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Dona Zica, 92 anos: da infância como doméstica à liderança sindical

Militante histórica reflete sobre mobilização das trabalhadoras

Isabela Vieira — repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 29/06/2025 — 13:10
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: © Tânia Rêgo/Agência Brasil

Cer­ca­da pelas mon­tan­has do Par­que da Ser­ra do Men­dan­ha, está uma peque­na casa, em uma rua de Vila Aliança, bair­ro da zona oeste do Rio de Janeiro. A por­ta des­ta casa, de muro verde água, fica sem­pre aber­ta. Os desav­isa­dos que entram cor­rem o risco de tropeçar pipas, cerol e lin­ha, expli­ca­dos pelo entra e sai de cri­anças. É ali que mora Anazir Maria de Oliveira, a Dona Zica, de 92 anos, como ficou con­heci­da. Ela não tran­ca a por­ta, mas não só pelos bis­ne­tos, que emp­inam pipa na rua. Lid­er­ança comu­nitária do bair­ro, que aju­dou a urbanizar, ela é muito procu­ra­da por seu tra­bal­ho de refer­ên­cia políti­ca, social e reli­giosa ─ ela ain­da é coor­de­nado­ra na Pas­toral Afro-Brasileira da Arquid­io­cese do Rio de Janeiro.

“O papel das igre­jas, hoje, é incen­ti­var a luta cole­ti­va, prin­ci­pal­mente, a juven­tude”, disse ela. “É pre­ciso incen­ti­var os jovens a estarem nos movi­men­tos soci­ais, para que pos­sam ampli­ar o con­hec­i­men­to sobre a sociedade e con­tribuir para o seu próprio futuro, para que haja esper­ança, entende? Nos­sas con­quis­tas nun­ca foram fáceis”, com­ple­tou.

A tra­jetória de Dona Zica, que nasceu em Man­hu­mir­im, na zona da mata mineira, alcançou montes além dos do Medan­ha. Ela é uma das lid­er­anças que fun­daram, nos anos 1980, o Sindi­ca­to dos Tra­bal­hadores Domés­ti­cos do Municí­pio do Rio de Janeiro, a Cen­tral Úni­ca dos Tra­bal­hadores (CUT) e o Par­tido dos Tra­bal­hadores (PT).

Mas, para Zica, a luta das domés­ti­cas sem­pre foi a mais impor­tante. Foi a profis­são que ela exerceu por mais tem­po: começou muito nova no ofí­cio, aos 9 anos, quan­do chegou a ficar três meses sem salário. Hoje, o tra­bal­ho domés­ti­co remu­ner­a­do feito por cri­anças e ado­les­centes até 17 anos é proibido e con­sid­er­a­do uma das piores for­mas de tra­bal­ho infan­til, por expor as peque­nas a riscos de vio­lên­cias e lesões.

Dona Zica veio aos 11 anos para o Rio de Janeiro, acom­pan­har a mãe e um irmão, em bus­ca de uma vida mel­hor. Na cidade natal, deixou para trás nove irmãos fale­ci­dos, que não resi­s­ti­ram àque­les tem­pos de desas­sistên­cia. Em jun­ho de 2025, Anazir com­ple­tou 92 anos jun­to com os dez anos da Lei Com­ple­men­tar 150, que reg­u­la­men­tou os dire­itos trazi­dos pela PEC das Domés­ti­cas. Entre eles, o Fun­do de Garan­tia do Tem­po de Serviço (FGTS), o seguro-desem­prego, auxílio-creche, salário-família, adi­cional noturno, ind­eniza­ção por demis­são sem jus­ta causa e o paga­men­to de horas extras.

A luta dela, no entan­to, é bem ante­ri­or, quan­do empre­gadas domés­ti­cas sequer tin­ham dire­ito a fol­ga sem­anal remu­ner­a­da. “Até 2013, não tín­hamos uma lei que garan­tisse o des­can­so sem­anal. Era um bene­fí­cio que, se os patrões quisessem, eles davam, se não quisessem, não, enten­deu?”, expli­cou Anazir.

Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Na foto, emoldurada a Medalha de Reconheimento Chiquinha Gonzaga concedida a ela pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Anazir Maria de Oliveira, con­heci­da como Dona Zica, 92 anos. Na foto, emoldu­ra­da a Medal­ha de Recon­hec­i­men­to Chiquin­ha Gon­za­ga con­ce­di­da a ela pela Câmara Munic­i­pal do Rio de Janeiro. Tânia Rêgo/Agência Brasil

Domésticas na Constituinte

Nos anos 1980, ao defend­er o des­can­so no Con­gres­so Nacional, ela se deparou com o rechaço do dep­uta­do Ama­r­al Neto (na época, do PDS, que serviu de base para for­mação do PFL, atu­al União Brasil). “Ele disse que, aos finais de sem­ana, que­ria ser servi­do em casa. Mas nós respon­demos que ele nun­ca mais teria um voto de empre­ga­da domés­ti­ca”, relem­brou.

A atu­ação na Con­sti­tu­inte, em 1988, era para que as domés­ti­cas fos­sem con­sid­er­adas uma cat­e­go­ria profis­sion­al. Zica lid­er­ou a Asso­ci­ação de Tra­bal­hado­ras Domés­ti­cas, naque­le momen­to, quan­do a enti­dade foi trans­for­ma­da no Sindi­ca­to dos Domés­ti­cos do Rio. Ela tra­bal­ha­va no Leblon, na zona sul, e, de noite, pega­va um ônibus para Brasília, para con­ver­sar com par­la­mentares. No mes­mo dia em que chega­va na cap­i­tal fed­er­al, ela volta­va, dire­to para o tra­bal­ho. Com a nova Con­sti­tu­ição, elas con­seguiram férias remu­ner­adas de 30 dias, o 13º salário, o dire­ito ao avi­so prévio e um dia de des­can­so pago durante a sem­ana.

Para a atu­al pres­i­den­ta do sindi­ca­to, Maria Izabel Mon­teiro, além da atu­ação pio­neira, Zica é uma figu­ra impor­tante na defe­sa de avanços cole­tivos. “Esta­mos falan­do de dire­itos soci­ais das pes­soas menos favore­ci­das, de dire­itos humanos”, frisou Mon­teiro.

Alianças e avanços

Em entre­vista à Agen­cia Brasil, Anazir falou sobre sua tra­jetória pes­soal, o sindi­ca­to, desta­cou o papel da Igre­ja Católi­ca na orga­ni­za­ção embri­onária das domés­ti­cas em pas­torais e do apoio do movi­men­to fem­i­nista, de mais mul­heres bran­cas.

Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Anazir Maria de Oliveira, con­heci­da como Dona Zica, 92 anos Tânia Rêgo/Agência Brasil

“A gente deu força para elas e elas nos der­am força tam­bém. Adqui­r­i­mos exper­iên­cia na relação, pela tra­jetória de reivin­di­cação que elas tin­ham acu­mu­la­do”, saudou Anazir.

Tra­bal­hou como lavadeira e pas­sadeira por 40 anos, é mãe de seis fil­hos, e, depois dos 40 anos de idade, voltou a estu­dar: cur­sou duas uni­ver­si­dades, de ped­a­gogia e serviço social — que con­cluiu aos 83 anos. Em sua tra­jetória, a ativista trans­for­mou patroas em ali­adas, que finan­cia­ram e apoiaram suas ativi­dades. E tam­bém fez do esposo, Jair Bened­i­to de Oliveira, seu par­ceiro. Ele fale­ceu em 1997, e todas as noites em que Zica saía para suas luta políti­ca ele esper­a­va, da varan­da, a com­pan­heira voltar de seus com­pro­mis­sos.

Zica recon­hece os avanços das domés­ti­cas, mas defende que a lei inclua as diaris­tas, cujos salários e con­tribuições para pre­v­idên­cia são mais baixos e vul­neráveis. Ela defende a importân­cia da carteira de tra­bal­ho, que vem sendo despreza­da por cat­e­go­rias e jovens, e cobra fis­cal­iza­ção con­tra a infor­mal­i­dade, o tra­bal­ho domés­ti­co escra­vo e infan­til.

