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Demori estreia na TV Brasil e defende comunicação pública independente

Repro­dução: © Rafa Neddermeyer/Agência Braasil

Jornalista que coordenou Vaza Jato vai comandar programa na EBC


 

Pub­li­ca­do em 15/09/2023 — 07:48 Por Pedro Rafael Vilela – Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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Em mea­d­os de 2019, uma espé­cie de Titan­ic dava sinais de que iria começar a afun­dar no Brasil. Ape­sar de já muito ques­tion­a­da por juris­tas e difer­entes setores políti­cos, a Oper­ação Lava Jato, de com­bate à cor­rupção na Petro­bras, era prati­ca­mente intocáv­el e imune a críti­cas na impren­sa e nas insti­tu­ições de Esta­do do país.

Um dos seus prin­ci­pais pro­tag­o­nistas, o ex-juiz Ser­gio Moro, havia aban­don­a­do a toga para assumir o car­go de min­istro da Justiça no gov­er­no de Jair Bol­sonaro, que esta­va em seus primeiros meses de manda­to. Naque­la altura, o então ex-pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va esta­va pre­so em Curiti­ba e sequer pôde dis­putar as eleições do ano ante­ri­or.

O navio da Lava Jato começou a afun­dar a par­tir de uma série de reporta­gens jor­nalís­ti­cas pro­duzi­das pelo site The Inter­cept Brasil (TIB), em par­ceira com out­ros veícu­los de comu­ni­cação, que mostraram um con­luio entre procu­radores do Min­istério Públi­co Fed­er­al (MPF) e o juiz Sér­gio Moro na con­dução dos proces­sos da Lava Jato. O vaza­men­to de con­ver­sas em um aplica­ti­vo de men­sagens, que entrou para a história como Vaza Jato, rev­el­ou uma série de irreg­u­lar­i­dades jurídi­cas entre juiz e inves­ti­gadores para obter provas, ori­en­tar teste­munhas e com­bi­nar diligên­cias judi­ci­ais.

Um dos nomes por trás da inves­ti­gação jor­nalís­ti­ca foi Lean­dro Demori, que na época era edi­tor-exec­u­ti­vo do The Inter­cept Brasil e atu­ou na coor­de­nação dos tra­bal­hos. Jor­nal­ista e escritor gaú­cho com tra­jetória em veícu­los como Zero Hora e revista Piauí, autor de livro sobre a atu­ação de um mafioso ital­iano no Brasil (Cosa Nos­tra no Brasil – A história do mafioso que der­rubou um império), Demori mer­gul­hou no jor­nal­is­mo inves­tiga­ti­vo. A reper­cussão da Vaza Jato o alçou a um recon­hec­i­men­to nacional, mas tam­bém o colo­cou na mira de inimi­gos. Ele chegou a rece­ber ameaças de morte e pas­sou a andar com segu­rança pes­soal por um lon­go perío­do.

Mais de qua­tro anos após essa drás­ti­ca mudança, na vida pes­soal e nos rumos do país, o jor­nal­ista ago­ra se prepara para um novo desafio. No próx­i­mo dia 26 de setem­bro, Demori estreia um novo pro­gra­ma de entre­vis­tas na TV Brasil, emis­so­ra da Empre­sa Brasil de Comu­ni­cação (EBC). O Dan­do a Real com Demori, ou DR com Demori, será exibido todas às terças-feiras, às 22 horas. Com duração de meia hora, Demori rece­berá nos estú­dios da EBC, em Brasília, fig­uras emblemáti­cas da Repúbli­ca para uma “con­ver­sa aber­ta e infor­ma­ti­va”.

Pro­duzi­do por profis­sion­ais da EBC e apre­sen­ta­do por ele, o pro­gra­ma é parte da nova grade da TV Brasil que vai estrear neste mês. O primeiro entre­vis­ta­do será o min­istro do Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF) Gilmar Mendes. A segun­da con­ver­sa será com a dep­uta­da fed­er­al Éri­ka Hilton (PSOL-SP), a primeira mul­her trans e negra a chegar ao Con­gres­so Nacional.

