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Eleições: moradia também é competência constitucional dos municípios

Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Política de habitação deve ser traçada pelo poder municipal


Publicado em 19/09/2024 — 07:42 Por Bruno de Freitas Moura — Repórter da Agência Brasil — Rio de Janeiro

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Enquan­to cui­da da peque­na hor­ta de onde tira ali­men­tos para con­sumo próprio, Elisan­gela Jesus da Sil­va, de 45 anos, man­tém uma pre­ocu­pação na cabeça: o medo de ser despe­ja­da. Jan­ja, como é con­heci­da a agricul­to­ra urbana, vive há oito anos na Ocu­pação Aliança em Cristo, orga­ni­za­da pelo Movi­men­to dos Tra­bal­hadores Sem-Teto (MTST), no bair­ro Jiquiá, zona oeste do Recife. Ela mora com o com­pan­heiro – eletricista de automóveis – e dois fil­hos, de 4 e 5 anos.

A difi­cul­dade finan­ceira é o moti­vo que fez com que Jan­ja encon­trasse na ocu­pação a respos­ta para uma neces­si­dade fun­da­men­tal de qual­quer pes­soa, a mora­dia.

“Antiga­mente eu paga­va aluguel, mas fica­va muito pesa­do, porque tin­ha que pagar aluguel, ener­gia, água, vin­ha remé­dio, ali­men­tação… A gente pas­sa­va por muito aper­to, mui­ta difi­cul­dade”, relem­bra em con­ver­sa com a Agên­cia Brasil.

Ape­sar de as con­tas da família ficarem menos pres­sion­adas ao viv­er na ocu­pação, Jan­ja elege a fal­ta de reg­u­lar­iza­ção fundiária como o grande prob­le­ma atu­al. “A gente mora aqui, mas não tem legal­i­dade de nada”, diz ela, citan­do que foram os próprios ocu­pantes que con­struíram um sis­tema de encana­men­to de água.

“A maior difi­cul­dade é a reg­u­lar­iza­ção, a gente quer ser reg­u­lar­iza­do e ficar tran­qui­lo para, futu­ra­mente, não sofr­er nen­hu­ma ameaça de despe­jo”, afir­ma a agricul­to­ra.

Ela rela­ta já ter sofri­do episó­dio de expul­são. “Apare­ceu um dito-cujo pro­pri­etário se dizen­do dono da área e nos expul­sou.”

A prefeitu­ra do Recife infor­mou à Agên­cia Brasil que a reg­u­lar­iza­ção fundiária é real­iza­da em áreas clas­si­fi­cadas como zonas espe­ci­ais de Inter­esse Social (Zeis), e que a ocu­pação Aliança em Cristo encon­tra-se fora dessas áreas.

“Além dis­so, está situ­a­da em uma Área de Preser­vação Ambi­en­tal (APA), entre os rios Jiquiá e Tejip­ió, o que impos­si­bili­ta a reg­u­lar­iza­ção urbana no local”, afir­mou.

Ques­tion­a­da se há algum plano de ação dire­ciona­do à situ­ação dos moradores do local, a prefeitu­ra não respon­deu até a con­clusão da reportagem.

Eleições e direito à habitação

O dire­ito à habitação é uma das questões em jogo no próx­i­mo dia 6 de out­ubro, data do primeiro turno das eleições munic­i­pais. Mais de 155,9 mil­hões de eleitores vão às urnas em 5.569 cidades para escol­her prefeitos e vereadores.

Rio de Janeiro - Comunidade da Rocinha, após confrontos entre grupos de traficantes rivais pelo controle de pontos de venda de drogas (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Repro­dução: Comu­nidade da Rocin­ha, na zona sul do Rio, uma das maiores fave­las da cap­i­tal flu­mi­nense — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

O dire­ito à mora­dia reivin­di­ca­do por Jan­ja é uma garan­tia de todos os brasileiros, como preza o Arti­go 6º da Con­sti­tu­ição Fed­er­al. O Arti­go 23, por sua vez, deter­mi­na que é com­petên­cia comum da União, dos esta­dos, do Dis­tri­to Fed­er­al e dos municí­pios “pro­mover pro­gra­mas de con­strução de mora­dias e a mel­ho­ria das condições habita­cionais e de sanea­men­to bási­co”.

Déficit habitacional

Jan­ja faz parte do con­jun­to de brasileiros que viven­cia o déficit habita­cional, esti­ma­do em 6,2 mil­hões de domicílios, segun­do um lev­an­ta­men­to feito em 2022 pela Fun­dação João Pin­heiro (FPJ), insti­tu­ição de pesquisa e ensi­no vin­cu­la­da à Sec­re­taria Estad­ual de Plane­ja­men­to e Gestão de Minas Gerais.

O lev­an­ta­men­to, feito em parce­ria com a Sec­re­taria Nacional de Habitação do Min­istério das Cidades, con­sid­era déficit habita­cional situ­ações como neces­si­dade de sub­sti­tu­ição ou mes­mo con­strução de habitações dev­i­do a pre­cariedades de estru­tu­ra, gas­to exces­si­vo com aluguel e famílias que pre­cisam coabitar imóveis.

