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Edifício Joelma: 50 anos depois, marcas do incêndio permanecem

Repro­dução: © Paulo Pinto/Agência Brasil

Fogo matou 181 pessoas e deixou mais de 300 feridas


Pub­li­ca­do em 01/02/2024 — 07:08 Por Elaine Patrí­cia Cruz e Thi­a­go Padovan — Repórteres da Agên­cia Brasil e da TV Brasil — São Paulo

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No dia 1º de fevereiro de 1974, Hiroshi Shimu­ta, 80 anos, chegou bem cedo ao 22º andar do Edifí­cio Joel­ma, no cen­tro da cap­i­tal paulista, onde tra­bal­ha­va. O expe­di­ente começa­va às 9h da man­hã, mas ele decid­iu chegar antes das 8h porque que­ria ler os jor­nais antes de começar a jor­na­da, para se atu­alizar sobre o que esta­va acon­te­cen­do no Brasil e no mun­do. 

Acabara de ser pai de gêmeos. Uma meni­na e um meni­no havi­am nasci­do no dia 18 de janeiro e ele sequer os havia segu­ra­do no colo porque nasce­r­am pre­matur­os e ain­da per­mane­ci­am no hos­pi­tal.

“Eu esta­va na min­ha sala lendo meu jor­nal e então rece­bi um tele­fone­ma da por­taria me infor­man­do que o pré­dio esta­va pegan­do fogo”, relem­bra.

Era por vol­ta das 8h45 da man­hã, quan­do o Edifí­cio Joel­ma começou a pegar fogo. Naque­le dia, São Paulo enfrenta­va muitos ven­tos, fator que con­tribuiu para a propa­gação das chamas.

O incên­dio no Edifí­cio Joel­ma foi uma das maiores tragé­dias ocor­ri­das no Brasil, provo­can­do a morte de 181 pes­soas e deixan­do mais de 300 feri­das. Emb­o­ra o país nun­ca ten­ha se pre­ocu­pa­do em hom­e­nagear ess­es mor­tos ou trans­for­mar essa tragé­dia em um memo­r­i­al, as mar­cas e lem­branças do incên­dio per­manecem vivas em muitas pes­soas.

Incêndio

O fogo teve iní­cio no 12º andar, ocu­pa­do pelo Ban­co Cre­fisul, resul­ta­do de um cur­to-cir­cuito no sis­tema de refrig­er­ação. O ven­to e a fal­ta de segu­rança do pré­dio logo fiz­er­am as chamas se alas­trarem, levan­do à morte cen­te­nas de pes­soas. O número de óbitos reg­istra­dos var­i­ou ao lon­go dos anos, mas pesquisa fei­ta pelo jor­nal­ista e escritor Adri­ano Dolph, autor do livro Fevereiro em Chamas, doc­u­men­ta que 181 pes­soas mor­reram  no incên­dio.

“Busquei doc­u­men­tos ofi­ci­ais do IML (Insti­tu­to Médi­co Legal) e do Cemitério do Vila Alpina. Busquei tam­bém nos proces­sos crim­i­nais, em doc­u­men­tos do Cor­po de Bombeiros, no Arqui­vo Públi­co do Esta­do de São Paulo e em jor­nais da época”, relem­bra. “O que ten­ho são 181 lau­dos necroscópi­cos”, ates­ta o jor­nal­ista.

CAMINHOS DA REPORTAGEM: Cinzas de fevereiro: 50 anos do incêndio do Edifício Joelma. Foto: TV Brasil
Repro­dução: Adri­ano Dolph, autor de Fevereiro em chamas — Divulgação/TV Brasil

Torres

Inau­gu­ra­do em 1971, o Edifí­cio Joel­ma — atual­mente chama­do de Edifí­cio Praça da Ban­deira — é uma obra do arquite­to Sal­vador Can­dia. Con­struí­do em con­cre­to arma­do, é com­pos­to por duas tor­res de 25 andares: uma vira­da para a Aveni­da Nove de Jul­ho e out­ra para a Rua San­to Antônio, no cen­tro da cap­i­tal paulista. Entre elas, uma úni­ca esca­da cen­tral.

“Ele tem car­ac­terís­ti­cas arquitetôni­cas muito inter­es­santes. Ele tem sete andares de esta­ciona­men­to mas, pela altura dess­es andares, com­põem uma altura de aprox­i­mada­mente dez andares. Por isso ele não tem mar­ca­dos três andares. Ele pula do séti­mo para o déci­mo primeiro andar”, expli­cou Dolph.