Brasília (DF), 14/09/2023, O jornalista Leandro Demori, apresentador do novo programa da TV Brasil, Dando a Real, posa para fotos no estúdio do programa. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Repro­dução: O jor­nal­ista Lean­dro Demori, apre­sen­ta­dor do novo pro­gra­ma da TV Brasil, Dan­do a Real com Demori Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

“Acho que eu con­si­go jun­tar essa história de jor­nal­is­mo que eu ten­ho, de ter memória das coisas, de ter feito mui­ta cober­tu­ra, ter par­tic­i­pa­do de mui­ta coisa, con­seguir ter uma con­ver­sa aber­ta e, ao mes­mo tem­po, uma con­ver­sa infor­ma­ti­va, não leviana. A ideia é jun­tar isso e faz­er tele­visão, faz­er um pro­gra­ma que as pes­soas se entreten­ham, mas saiam com a sen­sação de terem apren­di­do algo”, disse em entre­vista à Agên­cia Brasil.

Sobre a expec­ta­ti­va de estrear na tele­visão, espe­cial­mente em uma emis­so­ra públi­ca, Demori afir­ma que quer aju­dar a recon­stru­ir a inde­pendên­cia da comu­ni­cação públi­ca, como ocorre na maio­r­ia das exper­iên­cias que ele mes­mo acom­pan­hou quan­do viveu na Europa.

“A EBC tin­ha uma ideia, ain­da espero que pros­pere, que é a de ser uma emis­so­ra inde­pen­dente, como é na Itália, na Inglater­ra, na França. É con­seguir, de fato, faz­er uma emis­so­ra que não fique ao sabor do jogo políti­co do momen­to. Por isso, quan­do rolou esse con­vite, eu aceit­ei na hora, ape­sar de saber que iria ouvir críti­cas de cole­gas, do públi­co, que enx­ergam a TV públi­ca errada­mente como cabide de emprego, como gas­to desnecessário. Isso é um pen­sa­men­to com­ple­ta­mente idio­ta. A TV públi­ca não é isso.”

“Pre­cisamos aumen­tar a cred­i­bil­i­dade na TV públi­ca, faz­er as pes­soas gostarem, como a pop­u­lação pas­sou a defend­er o SUS [Sis­tema Úni­co de Saúde]. Quan­do as pes­soas gostam, elas defen­d­em. Isso aqui [EBC] é serviço de util­i­dade públi­ca número um.”

Além de falar sobre comu­ni­cação públi­ca, o novo apre­sen­ta­dor da TV Brasil anal­isou o cenário de com­bate à cor­rupção e os desafios do jor­nal­is­mo em tem­pos de hege­mo­nia das platafor­mas dig­i­tais.

Con­fi­ra os prin­ci­pais tre­chos da entre­vista exclu­si­va à Agên­cia Brasil:

Agên­cia Brasil: Como será o for­ma­to do pro­gra­ma, o per­fil dos entre­vis­ta­dos e o que as pes­soas podem esper­ar do Dan­do a Real com Lean­dro Demori na TV Brasil?
Lean­dro Demori: A gente pegou o for­ma­to clás­si­co do jor­nal­is­mo, que é o for­ma­to de entre­vista, um dos mais clás­si­cos da tele­visão e do rádio, mas tam­bém com essa pega­da que veio da inter­net, no pós-covid, mis­tu­ran­do um pouco com o mod­e­lo de mesa cast, que tem grandes méri­tos de con­seguir se comu­nicar bem com as pes­soas: con­segue audiên­cia, as pes­soas gostam e obtém uma retenção [dos espec­ta­dores]. Já vimos entre­vis­tas de duas horas, três horas [nesse for­ma­to]. Porque é bom, entretém, as pes­soas gostam da con­ver­sa, tem um sen­ti­do de papo mes­mo. Não tem aque­la onda de faz­er pressão sobre o entre­vis­ta­do, ficar botan­do con­tra a parede, não é essa a ideia.
Só que tem uma lacu­na nos pro­gra­mas do tipo mesa cast, que é a preparação. Alguns são muito bons, mas, no ger­al, são mal prepara­dos, você não con­segue ver tré­pli­cas, por exem­p­lo. Alguém vai lá, fala uma bobagem e o entre­vis­ta­dor não está prepara­do para rebater. Ou não tem memória para saber como as coisas acon­te­ce­r­am. Então, acho que eu con­si­go jun­tar essa história de jor­nal­is­mo que eu ten­ho, de ter memória das coisas, de ter feito mui­ta cober­tu­ra, ter par­tic­i­pa­do de mui­ta coisa, con­seguir ter uma con­ver­sa aber­ta e, ao mes­mo tem­po, uma con­ver­sa infor­ma­ti­va, não leviana.
A ideia é jun­tar isso e faz­er tele­visão, faz­er um pro­gra­ma que as pes­soas se entreten­ham, mas saiam com a sen­sação de terem apren­di­do algo. Os con­vi­da­dos serão prin­ci­pal­mente fig­uras do poder da Repúbli­ca mes­mo. O primeiro entre­vis­ta­do é o min­istro Gilmar Mendes, do STF, e o pro­gra­ma vai ter duração de meia hora, todas às terças-feiras, às 22h.