O estu­do foi feito com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Con­tínua (Pnad), do Insti­tu­to Brasileiro de Geografia e Estatís­ti­ca (IBGE), e do Cadas­tro Úni­co para Pro­gra­mas Soci­ais (CadÚni­co) do gov­er­no fed­er­al.

Rio de Janeiro (RJ), 29/08/2024 - Rio Faria-Timbó, na comunidade de Manguinhos, zona norte da cidade. Um esgoto a céu aberto. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Comu­nidade de Man­guin­hos, zona norte do Rio de Janeiro — Tânia Rêgo/Agência Brasil

A FPJ tam­bém esti­mou que 26,5 mil­hões de domicílios, cer­ca de 42% do total exis­tente à época do lev­an­ta­men­to, apre­sen­tavam ao menos algum tipo de inad­e­quação, seja carên­cia de infraestru­tu­ra urbana (ener­gia elétri­ca, abastec­i­men­to de água, esgo­ta­men­to san­itário e cole­ta de lixo); per­ti­nente à edi­fi­cação (ausên­cia de ban­heiro exclu­si­vo, número de cômo­d­os servin­do de dor­mitório e armazena­men­to de água, piso e cober­tu­ra inad­e­qua­dos) e inad­e­quação fundiária urbana.

Despejos

Além dis­so, a Cam­pan­ha Despe­jo Zero, artic­u­lação nacional for­ma­da por mais de 175 orga­ni­za­ções, enti­dades, movi­men­tos soci­ais e cole­tivos, cal­cu­la que haja no país 1,5 mil­hão de pes­soas afe­tadas por despe­jo ou remoção força­da.

A orga­ni­za­ção social Habi­tat Brasil é uma das insti­tu­ições que aju­daram no mapea­men­to de famílias ameaças de despe­jo, como a da Jan­ja, ou já despe­jadas. A orga­ni­za­ção atua no Brasil há 30 anos.

Um dos eixos pri­or­itários de ação é o aces­so à mora­dia digna. Um pro­gra­ma de mel­ho­rias ben­efi­ciou mais de 2,6 mil casas, e, por meio do pro­gra­ma gov­er­na­men­tal Min­ha Casa, Min­ha Vida Enti­dades (con­cessão de finan­cia­men­to sub­sidi­a­do a famílias orga­ni­zadas por meio de enti­dades pri­vadas sem fins lucra­tivos), quase 7,6 mil lares foram con­struí­dos. As duas frentes de atu­ação ben­e­fi­cia­ram 51 mil pes­soas.

Entes municipais

Neste cenário de poucos dias para as eleições munic­i­pais, a dire­to­ra exec­u­ti­va da Habi­tat Brasil, Socor­ro Leite, reforça que o poder munic­i­pal tem papel essen­cial na garan­tia do dire­ito à habitação.

“É respon­sáv­el por cri­ar leis que reg­u­la­mentem o uso e a ocu­pação do solo na cidade. Além dis­so, é na instân­cia munic­i­pal que se definem áreas de inter­esse que podem ser pre­dom­i­nan­te­mente uti­lizadas para habitação de inter­esse social”, lista a dire­to­ra exec­u­ti­va.

Segun­do a ativista, cabe ao poder munic­i­pal pri­orizar áreas de inter­esse social para pro­duzir novas mora­dias e garan­tir o cumpri­men­to da função social da pro­priedade.

Ela enfa­ti­za ain­da o papel de artic­u­lador para obtenção de recur­sos. “É fun­da­men­tal bus­car novas fontes de recur­sos, não con­tan­do ape­nas com os recur­sos próprios, que muitas vezes são lim­i­ta­dos e dis­puta­dos com out­ras áreas igual­mente impor­tantes. Bus­car finan­cia­men­to e con­tra­partidas dos gov­er­nos estad­ual e fed­er­al é essen­cial”, diz.

No entan­to, Socor­ro Leite adverte que municí­pios não podem se sub­me­ter a ficar “reféns” ape­nas dos pro­gra­mas fed­erais de habitação. “Vimos isso na gestão fed­er­al ante­ri­or, que não des­ti­nou recur­sos para habitação de inter­esse social, par­al­isan­do essa políti­ca em muitos municí­pios”, lem­bra.

A ativista apon­ta que a reg­u­lar­iza­ção fundiária é uma políti­ca que deve ser pri­or­iza­da. “Não ter a posse da ter­ra reg­u­lar­iza­da sig­nifi­ca estar, de cer­ta for­ma, sob o risco de despe­jo”, pon­tua.

Rio de Janeiro (RJ) 17/09/2024 – A pesquisadora de urbanismo Paula Menezes Salles de Miranda fala sobre direito à habitação no contexto das Eleições Municipais de 2024. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Pesquisado­ra Paula Menezes Salles de Miran­da diz que reg­u­lar­iza­ção fundiária deve ser pri­or­i­dade — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil
A espe­cial­ista em urban­is­mo Paula Menezes Salles de Miran­da, pro­fes­so­ra no Depar­ta­men­to de Arquite­tu­ra e Urban­is­mo da Esco­la Supe­ri­or de Desen­ho Indus­tri­al (Esdi) da Uni­ver­si­dade do Esta­do do Rio de Janeiro (Uerj), ressalta o papel dos vereadores na questão habita­cional.