Do 11º ao 25º andar, o pré­dio con­ta com salas de escritórios que, naque­la época, estavam sendo ocu­padas pelo Cre­fisul. “Muitos estavam ali em bus­ca do primeiro emprego. Sex­ta-feira era o dia de entre­vis­tas de emprego no ban­co. O livro Fevereiro em Chamas traz relatos de fun­cionários que estavam levan­do, por exem­p­lo, uma irmã para entre­vista de emprego [naque­le dia]”.

As salas eram repar­tidas por divisórias e tin­ham car­petes, móveis de madeira e corti­nas de teci­do, que con­tribuíram para que o fogo se alas­trasse rap­i­da­mente.

Dois anos antes, o cen­tro da cidade de São Paulo já havia enfrenta­do uma grande tragé­dia. Um incên­dio no Edifí­cio Andraus, local­iza­do próx­i­mo da Praça da Repúbli­ca, havia deix­a­do 16 mor­tos e entre 300 ou 400 feri­dos.

“Todo mun­do imag­i­nou que a tragé­dia do Andraus seria aque­la épi­ca, aque­la que iria mar­car ger­ações. Mas veio uma ain­da pior: o Joel­ma fez muito mais pes­soas perderem a vida”, disse o escritor.

Hiroshi Shimuta

Sobre­vivente da tragé­dia, o pres­i­dente da Nicom Comér­cio e Mate­r­i­al de Con­strução, Hiroshi Shimu­ta, começou a tra­bal­har no Citibank no iní­cio dos anos 70, empre­sa pela qual dedi­cou 20 anos de sua vida. Em 1972, o Citibank adquir­iu par­tic­i­pação no Cre­fisul para com­ple­men­tar seus negó­cios. Com isso, o depar­ta­men­to do ban­co em que ele tra­bal­ha­va se divid­iu: parte con­tin­u­ou na Aveni­da Ipi­ran­ga [onde esta­va o Citibank] e parte se mudou para o Edifí­cio Joel­ma, que tin­ha acaba­do de ser todo alu­ga­do para o Cre­fisul.

São Paulo (SP) 19/01/2023 - Empresário Hiroshi Shimuta sobrevivente do incêndio do Edifício Joelma.Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
Repro­dução: Empresário Hiroshi Shimu­ta sobre­vivente do incên­dio do Edifí­cio Joel­ma. — Paulo Pinto/Agência Brasil

Shimu­ta alter­na­va entre os pré­dios a cada sem­ana. Na fatídi­ca sex­ta-feira de 1974 ele esta­va no Joel­ma. “Eu ten­tei sair [da min­ha sala]. Mas a fumaça era muito forte. Pen­sei: ‘vou mor­rer sufo­ca­do’. Deci­di arran­car todas as corti­nas. O fogo começa­va nas corti­nas, que eram feitas de juta. As janelas ficavam aber­tas e a corti­na fica­va bal­ançan­do para fora. Então, pega­va fogo embaixo e ia impul­sio­n­an­do o fogo para cima”, con­tou o empresário, que esta­va com out­ras seis pes­soas na sala.

Sob lid­er­ança dele, o grupo saiu da sala em direção a um pequeno ban­heiro do andar. “O ban­heiro não pega fogo. Então, vamos ficar aqui, vamos nos aco­modar por aqui”, pen­saram. Eles ficaram por ali um tem­po, mas a fumaça não tar­dou a chegar. Foi então que decidi­ram deixar o ban­heiro e pas­sar para um pequeno para­peito do lado de fora, onde per­manece­r­am até que pudessem ser res­gata­dos pelos bombeiros. O que tar­dou cer­ca de cin­co horas para acon­te­cer.

“Com o fogo subindo, havia quem se joga­va lá de cima [de andares supe­ri­ores]. O cenário era sim­ples­mente dramáti­co. Eu ten­ta­va acal­mar o pes­soal. Fala­va para não faz­erem besteira porque daqui a pouco o fogo iria se apa­gar”, falou. “A gente ora­va muito e pedia para que Deus nos sal­vasse”.

Antes de ser res­gata­do, Shimu­ta pen­sa­va nos fil­hos recém-nasci­dos. “Eu não pos­so mor­rer. Ten­ho que viv­er de qual­quer for­ma. Colo­quei duas cri­anças no mun­do e essas cri­anças não vão viv­er sem o pai. Sou respon­sáv­el, pre­ciso estar vivo”.