Agên­cia Brasil: Você tem uma tra­jetória como repórter na mídia com­er­cial, depois em pro­je­tos de jor­nal­is­mo inves­tiga­ti­vo, como é o caso do The Inter­cept Brasil. Qual a sen­sação, ago­ra, de tra­bal­har em uma emis­so­ra públi­ca, como a TV Brasil? E, na sua opinião, qual deve ser o papel da mídia públi­ca em uma democ­ra­cia?
Lean­dro Demori:  Eu acho que os cole­gas jor­nal­is­tas [no Brasil] erram na visão que eles têm sobre comu­ni­cação públi­ca. Eu mor­ei um bom tem­po na Itália e lá, a comu­ni­cação, prin­ci­pal­mente de tele­visão, é públi­ca. A [emis­so­ra] RAI é a TV públi­ca da Itália. E você não tem isso só na Itália, tem em vários país­es do mun­do. Na Itália são três canais de TV aber­ta da RAI, cada um deles foca­do em uma coisa. O RAI 1 real­mente é um canal mais pop­u­lar, com pro­gra­mas de auditório, pro­gra­mas como o Big Broth­er, tem alguns noti­ciários tam­bém. Mas se você vai para o RAI 2 e o RAI 3, são canais fab­u­losos, com doc­u­men­tários, pro­gra­mas de reporta­gens que a gente quase não tem mais no Brasil, pro­gra­mas de entre­vis­tas longuís­si­mos, de três, qua­tro horas.
Tem uma cul­tura na Itália, com todos os seus prob­le­mas, de que o primeiro-min­istro vai na TV públi­ca dar entre­vista, os min­istros vão. As pes­soas não se escon­dem, elas encar­am a tele­visão públi­ca como uma neces­si­dade de falar com o públi­co.
Isso abriu muito a min­ha cabeça, quan­do eu mor­ei lá, em 2008, 2009 e 2010. Era no mes­mo momen­to que sur­gia a EBC, então eu fiquei muito empol­ga­do com isso. E a EBC tin­ha uma ideia, ain­da espero que pros­pere, que é a de ser uma emis­so­ra inde­pen­dente, como é na Itália, na Inglater­ra, na França. É con­seguir, de fato, faz­er uma emis­so­ra que não fique ao sabor do jogo políti­co do momen­to. Por isso, quan­do rolou esse con­vite, eu aceit­ei na hora, ape­sar de saber que iria ouvir críti­cas de cole­gas, do públi­co, que enx­ergam a TV públi­ca errada­mente como cabide de emprego, como gas­to desnecessário. Isso é um pen­sa­men­to com­ple­ta­mente idio­ta. A TV públi­ca não é isso.
Out­ra coisa que me desafiou muito é ver o que acon­te­ceu nos últi­mos anos com a EBC. A gente soube, é públi­co, que a TV públi­ca foi proibi­da de usar a palavra ditadu­ra. Teve pro­gra­ma tira­do do ar porque apare­ceu na tela um muro picha­do com a imagem da Marielle Fran­co. Coisas absur­das, ina­ceitáveis.
Para mim, é uma hon­ra tra­bal­har na TV Brasil, uma opor­tu­nidade imen­sa. Eu quero dar um pouco do que con­struí, do meu nome, da min­ha car­reira, e mostrar para as pes­soas que isso aqui é das pes­soas, uma tele­visão públi­ca, que elas vão ter entreten­i­men­to, infor­mação, debates. A gente viu o que acon­te­ceu nos últi­mos anos: sucatea­men­to, cen­sura, perseguições. Isso não pode acon­te­cer e eu espero aju­dar a colo­car um tijo­lo nes­sa história, aju­dar a emis­so­ra a se estru­tu­rar para não ficar ao sabor do jogo políti­co.