“Nós, tra­bal­hado­ras domés­ti­cas, temos uma her­ança que vem des­de a escravidão. Todos os tra­bal­hadores têm suas difi­cul­dades, e patrões não pagam [salário] porque querem, pagam porque são obri­ga­dos. Mas as empre­gadas domés­ti­cas, mes­mo com patrões sendo obri­ga­dos a pagar, têm que cor­rer atrás. A gente vive ain­da numa real­i­dade em que o nos­so tra­bal­ho, um tra­bal­ho braçal, deve ser feito sem nen­hu­ma rec­om­pen­sa. Con­tribuí­mos para que os nos­sos opres­sores chegassem onde chegaram, com camisas bem pas­sadas e ali­men­ta­dos. Mas essa dívi­da não foi paga”.

O Brasil tem 6 mil­hões de empre­ga­dos domés­ti­cos, de acor­do com dados do Insti­tu­to Brasileiro de Geografia e Estatís­ti­ca (IBGE), de 2022, sendo que seis em dez são mul­heres negras. Ape­nas três em dez con­tribuem para a pre­v­idên­cia, e somente 24,7% têm carteira assi­na­da. A cat­e­go­ria tam­pouco tem dire­ito ao abono salar­i­al, pago para quem gan­ha até dois salários mín­i­mos, e só recebe três das cin­co parce­las de seguro desem­prego a que todos os demais tra­bal­hadores com carteira assi­na­da têm dire­ito.

Melhores trechos da entrevista

Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Dona Zica é uma das fun­dado­ras do Sidi­ca­to dos Tra­bal­hadores Domés­ti­cos do Rio de Janeiro, da Cen­tral Úni­ca dos Trabalhadores(CUT) e do Par­tido dos Trabalhadores(PT) Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agên­cia Brasil: Quan­do a sen­ho­ra começou a tra­bal­har como empre­ga­da e como foi o des­per­tar para a defe­sa de dire­itos na profis­são?

Dona Zica: A min­ha mãe era tra­bal­hado­ra domés­ti­ca em uma fazen­da, em Man­hu­mir­im. Nes­sa fazen­da, ela criou os fil­hos dos patrões, e, ali, eu nasci, lidan­do com a plan­tação, a col­hei­ta de café. Vivi com ela até os meus 9 anos de idade, quan­do mamãe resolveu sair da área rur­al para a cidade. Então, ela me colo­cou para tra­bal­har com um dos fil­hos dos patrões que ela criou na fazen­da. Eu tin­ha 9 anos, cui­da­va de duas cri­anças e fazia alguns serviços da casa. Mas min­ha mãe tin­ha noção da importân­cia da esco­la, mes­mo sem nun­ca ter fre­quen­ta­do. Eu fui a primeira pes­soa da família a entrar em uma esco­la. Então, ela me deixou lá, des­de que eu pudesse estu­dar.

Eu fiquei nes­ta casa até os 11 anos, quan­do começaram a atrasar o meu paga­men­to. No ter­ceiro mês de atra­so, eu fui emb­o­ra para casa. E, aqui tem um fato que eu gos­to muito de nar­rar, pois, mes­mo eu sendo muito ingênua, uma meni­na, na época, depois de meses de atra­so no paga­men­to, depois do patrão ter dito que não ia me pagar se eu não voltasse a tra­bal­har, eu deci­di que ele ia me pagar. E, como eu gosta­va muito de estu­dar ─ estu­da­va com fil­hos da classe média, com finan­cia­men­to [de bol­sa] da Caixa Esco­lar, em uma esco­la de freiras, naque­la época não tin­ha esco­la públi­ca ─ eu son­ha­va com os cader­nos boni­tos, tabua­da, deles, que min­ha mãe não tin­ha condições de com­prar. Cer­to dia, eu pas­sei na loja e com­prei os cader­nos. Pen­durei tudo na con­ta dos patrões.

Quan­do ele foi lá em casa recla­mar, eu ape­nas respon­di que: gastei o que o sen­hor me devia. E min­ha mãe me apoiou. Sem­pre gos­to de relatar esse fato para chegar nas tra­bal­hado­ras domés­ti­cas. Porque eu vejo nesse acon­tec­i­men­to, sem eu ter nen­hum con­hec­i­men­to, nen­hu­ma infor­mação, a min­ha primeira reivin­di­cação dos meus dire­itos enquan­to tra­bal­hado­ra domés­ti­ca.

