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Em tempos de guerra, como lidar com o luto coletivo

Repro­dução: © REUTERS/Fadi Wha­di

Especialistas explicam cuidados e sintomas diante da dor


Pub­li­ca­do em 02/11/2023 — 09:53 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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As dores das guer­ras e de tan­tas tragé­dias chegam pelas TV, pelas janelin­has dos celu­lares, pela con­ver­sa do grupo, pelos gri­tos ou pelo silên­cio diante do que é difí­cil assim­i­lar e traduzir. Com­pli­ca­do de falar e de sen­tir. O luto cole­ti­vo, segun­do espe­cial­is­tas, pode ser sim­bóli­co, mas é con­cre­to, que faz doer até o cor­po. Nes­ta quin­ta (2) o feri­ado de Fina­dos adquire tam­bém sig­nifi­ca­dos de reflexão para quem bus­ca lidar com o sofri­men­to pre­sente na esquina de casa ou mes­mo do out­ro lado do mun­do.

“Quan­do esta­mos viven­cian­do guer­ras, pan­demias, pas­samos a viven­ciar per­das sim­bóli­cas e conc­re­tas cole­ti­va­mente. Mes­mo não con­hecen­do as pes­soas que estão mor­ren­do, nos conec­ta­mos com suas histórias e viven­ci­amos suas dores e per­das”, expli­ca a psicólo­ga Saman­tha Muc­ci. Ela é pesquisado­ra do tema e coor­de­nado­ra do Pro­gra­ma de Acol­hi­men­to ao Luto (Proalu), e pro­fes­so­ra do Depar­ta­men­to de Psiquia­tria da Esco­la Paulista de Med­i­c­i­na da Uni­ver­si­dade Fed­er­al de São Paulo (Unife­sp).

A espe­cial­ista con­tex­tu­al­iza que as ima­gens das guer­ras expostas diari­a­mente nos reme­tem a vivên­cias de inse­gu­rança, sofri­men­to, ansiedade e insta­bil­i­dade pre­sentes na nos­sa história. “Impos­sív­el não nos afe­tar­mos cole­ti­va­mente. Esse luto cole­ti­vo vai além da empa­tia, da com­paixão e da sol­i­dariedade. Lem­bro da imagem de uma cri­ança olhan­do para os escom­bros e cor­pos em sua frente com olhar assus­ta­do e cheio de lágri­mas que me mar­cou muito”, exem­pli­fi­ca a pro­fes­so­ra Saman­tha Muc­ci.

A imagem fez com que a pro­fes­so­ra chorasse recen­te­mente. “Pela humanidade, pelas guer­ras que já vive­mos, pela min­ha cri­ança inte­ri­or, pelas min­has per­das, pelos meus lutos já vivi­dos”, diz a pro­fes­so­ra.

Múltiplas perdas

Para a psicólo­ga clíni­ca Key­la Coop­er, tam­bém espe­cial­iza­da em luto, o momen­to de múlti­plas per­das atrav­es­sa o nos­so dia a dia de uma maneira muito sig­ni­fica­ti­va, sejam pelas infor­mações que chegam da guer­ra no Ori­ente Médio, mas tam­bém pelos dese­qui­líbrios cau­sa­dos pelas mudanças climáti­cas, pelas mis­érias e fome visíveis.

“O tem­po todo a gente se enfrenta com o lim­ite da humanidade. De uma maneira ger­al, ess­es prob­le­mas afe­tam aqui­lo que a gente pro­je­ta para o nos­so futuro”, expli­ca a pro­fes­so­ra uni­ver­sitária em Brasília, que é pesquisado­ra da Uni­ver­si­dade de Strath­clyde (Glas­gow — Escó­cia).

A insta­bil­i­dade de pen­sar no aman­hã teve, na avali­ação das pesquisado­ras ouvi­das pela Agên­cia Brasil, um momen­to-chave que foi a ocor­rên­cia da pan­demia de coro­n­avírus. Depois, o mun­do viu eclodir as guer­ras da Ucrâ­nia e do Ori­ente Médio, com mortes de civis. “A pre­vis­i­bil­i­dade da vida foi pro­fun­da­mente abal­a­da”, diz Key­la Coop­er. As pro­fes­so­ras esclare­cem que o luto não é só um proces­so emo­cional, mas tam­bém uma reação psi­cológ­i­ca, emo­cional, cog­ni­ti­va, social e espir­i­tu­al diante de uma per­da sig­ni­fica­ti­va, não nec­es­sari­a­mente ape­nas de pes­soas.

Para as qua­tro psicólo­gas ouvi­das pela reportagem, é impor­tante que, em quais­quer condições da vivên­cia do luto, a pes­soa pos­sa encon­trar espaços para se expres­sar e encon­trar empa­tia. De bus­car comu­nicar a própria dor e encon­trar pes­soas ou gru­pos para escu­tar a fim de se sen­tir acol­hi­do. “É muito impor­tante a gente refle­tir, enquan­to sociedade, sobre o espaço que a morte tem na nos­sa vida, qual o sen­ti­men­to diante do lim­ite que a morte impõe”, con­tex­tu­al­iza.

Proteção

É claro sen­tir a dor do out­ro ou de viv­er o luto do out­ro, tem relação com a nos­sa capaci­dade de ser­mos empáti­cos. “Pes­soas que têm um nív­el de empa­tia muito grande, cer­ta­mente, vão exper­i­men­tar de uma for­ma mais inten­sa a exper­iên­cia do luto do out­ro, a exper­iên­cia do luto cole­ti­vo”, ressalta a espe­cial­ista em psi­colo­gia transpes­soal, Cyn­thia Ramos, que tra­bal­ha em Brasília.