Agên­cia Brasil: A EBC chegou a ter, em seu for­ma­to orig­i­nal, mecan­is­mos de autono­mia como um Con­sel­ho Curador com ampla par­tic­i­pação da sociedade civ­il e um manda­to para dire­tor-pres­i­dente, sim­i­lares aos que exis­tem em out­ros país­es, mas que foram extin­tos no gov­er­no Michel Temer, ain­da em 2016. Levan­do em con­ta esse con­tex­to que você falou, sobre o desmonte da EBC nos últi­mos anos, já na gestão Jair Bol­sonaro, quais as suas expec­ta­ti­vas sobre o que deve balizar a recon­strução da comu­ni­cação públi­ca no Brasil pelo atu­al gov­er­no?
Lean­dro Demori:  Não está na min­ha alça­da, mas eu acho que a EBC dev­e­ria pas­sar por uma estru­tu­ração que desse inde­pendên­cia real para ela, isso é o mais impor­tante. Veja que coisa curiosa: foi aprova­da no Brasil uma “inde­pendên­cia” do Ban­co Cen­tral que ninguém mexe no pres­i­dente da insti­tu­ição. Por que alguém con­segue mex­er no pres­i­dente da EBC quan­do muda o gov­er­no? Então, a real inde­pendên­cia no mod­e­lo que a gente tem no Ban­co Cen­tral dev­e­ria era estar aqui den­tro. Isso é uma con­strução e eu espero que esse gov­er­no ten­ha von­tade de faz­er.
Na RAI, na Itália, quan­do as pes­soas inter­fer­em muito politi­ca­mente na emis­so­ra, o povo recla­ma. No que me cabe, eu vou ten­tar tam­bém bus­car por audiên­cia. Jor­nal­ista nor­mal­mente é aves­so a isso, acha que audiên­cia tem que ser dada por pro­gra­mas como o Big Broth­er. Mas dá para faz­er audiên­cia com con­teú­do rel­e­vante, as pes­soas enten­dem e val­orizam. E pre­cisamos aumen­tar a cred­i­bil­i­dade na TV públi­ca, faz­er as pes­soas gostarem, como a pop­u­lação pas­sou a defend­er o SUS [Sis­tema Úni­co de Saúde]. Quan­do as pes­soas gostam, elas defen­d­em. Isso aqui [EBC] é serviço de util­i­dade públi­ca número um. Em um con­tex­to de pan­demia, a TV públi­ca seria a úni­ca emis­so­ra que pode­ria ficar 24 horas no ar aler­tan­do a pop­u­lação sobre covid-19. A TV com­er­cial não faria isso, porque não vai parar de pas­sar nov­ela, Big Broth­er ou com­er­cial por isso.