Agên­cia Brasil: A sen­ho­ra pode nos con­tar sobre sua par­tic­i­pação na fun­dação do Sindi­ca­to dos Tra­bal­hadores Domés­ti­cos, como começou a mobi­liza­ção?

Dona Zica:  A luta do sindi­ca­to começa aqui na comu­nidade. Depois da min­ha segun­da remoção (Zica foi removi­da de São Cristovão para a Pen­ha, e da Pen­ha para Vila Aliança), para cá, a gente começa a for­mar gru­pos para dis­cu­tir mel­ho­rias soci­ais para o bair­ro e recebe muito apoio da Igre­ja [Católi­ca]. A Igre­ja incen­ti­va a for­mação de gru­pos pas­torais soci­ais. E, ness­es pas­torais, em mea­d­os dos anos 1970, o padre Bruno, um padre ital­iano, falou sobre a pas­toral do tra­bal­hador. E me chama para par­tic­i­par dessa pas­toral do tra­bal­hador, rep­re­sen­tan­do as empre­gadas domés­ti­cas ─ aqui tin­ha mui­ta domés­ti­ca. Esse padre tin­ha uma visão de mun­do mar­avil­hosa.

Eu chamo duas ami­gas, e a gente começa a par­tic­i­par dessas reuniões, mas com uma difi­cul­dade muito grande, pois, os assun­tos, dis­sí­dio, nego­ci­ação cole­ti­va, data-base, não tin­ham nada a ver com a gente. Então, chamei as meni­nas para con­ver­sar e falei: a gente não entende nada do que os home­ns falam, vamos cri­ar um grupo para nós? E desafi­amos os tra­bal­hadores a levarem suas esposas e fil­hos, que eram empre­ga­dos domés­ti­cos. Nos­so grupo ia ser  bem maior. E foi. O padre deu apoio. Em 1976, fize­mos o nos­so primeiro encon­tro de domés­ti­cas aqui na comu­nidade. E, quan­do nós olhamos para aque­le grupo, não sabia nem o que falar para aque­las mul­heres. E ago­ra? O que vou falar para elas? Não sabia como a gente ia con­duzir o tra­bal­ho. Aí, eu falei assim: “Vamos falar mal das patroas”. Hoje, eu enten­do que foi uma roda de con­ver­sa, uma tro­ca de exper­iên­cia muito boa. E foi quan­do eu desco­bri a carteira assi­na­da. Como diarista, eu acha­va que não tin­ha dire­ito à carteira, mas eu tin­ha. E foi quan­do eu me reg­istrei e começou a cor­rer o tem­po para a min­ha aposen­ta­do­ria.

Agên­cia Brasil: Como a sen­ho­ra falou com a sua patroa? A sen­ho­ra já esta­va há muito tem­po tra­bal­han­do na mes­ma casa?

Dona Zica: Eu tra­bal­ha­va para três famílias, mas sem­pre tem uma família que é mais próx­i­ma. Esta, mais próx­i­ma, que fiz uma amizade além do tra­bal­ho, em 1976, depois dessa reunião que nos reuni­mos para falar das patroas, pedi para assi­nar a min­ha carteira. Esta­va lá há qua­tro anos. A relação das empre­gadas domés­ti­cas com as patroas é muito tími­da, muitas não têm cor­agem de chegar e colo­car o prob­le­ma. Mas com essa patroa, de quem sou ami­ga até hoje, havia uma relação hon­es­ta entre nós. É pre­ciso con­ver­sar. Eu era pas­sadeira nes­sa casa, e, lá, não par­a­va men­sal­ista, a patroa era muito exi­gente. E eu larga­va o fer­ro para explicar, que aque­la não era a casa da empre­ga­da, que ali ela não podia se sen­tir à von­tade, faz­er a refeição que quisesse… De tan­to con­ver­sar, um dia, a mãe dela disse para mim: “Zica, eu ten­ho uma coisa para te falar”. Eu perguntei:o que foi D. Elsa? E ela respon­deu: “Você trans­for­mou min­ha fil­ha numa comu­nista”. Rimos.

Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Reporo­dução: Dona Zica, 92 anos, mostra arqui­vo pes­soal a reportagem da Agên­cia Brasil em sua casa. Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agên­cia Brasil: Qual foi a par­tic­i­pação da Igre­ja Católi­ca na orga­ni­za­ção do movi­men­to de domés­ti­cas?