O res­gate foi com­pli­ca­do. A esca­da magirus do Cor­po de Bombeiros só alcança­va até o 14º andar. Eles estavam no 22º. Então, para faz­er esse res­gaste, os bombeiros pre­cis­aram subir ao topo da magirus e depois usar uma esca­da de alumínio, de for­ma com­ple­men­tar, com a qual iam esca­lan­do andar a andar. “Eles iam se revezan­do até chegar ao nos­so andar. Fui o últi­mo a ser res­gata­do. Acho que lev­ou mais ou menos uma hora nesse proces­so porque tin­ha que descer até o 12º andar [onde esta­va a magirus]. Aí ele ia descen­do até chegar lá embaixo. Depois, subia para res­gatar a segun­da pes­soa. Mas a essa altura do campe­ona­to. está­va­mos felizes da vida, pois víamos nos­sos cole­gas sain­do da esca­da e cam­in­han­do lá embaixo. Isso foi dan­do um alívio na gente”.

Quan­do final­mente chegou ao asfal­to, Shimu­ta só agrade­ceu. “A primeira coisa que fiz foi olhar para cima e agrade­cer a Deus por ter devolvi­do a min­ha vida. Depois agachei e bei­jei o chão”, con­ta.

Naque­la noite, ele não con­seguiu dormir. “Esta­va cansa­do fisi­ca­mente, mas quan­do fecha­va os olhos, dava a impressão que eu esta­va sendo lança­do no ar, que esta­va flu­tuan­do. Aque­la sen­sação eu não esqueço nun­ca. Pare­cia que Deus esta­va queren­do me levar”.

Mauro Ligere Filho

O microem­presário Mau­ro Ligere Fil­ho, 73 anos, é out­ro sobre­vivente do Joel­ma. Ele tam­bém tra­bal­ha­va no Citibank, ban­co pelo qual foi fun­cionário por 22 anos. “Nós está­va­mos [no Joel­ma] jus­ta­mente ven­do o que a finan­ceira Citibank tin­ha e a finan­ceira Cre­fisul tin­ha para poder­mos ade­quar os padrões. Os tra­bal­hos tin­ham recém-começa­do. Acho que não tin­ha um mês”.

CAMINHOS DA REPORTAGEM: Cinzas de fevereiro: 50 anos do incêndio do Edifício Joelma. Foto: TV Brasil
Repro­dução: Mau­ro Ligere esper­ou com um grupo mais de cin­co horas pelo res­gate. Divulgação/TV Brasil

Mau­ro, esta­va no mes­mo andar de Shimu­ta, emb­o­ra em salas difer­entes. “Era uma sex­ta-feira garoen­ta. Tin­ha uma reunião e eu esta­va no pré­dio antes das 9h. Eu e meu dire­tor está­va­mos preparan­do uma apre­sen­tação. Eu tin­ha recém-gan­hado uma cane­ta Park­er 51 do meu pai”, con­ta.

“Na hora exa­ta do incên­dio, eu esta­va na sala do meu dire­tor, no 22º andar. Nes­sa sala tem um ban­heiro pri­v­a­ti­vo. Está­va­mos eu, ele e uma secretária preparan­do a apre­sen­tação, quan­do escu­ta­mos uma barul­ha­da de vidros explodin­do. Meu chefe pegou um extin­tor e saiu cor­ren­do. A secretária foi atrás dele. Eu esta­va cor­ren­do atrás deles, mas lem­brei que tin­ha esque­ci­do min­ha cane­ta [que havia gan­hado do pai] e voltei. Peguei a cane­ta, min­ha mala e meu paletó. Quan­do fui sair de novo, alguns segun­dos depois, o hall dos ele­vadores e a esca­da já havi­am vira­do uma cham­iné. Ten­tei subir ou descer pela esca­da, mas não con­segui e acabei voltan­do para a sala onde esta­va. Nesse meio tem­po, seis pes­soas apare­ce­r­am por ali. O Hiroshi era uma delas”, con­tou.

De iní­cio eles ten­taram apa­gar o incên­dio naque­le andar. “Ten­ta­mos pegar uma mangueira de incên­dio para apa­gar o fogo. Esti­camos, conec­ta­mos no reg­istro, mas não tin­ha água. O reg­istro cen­tral do sis­tema de abastec­i­men­to de incên­dio esta­va fecha­do”.

Foi então que tiver­am a ideia de se con­fi­nar no ban­heiro. Mas não con­seguiram ficar muito tem­po por ali por causa da fumaça. A solução acabou sendo pular para o para­peito. “Eu abri a janela [do ban­heiro] e vi que tin­ha um para­peito. E daí con­segui res­pi­rar porque ali é um vale [Vale do Anhangabaú] e os ven­tos ora vin­ha daqui ora dali. Aí eu pulei [a janela do ban­heiro] e as out­ras pes­soas pularam tam­bém. [O para­peito] era pequeno e não cabi­am sete pes­soas. Então ficamos um em cima do out­ro. E uma pes­soa em cima de mim. Ficamos ali por horas. Se não tivésse­mos pula­do [a janela do ban­heiro] teríamos mor­ri­do asfix­i­a­dos”.