Agên­cia Brasil: O min­istro do STF Dias Tof­foli invali­dou todas as provas da Oper­ação Lava Jato obti­das nos acor­dos de leniên­cia da Ode­brecht, feito em 2016. Tof­foli chamou de “armação” a prisão do pres­i­dente Lula, em 2018, e con­sider­ou o episó­dio um “erro históri­co”. Como você avalia o impacto dessa decisão, ten­do em vista que a mudança de per­cepção sobre a oper­ação foi a prin­ci­pal decor­rên­cia da série de reporta­gens da Vaza Jato?
Lean­dro Demori: A decisão do Tof­foli está qua­tro anos e meio atrasa­da. Eu enten­do que o STF teve que tirar a tam­pa dessa pan­ela de pressão aos poucos. O Supre­mo, durante muito tem­po, foi quase um par­ceiro da Lava Jato, coad­unan­do com tudo o que acon­te­ceu ali, com as prisões ile­gais, proibição de entre­vis­tas, pres­i­dente Lula pre­so, proibição de autor­iza­ção para que ele fos­se a velório, prisões pre­ven­ti­vas que se esten­der­am por até dois anos. Eu não ten­ho o menor praz­er em defendê-lo, mas o Eduar­do Cun­ha ficou pre­so pre­ven­ti­va­mente de modo ile­gal, durante anos, sem jul­ga­men­to. Ou você jul­ga e con­de­na, ou você sol­ta.
Estou lendo um livro sobre o caso do Julian Assange e o rela­tor espe­cial da ONU [Orga­ni­za­ção das Nações Unidas], que é o cara que vai inves­ti­gar o caso do Assange. As semel­hanças que ele faz com a Lava Jato são absur­das. Maus-tratos e tor­tu­ra, no lim­ite. Você iso­la, humil­ha, ame­dronta, segue pon­tos para a pes­soa se que­brar, entre­gar o que nem sabe.
A decisão do Tof­foli é tar­dia, mas o STF foi despres­sur­izan­do aos poucos. Primeiro rever­teu a prisão em segun­da instân­cia, depois anu­lou os proces­sos do Lula. O coração dessa decisão é uma avali­ação téc­ni­ca fei­ta pelo min­istro [Ricar­do] Lewandows­ki, ago­ra aposen­ta­do, que é per­fei­ta: se você teve obtenção ile­gal de provas você não pode usar no proces­so.
As pes­soas que não gostam dis­so pre­cisam recla­mar com o Deltan [Dal­lagnol], com o Car­los Fer­nan­do, o Januário Palu­do, o Sér­gio Moro, porque eles obtiver­am provas de for­ma ile­gal na Suíça e troux­er­am para o proces­so. No fim das con­tas, a ânsia deles, que era pren­der o Lula – que foi cita­do 22 mil vezes nas men­sagens da Vaza Jato –, fez com que atro­pelassem vários insti­tu­tos do Esta­do Democráti­co de Dire­ito e do dev­i­do proces­so legal.
Ago­ra, o Tof­foli está nave­gan­do nes­sa maré, está se reposi­cio­nan­do no jogo todo, porque esta­va posi­ciona­do do out­ro lado. Mas eu nun­ca vou achar ruim um min­istro, pelos motivos que for, se reposi­cionar para o lado cer­to, o lado do Esta­do Democráti­co de Dire­ito, do uso de provas legais e a favor do dev­i­do proces­so legal. Para mim, está tudo bem.

Agên­cia Brasil: Mais de qua­tro anos após a série de reporta­gens da Vaza Jato, você crê que o Brasil mudou de pata­mar, para mel­hor, em seus méto­dos de com­bate à cor­rupção?
Lean­dro Demori: O com­bate à cor­rupção tem um pro­gra­ma de fun­do, que não podemos perder de vista. Isso está longe de ser qual­quer teo­ria da con­spir­ação porque todos os doc­u­men­tos estão aí. Os com­bat­entes da cor­rupção no Brasil foram treina­dos em um mod­e­lo cri­a­do para o com­bate à cor­rupção nos Esta­dos Unidos. É um mod­e­lo. No fim das con­tas, tra­ta-se de uma usi­na de repa­tri­ação de dólares para o mer­ca­do amer­i­cano, é isso que eles fazem. Os agentes do FBI [Polí­cia Fed­er­al dos EUA] via­jam pelo mun­do, falam com gente des­cuida­da ou mal-inten­ciona­da, como era o caso dos procu­radores de Curiti­ba, cole­tam infor­mações, proces­sam empre­sas estrangeiras nos EUA e lev­am dólares para lá. Isso é um sis­tema, os Esta­dos Unidos não estão erra­dos em faz­er isso, do pon­to de vista deles. Erra­dos somos nós em ter­mos sido treina­dos nis­so e ser­mos usa­dos para isso. É um pano de fun­do, que sub­sti­tu­iu a políti­ca de guer­ra às dro­gas.
Os EUA cri­aram a guer­ra às dro­gas nos anos 1960 e os país­es do mun­do inteiro entraram nes­sa onda. Nos últi­mos 10, 15 anos, essa coisa veio despres­sur­izan­do e vários país­es começaram a lib­er­ar as dro­gas, prin­ci­pal­mente a macon­ha, inclu­sive os próprios Esta­dos Unidos. Então, isso é uma arma geopolíti­ca amer­i­cana, que ago­ra é a guer­ra de com­bate à cor­rupção. Eles iden­ti­fi­cam empre­sas que estão muito fortes em alguns setores e atu­am em cima delas. Isso não acon­te­ceu só no Brasil com as con­stru­toras e com a Petro­bras. Isso acon­te­ceu na França com a Alstom, um caso clás­si­co. Um exec­u­ti­vo da Alstom que via­jou pros Esta­dos Unidos foi pre­so e ficou pre­so lá até começar a delatar. Levaram euros de um esque­ma de cor­rupção que tin­ha acon­te­ci­do na França, com din­heiro francês, cor­rompi­do por france­ses. Acho que as pes­soas estão longe de enten­der isso e, pos­sivel­mente, quem está nos lendo ou nos ouvin­do ago­ra pelo rádio vai achar que a gente está falan­do na teo­ria da con­spir­ação. Não tem prob­le­ma nen­hum, o tem­po vai pas­sar e ten­ho paciên­cia sufi­ciente para que as pes­soas enten­dam, de fato, o que está acon­te­cen­do.