Dona Zica: Em 1976, a gente criou esse grupo em Vila Aliança. Em 1978, era um grupo de empre­gadas domés­ti­cas da zona oeste. Nós con­seguimos mon­tar gru­pos de tra­bal­hado­ras em várias paróquias. As igre­jas incen­ti­varam muito. De Mag­a­l­hães Bas­tos a San­ta Cruz, nós tín­hamos gru­pos e vimos a neces­si­dade de procu­rar out­ros espaços de con­hec­i­men­to, com out­ros tra­bal­hadores, com os home­ns, que pas­saram a nos apoiar. Pas­samos a con­hecer os sindi­cal­is­tas. E, nes­sas con­ver­sas, desco­b­ri­mos que já exis­tia uma asso­ci­ação de empre­gadas domés­ti­cas, fun­da­da em 1961, da qual nos aprox­i­mamos. E a nos­sa con­sciên­cia e envolvi­men­to vão crescen­do até que sou elei­ta pres­i­den­ta em 1982. Esse momen­to foi muito rico, porque a classe tra­bal­hado­ra esta­va orga­ni­za­da, e os sindi­catos, for­t­ale­ci­dos. Nós nos inte­gramos, tive­mos muito apoio dos demais.

Agên­cia Brasil: E, hoje, qual deve ser o papel das igre­jas, em ger­al, nos movi­men­tos soci­ais, comu­nitários e dos tra­bal­hadores?

Dona Zica: Os movi­men­tos sindi­cais e as igre­jas foram os que mais for­t­ale­ce­r­am nos­sa luta. As pas­torais, de favela, de tra­bal­hadores, tin­ham a ver com a gente, e nós começamos a bus­car uma inte­gração com essas pas­torais [gru­pos orga­ni­za­dos pelas dio­ce­ses, que se reúnem para dis­cu­tir temas especí­fi­cos e pro­mover a comunhão].

Agên­cia Brasil: Em defe­sa das domés­ti­cas, qual foi a par­tic­i­pação dos movi­men­tos negro e de mul­heres?

Dona Zica: O movi­men­to fem­i­nista era um movi­men­to de patroas, mas nós cheg­amos jun­to porque tam­bém queríamos defend­er nos­sos dire­itos enquan­to mul­heres. A gente deu força para elas e elas nos der­am força tam­bém. Adqui­r­i­mos força e exper­iên­cia. Com elas, apren­demos que tín­hamos força e o dire­ito de ter dire­itos.

Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Anazir Maria de Oliveira, con­heci­da como Dona Zica, 92 anos Tânia Rêgo/Agência Brasil
Naque­la época, a gente que­ria usar calça com­pri­da. Mas meu mari­do, machista, fala­va que “o homem den­tro de casa sou eu”. E a luta fem­i­nista nos aju­da­va a enten­der que, assim como homem, a gente tra­bal­ha­va, inves­tia na família da mes­ma for­ma, então podíamos usar uma calça jeans, porque devíamos ser tratadas como iguais em todos os aspec­tos. E, assim, na Con­sti­tu­inte, tín­hamos muito apoio dos movi­men­tos. Tin­ha a Benedi­ta da Sil­va, que foi e é o maior instru­men­to para nós. Ela apoiou e investiu muito na nos­sa pau­ta.

Agên­cia Brasil: Olhan­do para trás, des­de o iní­cio da luta das domés­ti­cas, a Lei Com­ple­men­tar 150 foi sufi­ciente?

Dona Zica: Os nos­sos dire­itos vier­am parce­la­dos. Em 1972, con­quis­ta­mos o dire­ito à Pre­v­idên­cia Social, à aposen­ta­do­ria. Depois da Con­sti­tu­inte, avançamos mais um pouco. Mas, só em 2013, con­seguimos equiparar os dire­itos aos demais tra­bal­hadores. A PEC e a LC 150 foram o auge de uma luta que vem des­de a déca­da de 1960. Foram ess­es anos todos para alcançar os dire­itos dos out­ros tra­bal­hadores, mas ain­da pre­cisa avançar no dire­ito das diaris­tas, por exem­p­lo, que sofrem injustiça. Muitas foram demi­ti­das, na época da PEC, para não terem que ser reg­u­lar­izadas, ou seja, estão sem carteira.

