tocan­tins. O deslo­ca­men­to dos Avá-canoeiro do Aragua­ia para o ter­ritório, espe­cial­mente, dos Javaé ger­ou con­fli­tos e dis­putas entre eles, o que tam­bém resul­tou em mortes de ambos os lados, segun­do memória oral cita­da por Patrí­cia.

Na primeira metade do sécu­lo XX, hou­ve mas­sacres de aldeias inteiras dos Avá-Canoeiro do Aragua­ia, incên­dios e perseguição, por parte de novos inva­sores de ter­ras. Isso lev­ou a mais deslo­ca­men­tos, até que chegaram à local­iza­ção da Fazen­da Can­u­anã, região da Mata Azul.

Depois de mas­sacres e deslo­ca­men­tos força­dos em sua história, o grupo chegou a 14 sobre­viventes nos anos 1960, habi­tan­do um local chama­do de Mata Azul. O local esta­va inseri­do no lat­ifún­dio Fazen­da Can­u­anã, de pro­priedade da família Paz­zanese, de São Paulo. Quan­do hou­ve o con­ta­to força­do pela Funai em 1973, depois de recla­mações de fazen­deiros, eram 11 indí­ge­nas nos acam­pa­men­tos da etnia.

“Foi nesse perío­do [déca­da de 1970] que o gov­er­no mil­i­tar deter­mi­nou o con­ta­to força­do com os Avá-Canoeiro. A Funai chegou ao local ati­ran­do e soltan­do fogos de artifí­cio. Uma meni­na chama­da Typyire foi balea­da, fale­cen­do dias depois na mata”, diz a ação do MPF. O Con­sel­ho Indi­genista Mis­sionário (Cimi) reafir­mou que, sob o regime autoritário da ditadu­ra mil­i­tar, a Funai pro­tag­o­ni­zou um con­ta­to força­do que resul­tou em um quase exter­mínio dos Avá-Canoeiro.

“A equipe [da Funai] entrou ati­ran­do nesse acam­pa­men­to, essa é a memória oral dos Avá-canoeiros. Eles con­seguiram cap­turar seis pes­soas, porque o grande líder do grupo se entre­gou quan­do a mul­her dele foi cap­tura­da com uma cri­ança”, con­tou Patrí­cia. Os out­ros cin­co fugi­ram, incluin­do uma meni­na que foi balea­da e mor­reu dias depois.

Os cap­tura­dos foram lev­a­dos para a sede da Fazen­da Can­u­anã, onde eles foram expos­tos à vis­i­tação públi­ca, situ­ação que foi reg­istra­da em fotos na época. Aque­les que tin­ham fugi­do, foram con­tata­dos seis meses depois e, jun­to aos out­ros seis, o grupo ficou sob super­visão da Funai, que colo­cou os Javaé — inimi­gos tradi­cionais dos Avá-canoeiro do Aragua­ia — como super­vi­sores desse acam­pa­men­to.

“Relatos tan­to dos Javaé como dos Avá-canoeiro e dos moradores region­ais é de que as pes­soas vier­am de vários lugares para ver os ‘índios pre­sos’, assim que eles falavam, ‘os índios pela­dos’, me falaram desse jeito. E ess­es Avá cap­tura­dos ficaram lá numa casa, num cer­ca­do, sendo obser­va­dos por gente que vin­ha de todo lugar”, lem­brou a antropólo­ga. Os indí­ge­nas foram expos­tos tam­bém à con­t­a­m­i­nação de vírus, para os quais eles não tin­ham imu­nidade, o que a antropólo­ga apon­ta como out­ra neg­ligên­cia da Funai.

Um dos cap­tura­dos mor­reu três meses depois do con­ta­to força­do de pneu­mo­nia. “Ele foi lev­a­do para Goiâ­nia, mor­reu lá e nun­ca devolver­am o cor­po para os seus par­entes. Ago­ra, dois anos atrás, nós con­seguimos encon­trar um doc­u­men­to que fala onde ele foi inter­na­do, a causa da morte dele, onde ele foi enter­ra­do como um lavrador. Nem como indí­ge­na foi enter­ra­do”, con­tou.

Sobreviventes

Por fim, o grupo restante foi trans­feri­do, ain­da na déca­da de 70, para uma aldeia dos Javaé, onde pas­saram a viv­er uma situ­ação de mar­gin­al­i­dade. Pouco tem­po depois dessa trans­fer­ên­cia, alguns mor­reram e os Avá-canoeiro ficaram reduzi­dos a cin­co pes­soas ape­nas.

“Foi um grande mar­co na vida deles, eles divi­dem a história entre antes e depois do con­ta­to, o momen­to em que eles foram cap­tura­dos [pela Funai]. Antes, eles eram fugi­tivos, mas pelo menos tin­ham a autono­mia deles. E, depois, pas­saram a viv­er como mar­gin­al­iza­dos na aldeia dos seus anti­gos inimi­gos”, pon­tu­ou Patrí­cia.

Os Avá-canoeiro do Aragua­ia sobre­viver­am graças a uniões interét­ni­cas. Hoje são mais de 40 pes­soas, após casa­men­tos e uniões com as etnias Javaé, Kara­já e Tuxá. Segun­do a antropólo­ga, a maio­r­ia do grupo atual­mente são fil­hos dessas uniões. Há ape­nas uma sobre­vivente do episó­dio em que hou­ve o con­ta­to força­do, na déca­da de 1970.

O grupo aguar­da pelo recon­hec­i­men­to e desin­trusão da Ter­ra Indí­ge­na Taego Ãwa e, segun­do con­fir­ma a ação do MPF, ain­da vivem dis­per­sos em ter­ritórios dos Javaé e Kara­já. O MPF ressalta que a impre­scindibil­i­dade das ter­ras indí­ge­nas para a sobre­vivên­cia físi­ca e cul­tur­al dos índios já foi inclu­sive obje­to de recon­hec­i­men­to expres­so por parte do Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al.

Patrí­cia ressalta a importân­cia do proces­so de demar­cação para revert­er a invis­i­bil­i­dade deste grupo. “Des­de que a gente começou esse tra­bal­ho com a iden­ti­fi­cação da ter­ra, eles estão viven­do um proces­so tam­bém de reafir­mação, de bus­ca de revi­tal­iza­ção da lín­gua, de inserção no movi­men­to indí­ge­na, de par­tic­i­par dos debates políti­cos. Porque, até então, eles estavam abso­lu­ta­mente à margem de tudo, eles tin­ham esse dese­jo de voltar para o seu ter­ritório, mas não eram ouvi­dos.”

Em relação a Ter­ra Indí­ge­na Taego Ãwa, o Incra infor­mou que aguar­da a análise do inteiro teor do acórdão para definir as ações que ado­tará e que atu­ará em parce­ria com a Funai nes­sa questão.

Agên­cia Brasil entrou em con­ta­to com a Funai e aguar­da posi­ciona­men­to.

Edição: Aline Leal

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