Agên­cia Brasil: E sobre os pro­ced­i­men­tos atu­ais, em meio às inves­ti­gações de cor­rupção envol­ven­do o ex-pres­i­dente Jair Bol­sonaro e seu aju­dante de ordens Mau­ro Cid, que assi­nou um acor­do de delação pre­mi­a­da com a Polí­cia Fed­er­al. Você vê difer­enças em relação aos méto­dos ante­ri­ores?
Lean­dro Demori: No micro, eu vejo alguns momen­tos bons, mas out­ros pre­ocu­pantes. O Mau­ro Cid ficou pre­so pre­ven­ti­va­mente por dois meses e meio, três meses e saiu. Não ficou pre­so pre­ven­ti­va­mente por um ano e meio, dois ou três anos, como era na Lava Jato. Isso é um avanço porque você evi­ta, como eu falei antes, uma pressão para o cara entre­gar coisas. No sis­tema judi­cial, não se pode faz­er isso. Tam­bém vejo uns bons movi­men­tos, do tipo, se fos­se no tem­po da Lava Jato, o que o Mau­ro Cid pen­sou em falar para a Polí­cia Fed­er­al já teria vaza­do como cardá­pio de delação, já teria o nome de todo mun­do ali, com 200 pes­soas ten­do o nome joga­do na lama e depois, na hora de ver as provas mes­mo, ia sobrar cin­co ali [con­de­nadas], e as out­ras 195 iam ser espez­in­hadas, humil­hadas. Por mais que eu não goste da Cláu­dia Cruz, a mul­her do Eduar­do Cun­ha, nada se provou con­tra ela na Lava Jato, só que ela pas­sou para a história como uma ban­di­da.
Eu acho que as coisas estão mais con­ti­das, as coisas ficam no sig­i­lo durante mais tem­po, mas eu acho que ain­da tem muito vaza­men­to sele­ti­vo de infor­mação, prin­ci­pal­mente para uma ou duas emis­so­ras de tele­visão, aque­las maiores que estão sem­pre ali, e isso é ruim para o proces­so legal, porque o jul­ga­men­to na praça é mais impor­tante do que jul­ga­men­to de fato. Nes­sa brecha, aparece o sal­vador da pátria, o out­sider, um tipo como Bol­sonaro. Então, eu espero que nesse proces­so do Mau­ro Cid, dos mil­itares, do Bol­sonaro, seja lev­a­do a bom ter­mo, com respeito ao dev­i­do proces­so legal como se tem na Sué­cia, na Norue­ga, na Ale­man­ha, que é o sig­i­lo abso­lu­to enquan­to a pes­soa não é denun­ci­a­da. Tem mui­ta coisa para mel­ho­rar, mas já está bem mel­hor que 2015, 2016, que era uma fes­ta.