Agên­cia Brasil: Como a sen­ho­ra vê gru­pos de tra­bal­hadores e jovens con­tra a carteira assi­na­da, enquan­to as domés­ti­cas querem a for­mal­iza­ção?

Dona Zica: Muitos tra­bal­hadores já tiver­am a CLT e nós não tín­hamos nada. Quer­e­mos entrar porque não tem nada que nos garan­ta. Nós temos val­or para a econo­mia.

Agên­cia Brasil: Por que a sociedade tem difi­cul­dade de ver val­or social nas empre­gadas? Como enfrentar esse prob­le­ma?

Dona Zica: Nós, tra­bal­hado­ras domés­ti­cas, temos uma her­ança. Uma her­ança que vem des­de a escravidão. Porque as mul­heres negras sem­pre foram as presta­do­ras de serviços para as famílias, como se nós não tivésse­mos a nos­sa própria vida, cer­to? Então, assim, eu acho que, hoje, ape­sar [das cobranças] do movi­men­to negro, as empre­gadas ain­da não estão total­mente eman­ci­padas da escravidão.

Eu sei que todos os tra­bal­hadores têm suas difi­cul­dades, e os patrões não pagam [salário] porque querem, pagam porque são obri­ga­dos. Mas as empre­gadas domés­ti­cas, mes­mo com patrões sendo obri­ga­dos a pagar, elas têm que cor­rer atrás. A gente vive ain­da numa real­i­dade de que o nos­so tra­bal­ho, um tra­bal­ho braçal, deve ser feito sem nen­hu­ma rec­om­pen­sa. Con­tribuí­mos para que os nos­sos opres­sores chegassem aonde chegaram, com camisas limpas e bem pas­sadas e ali­men­ta­dos. Mas essa dívi­da não foi paga.

Rio de Janeiro (RJ), 25/06/2025 - Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos, uma das fundadoras do Sidicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, da Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do Partido dos Trabalhadores(PT), em sua casa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Anazir Maria de Oliveira, con­heci­da como Dona Zica, começou a tra­bal­har como domés­ti­ca aos 9 anos e se for­mou assis­tente social aos 83 — Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agên­cia Brasil: Como a sen­ho­ra vê o Con­gres­so Nacional hoje, há espaço para avançar com ampli­ação de dire­itos das domés­ti­cas e demais tra­bal­hadores?

Dona Zica: Do jeito que está, não só as domés­ti­cas, mas a classe tra­bal­hado­ra, pre­cisam voltar a se mobi­lizar. É pre­ciso voltar com a for­mação políti­ca. As lutas pre­cisam ser em con­jun­to. Se uma cat­e­go­ria está revolta­da, pre­cisa se unir a out­ras. A sociedade, jun­ta, em luta, con­segue mudanças. A luta políti­ca e social é a luta por con­strução de futur­os.

Agên­cia Brasil: Por fim, como a sen­ho­ra trouxe seu esposo para o movi­men­to, como os home­ns podem apoiar as esposas que são sindi­cal­is­tas?

Dona Zica: Quan­do eu come­cei a par­tic­i­par das dis­cussões de orga­ni­za­ção de uma pos­sív­el cen­tral sindi­cal, eu via­jei muito. Tin­ha muitos encon­tros fora do Rio, essa coisa toda. Eu me casei com 17 anos, mas só fui sair de casa sem mari­do e fil­ho em 1976, já com 43 anos, quan­do come­cei as andanças da igre­ja. Naque­la época, a maio­r­ia dos sindi­cal­is­tas tam­bém eram atu­antes nas pas­torais. E, assim, fui con­ver­san­do com meu esposo, com bas­tante ante­cedên­cia, avisan­do sobre os even­tos.

No começo, ele me per­gun­ta­va: “Mas essas mul­heres não têm o que faz­er den­tro de casa? Para pas­sar um dia todo fora?”, mas fui dobran­do ele, expli­can­do o que dis­cutíamos, relata­va as dis­cussões e o moti­vo de chegar tarde em casa. Então, com o tem­po, ele, pedreiro, foi me aju­dan­do a orga­ni­zar os con­gres­sos e ativi­dades. E a ficar com os fil­hos, cresci­dos, já, e a casa.

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