Ligere foi um dos primeiros a ser res­gata­do daque­le para­peito. Seu sal­vador foi o bombeiro João Simão de Souza. O nome do bombeiro ele só foi desco­brir ao dar entre­vista para um pro­gra­ma de TV, no ano pas­sa­do. “Ele ago­ra é um ami­go que eu ten­ho, que eu gan­hei, e que só fui encon­trar após 49 anos”.

Daque­le fatídi­co incên­dio, Ligere Fil­ho saiu ape­nas com uma orel­ha queima­da. “Só a orel­ha que queimou. Eu esta­va prati­ca­mente intac­to, não tin­ha nada além daque­la ardên­cia no olho e daque­la secu­ra na boca”. E na segun­da-feira após a tragé­dia ele já tin­ha volta­do a tra­bal­har.

Mas as mar­cas não foram só físi­cas. Anos depois ele desen­volveu uma sín­drome do pâni­co. “Imag­i­no que ten­ha sido con­se­quên­cia dis­so aí porque eu sem­pre tin­ha sido tran­qui­lo”, falou.

Responsabilização

As ima­gens daque­le 1º de fevereiro con­tin­u­am vivas na memória dess­es sobre­viventes. Ligere Fil­ho, por exem­p­lo, não somente lem­bra detal­h­es sobre o que acon­te­ceu naque­le dia, como tam­bém guar­da recortes de reporta­gens sobre o assun­to que foram pub­li­cadas em jor­nais e revis­tas. Inclu­sive das muitas entre­vis­tas que deu. “Como eu tin­ha vivi­do aqui­lo, tudo que tin­ha [sobre o Joel­ma] eu com­pra­va e guar­da­va. Até que eu resolvi faz­er um livro com várias manchetes da Veja, Estadão, Fol­ha para con­tar para os meus netos”.

Cada um teve que con­viv­er com as recor­dações à sua maneira, já que, segun­do relatos de sobre­viventes, nem o con­domínio, nem a prefeitu­ra e nem o Cre­fisul disponi­bi­lizaram psicól­o­go para as víti­mas após o incên­dio.

De acor­do com o escritor Adri­ano Dolph, hou­ve uma batal­ha pelo recon­hec­i­men­to de que o Cre­fisul teve respon­s­abil­i­dade no incên­dio. O ban­co chegou a ind­enizar alguns por aci­dente de tra­bal­ho, e enten­dia que era o sufi­ciente, e que não era dev­i­da ind­eniza­ção às famílias pelos mor­tos. “Foi uma batal­ha de cin­co anos que chegou ao STF (Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al) e que o paga­men­to só ocor­reu após dez anos, com idas e vin­das, embar­gos declaratórios”, expli­ca o autor. Dolph ressalta ain­da que os val­ores pagos foram ínfi­mos.

“As pes­soas só começaram a rece­ber, de fato, a ind­eniza­ção após um acor­do com o grupo Cre­fisul, que não era mais o Cre­fisul. Elas só começaram a rece­ber ind­eniza­ção em 1986”, relem­brou Adri­ano Dolph.

Além dis­so, nem todo foram ind­eniza­dos. “[A ind­eniza­ção] rece­bi de Deus, que foi a vida”, afir­mou Ligere Fil­ho.

Pelo lado crim­i­nal, cin­co pes­soas foram respon­s­abi­lizadas pelo incên­dio no Joel­ma. Em abril de 1975, Kir­il Petrov, engen­heiro respon­sáv­el pelas insta­lações gerais, foi con­de­na­do a três anos de prisão. Já os eletricis­tas Sebastião da Sil­va Fil­ho, Alvi­no Fer­nan­des e Gilber­to Araújo e o pro­pri­etário da empre­sa Ter­mo­cli­ma, Wal­fried Georg, foram con­de­na­dos a dois anos de prisão. Eles recor­reram da sen­tença e então hou­ve diminuição das penas. “De fato, eles nun­ca cumpri­ram a pena de cadeia. Todos per­manece­r­am livres”, disse o autor de Fevereiro em Chamas.

Já a empre­sa Cre­fisul jamais foi jul­ga­da. “Da dire­to­ria do grupo Cre­fisul ninguém foi tido como réu. Ninguém [do ban­co] foi encar­a­do pela pro­mo­to­ria ou pelo del­e­ga­do que cuidou do caso como respon­sáv­el”, acres­cen­tou o escritor.

TV Brasil preparou um espe­cial sobre os 50 anos do incên­dio do Joel­ma, que vai ao ar no Cam­in­hos da Reportagem, no dia 4 de fevereiro, às 22h

Edição: Aline Leal

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