“Os vereadores podem cri­ar leis rela­cionadas à pro­visão habita­cional, sanea­men­to, trans­porte. Eles tam­bém podem des­ti­nar recur­sos, a par­tir de emen­das par­la­mentares munic­i­pais, para pro­je­tos especí­fi­cos, como pro­je­tos habita­cionais, asses­so­rias téc­ni­cas que desen­volvem pro­je­tos para pop­u­lação vul­neráv­el, movi­men­tos soci­ais em luta por mora­dia”, disse à Agên­cia Brasil.

» Leia a entre­vista da espe­cial­ista Paula Miran­da à Agên­cia Brasil

Plano diretor

Um ele­men­to cen­tral para a habitação nas cidades é o plano dire­tor, lei com dire­trizes de como a cidade deve ser ocu­pa­da e se expandir. Por ser uma lei, reflete a importân­cia das câmaras de vereadores, que aprovam o tex­to.

Paula Miran­da, da Uerj, con­tex­tu­al­iza que o plano dire­tor está pre­vis­to no Estatu­to da Cidade (Lei nº 10.257/2001), lei que reg­u­la­men­ta os arti­gos 182 e 183 da Con­sti­tu­ição Fed­er­al, esta­b­ele­cen­do dire­trizes gerais da políti­ca urbana. “O Estatu­to da Cidade obri­ga todos os municí­pios com mais de 20 mil habi­tantes a cri­ar o plano dire­tor, que deve ser ren­o­va­do a cada dez anos”, esclarece.

A dire­to­ra da Habi­tat Brasil, Socor­ro Leite, defende que o doc­u­men­to ten­ha regras especí­fi­cas “para reg­u­larizar a situ­ação dessas regiões e garan­tir espaços para a con­strução de mora­dias, local­izadas em áreas bem estru­tu­radas e com infraestru­tu­ra ade­qua­da”.

Socor­ro Leite ressalta que cen­tros urbanos pre­cisam rece­ber atenção espe­cial do plano dire­tor, “apli­can­do instru­men­tos que asse­gurem a função social da pro­priedade, como a des­ti­nação de imóveis aban­don­a­dos para a pro­dução de novas mora­dias”.

Vista da comunidade da Muzema, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, onde dois prédios desabaram.
Repro­dução: Vista da comu­nidade da Muze­ma, na zona oeste da cidade do Rio — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Especulação imobiliária

Mais uma função dos planos dire­tores, acres­cen­ta a ativista, é o com­bate à espec­u­lação imo­bil­iária, ou seja, a práti­ca de com­prar imóveis e ter­renos com a expec­ta­ti­va prin­ci­pal de revendê-los com lucro, sem uso social. “O municí­pio não pode ficar à mer­cê dos inter­ess­es pri­va­dos”, enfa­ti­za.

Na visão dela, planos dire­tores não podem ape­nas favore­cer o mer­ca­do imo­bil­iário. “O plano tem o poder de esta­b­ele­cer regras que podem tornar uma área mais ou menos atraente para o mer­ca­do imo­bil­iário, inter­ferindo nes­sa dinâmi­ca e reser­van­do espaços para habitação de inter­esse social.”

A urban­ista Paula Miran­da cita como uma dessas regras a pos­si­bil­i­dade de Impos­to sobre a Pro­priedade Pre­di­al e Ter­ri­to­r­i­al Urbano (IPTU) pro­gres­si­vo (com aumen­to grada­ti­vo).

“O ter­reno pre­cisa cumprir uma função social, então, caso o municí­pio ten­ha pre­vis­to este instru­men­to, o poder públi­co pode noti­ficar o pro­pri­etário para apre­sen­tar pro­je­to de edi­fi­cação no ter­reno ou de ocu­pação de con­strução ociosa. Não cumpri­da a obri­gação, pode ser cobra­do o IPTU pro­gres­si­vo até o cumpri­men­to”, detal­ha Paula Miran­da.

A pro­fes­so­ra de arquite­tu­ra e urban­is­mo, no entan­to, lamen­ta que, por vezes, sequer são cri­adas leis especí­fi­cas para reg­u­la­men­tação e com­bate à espec­u­lação imo­bil­iária.

“Ape­sar da pos­si­bil­i­dade de pre­v­er, nos planos dire­tores, uma série de instru­men­tos que podem exercer con­t­role, de cer­ta for­ma, sobre a espec­u­lação imo­bil­iária, muitas vezes estes não são apli­ca­dos. Por vezes, nem são cri­adas leis especí­fi­cas para reg­u­la­men­tação. Em alguns casos, o poder públi­co se omite por fal­ta de inter­esse em relação ao tema, ou por artic­u­lação com setores pri­va­dos”, avalia Paula.

Edição: Juliana Andrade

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