A psicólo­ga clíni­ca e edu­ca­cional Aline Oliveira, que atua em São Paulo, defende que é impor­tante tam­bém procu­rar respeitar a neces­si­dade de silên­cio inter­no que pode ocor­rer em alguns momen­tos de luto. “Se sen­tir necessário, procu­rar lugares prepara­dos para falar sobre o assun­to, seja em gru­pos que tra­bal­ham com o luto, a psi­coter­apia indi­vid­ual, ou pes­soas próx­i­mas de con­fi­ança”, acon­sel­ha.

Nesse sen­ti­do, ela expli­ca que falar aber­ta­mente é uma for­ma de expres­sar a dor, e pode encon­trar um lugar de amparo ao dividir e com­par­til­har os sen­ti­men­tos com out­ras pes­soas. “A dor do luto pre­cisa ser viven­ci­a­da, recon­heci­da e respeita­da”.

Em suma, a pesquisado­ra Saman­tha Muc­ci con­cor­da que o cuida­do deve envolver acol­hi­men­to. “Ape­sar de cada pes­soa viv­er de seu jeito e no seu tem­po o proces­so de luto, é muito bom quan­do temos com quem com­par­til­har as histórias que vive­mos. “Como pre­tendemos con­viv­er com a pre­sença da ausên­cia”.

Bombardeados

É impor­tante ain­da, de acor­do com Key­la Coop­er, iden­ti­ficar fatores de sofri­men­to, como o con­sumo muito ime­di­a­to de notí­cias que são difí­ceis de se lidar. “A for­ma como recebe­mos infor­mações pode ter uma impli­cação na saúde men­tal muito sig­ni­fica­ti­va. Eu pen­so que a mídia tem um papel muito impor­tante. É impor­tante veic­u­lar as infor­mações, mas eu acho que é impor­tante refle­tir sobre o como veic­u­lar essas notí­cias.”

Nesse sen­ti­do, a espe­cial­ista em psi­colo­gia transpes­soal, Cyn­thia Ramos, enfa­ti­za que, de fato, cada um de nós pode e deve se cuidar. “Quan­do se tra­ta de um even­to de grande mag­ni­tude, como guer­ras, primeiro, não deve­mos igno­rar o que está acon­te­cen­do no mun­do porque não é a alien­ação que vai nos pro­te­ger. Mas tam­bém é impor­tante estar­mos aten­tos a não per­mi­tir que sejamos bom­bardea­d­os ou super­ex­pos­tos às notí­cias, às vezes muitas vezes repet­i­ti­vas”, diz.

Atenção aos sinais

As psicólo­gas iden­ti­fi­cam que sin­tomas físi­cos podem ser impor­tantes para iden­ti­ficar como ocorre a elab­o­ração de luto. Podem haver, segun­do as espe­cial­is­tas, proces­so de sofri­men­to man­i­fes­tação de ansiedade, com raros momen­tos de praz­er e de dis­tração. “Isso pode ser uma deman­da para procu­ra de um psicól­o­go, inclu­sive se a pes­soa con­statar sin­tomas físi­cos como taquicar­dia, sudorese e prob­le­mas no tra­to diges­ti­vo”, diz a psicólo­ga Key­la Coop­er.

Out­ros sinais que a pes­soa deve ficar aten­ta é a difi­cul­dade de con­cen­tração, apa­tia, alter­ação no apetite e no sono. “Alguns sin­tomas físi­cos como enx­aque­cas, náuse­as, mui­ta difi­cul­dade de realizar até mes­mo os cuida­dos bási­cos de higiene como tomar ban­ho e esco­var os dentes”, diz a psicólo­ga Saman­tha Muc­ci.

Dos olhos

Segun­do Saman­tha Muc­ci, da Unife­sp, o proces­so de luto pre­cisa ser viven­ci­a­do e ressig­nifi­ca­do pela pes­soa que está enlu­ta­da, pela família, por todos que estão sentin­do a per­da de alguém ou de algo sig­ni­fica­ti­vo. “Muitas vezes evi­ta­mos e não nos sen­ti­mos prepara­dos para lidar com a expressão dos sen­ti­men­tos rela­ciona­dos ao proces­so de luto como a tris­teza, sen­ti­men­to de aban­dono, a rai­va, o sen­ti­men­to de cul­pa e pesar, o choro”.

Por isso, chorar e se man­i­fes­tar são tão fun­da­men­tais, con­forme avaliam as psicólo­gas. “Chorar é um proces­so impor­tante de elab­o­ração dessas emoções. É através do choro e da expressão dos sen­ti­men­tos que podemos parar para pen­sar no que está sentin­do. Não tem como a gente pular essa eta­pa”, diz Key­la Coop­er.

Afi­nal, estão envolvi­dos sen­ti­men­tos muito par­tic­u­lares que são ínti­mos e não cos­tu­mam ser a tôni­ca de posta­gens em redes soci­ais pre­ocu­padas em propa­gar ilusões de feli­ci­dades per­ma­nentes. Como diz a pro­fes­so­ra da Unife­sp, são sen­ti­men­tos reais “e pre­cisam de espaço, tem­po e per­mis­são para serem recon­heci­dos e vivi­dos”.

Edição: Valéria Aguiar

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