Agên­cia Brasil: Como é que você avalia a qual­i­dade do jor­nal­is­mo hoje em dia, espe­cial­mente em meio às mudanças acel­er­adas, nos últi­mos anos, pela hege­mo­nia das platafor­mas na dis­tribuição, con­sumo e disponi­bil­i­dade da infor­mação, e de como os algo­rit­mos inter­fer­em nesse ambi­ente, priv­i­le­gian­do dis­cur­sos de ódio e out­ros tipos de con­teú­do que causam mais enga­ja­men­to?
Lean­dro Demori: Eu acho que a qual­i­dade do jor­nal­is­mo hoje, no ger­al – isso não só eu quem falo, já vi uma palestra do [jor­nal­ista] Élio Gas­pari sobre isso –, é mel­hor do que no pas­sa­do. Fiz uma pesquisa exten­sa para escr­ev­er um livro, que publiquei em 2016, sobre um mafioso ital­iano que viveu no Brasil, e li muitos jor­nais da época [anos 1960, 1970]. A qual­i­dade média dos jor­nais do Brasil era hor­rív­el, essa é a real. As fontes eram muito ruins, era quase sem­pre o del­e­ga­do que fala­va, o poli­cial, o juiz ou o desem­bar­gador. Nun­ca ninguém ia lá ouvir o fave­la­do, a pes­soa que tomou tapa na cara, a víti­ma, a mãe da cri­ança que tomou um tiro da polí­cia. Era um jor­nal­is­mo muito mais feito da elite para elite, mais que hoje. Então, a qual­i­dade do jor­nal­is­mo feito atual­mente é mel­hor, no ger­al.
Se você for pegar o que é pro­duzi­do pela Agên­cia Públi­ca, se for pegar o que é pro­duzi­do pela Ponte Jor­nal­is­mo, o repórter não vai errar e con­tar história como um repórter de polí­cia dos anos 1970 con­ta­va. E você não tin­ha inter­net para des­men­tir como ago­ra. Ago­ra, por out­ro lado, platafor­mas dos algo­rit­mos bagunçam o jogo porque a gente erra mais, pela pres­sa, e a gente não tem o con­t­role da dis­tribuição. Então, não somos nós que man­damos no que a gente faz. Isso faz com que a gente acabe pio­ran­do essa qual­i­dade porque temos que jog­ar o jogo do algo­rit­mo, de usar as palavras cer­tas. Tem que usar repetição de palavra, o tex­to tem que ter até 48 car­ac­teres no Twit­ter [platafor­ma X], no Insta­gram é de out­ro jeito, as escol­has edi­to­ri­ais são piores. Então, acho que as platafor­mas pio­raram muito isso e por isso elas pre­cisam ser reg­u­ladas, o que não temos no Brasil.
O Pro­je­to de Lei 2630 foi com­bat­i­do pelas maiores empre­sas já cri­adas pelo cap­i­tal­is­mo em sua história. A gente não tá falan­do de gente que tá con­tan­do din­heiro. Google, Face­book, Microsoft, Apple, todos eles são muito mais poderosos, têm muito menos fun­cionários, têm muito mais lucro e influ­en­ci­am muito mais no lob­by nos Con­gres­sos do mun­do todo do que a indús­tria do petróleo e dos car­ros jamais imag­i­naram. Fiz­er­am uma com­pra de opinião no Brasil, inclu­sive de meios de esquer­da, que as pes­soas, do dia pra noite, começaram a bom­bardear o PL 2630. Na min­ha opinião, foi um erro. A gente deu um tiro no pé como jor­nal­ista.
O que vai acon­te­cer se essa galera não for reg­u­la­men­ta­da é que, daqui a pouco, eles vão sen­tir que não tem mais cli­ma para aprovar a reg­u­lação, e vão parar de finan­ciar essa galera que foi quem teve opinião com­pra­da, porque eles não pre­cisam mais. Os caras tomaram con­ta do negó­cio de fato. Então, sou da opinião que o PL 2630 pre­cisa voltar a ser debati­do, pre­cisa ser aprova­do. Essa galera pre­cisa respon­der judi­cial­mente pelo que eles fazem e pre­cisam dividir, de fato, a grana que eles gan­ham com o nos­so tra­bal­ho. O Face­book, por exem­p­lo, ten­tou tirar notí­cias no Canadá, ten­tou tirar notí­cias do Face­book na Aus­trália, e a audiên­cia da platafor­ma caiu. Porque eles pre­cisam do nos­so tra­bal­ho. Eles são muito ardilosos porque ain­da têm essa imagem de empre­sa fofin­ha, tech, bonit­in­ha. Leva par­la­men­tar para passear nos Esta­dos Unidos, leva o jor­nal­ista para pro­je­to de ino­vação tec­nológ­i­ca e você vai enredan­do as pes­soas. Se a gente não aproveitar para reg­u­lar essas platafor­mas, vamos perder uma opor­tu­nidade históri­ca super­im­por­tante.

Edição: Denise Griesinger

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