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Especialistas dizem que linguagem rebuscada dificulta acesso à Justiça

Repro­dução: © Mar­cel­lo Casal jr/Agência Brasil

Problema ocorre também na área dos serviços públicos


Pub­li­ca­do em 11/08/2023 — 07:02 Por Flávia Albu­querque – Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

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Em 1827, teve iní­cio a história for­mal do ensi­no jurídi­co no Brasil, com a edição do decre­to que criou cur­sos de dire­ito em São Paulo e em Olin­da, Per­nam­bu­co, por meio de uma lei de 11 de agos­to daque­le ano. A cri­ação das fac­ul­dades foi necessária porque, depois da Inde­pendên­cia do país, em 1822, foi pre­ciso haver brasileiros com con­hec­i­men­to nes­ta área.

Des­de então, mui­ta coisa mudou no país, que, de monar­quista, pas­sou a ser repúbli­ca. A lin­guagem jurídi­ca, entre­tan­to, não se des­colou do pas­sa­do e con­tin­ua usan­do ter­mos rebus­ca­dos e de difí­cil entendi­men­to para o cidadão lei­go.

Pen­san­do em aux­il­iar na mudança dessa situ­ação, a advo­ga­da, escrito­ra e jor­nal­ista Ivy Farias, que tam­bém é auto­ra de Escr­ev­er Dire­ito: Man­u­al de Escri­ta Cria­ti­va Para Car­reiras Jurídi­cas, vai min­is­trar nas sec­cionais da Ordem dos Advo­ga­dos do Brasil (OAB) e de Mato Grosso um cur­so inédi­to para “ensi­nar” os profis­sion­ais da área a sim­pli­ficar a lin­guagem. A ideia é tro­car o “juridiquês” por uma lin­guagem que seja com­preen­di­da por qual­quer pes­soa.

“O Brasil man­tém uma forte tradição por­tugue­sa, colo­nial­ista, no dire­ito. Então, o primeiro pon­to é enten­der que esta­mos repro­duzin­do, em vez de pro­duzin­do, muitas vezes sem refle­tir. Hoje nós lemos mais, mas com­preen­demos menos, e há uma série de con­teú­dos que não exis­ti­am décadas atrás. A atenção é dis­per­sa. Então, tudo que é feito para econ­o­mizar o tem­po de quem lê é bem-vin­do”, diz Ivy.

Segun­do a advo­ga­da, a questão é com­plexa, porque faz com que a “pes­soa comum” não enten­da um dire­ito que é dela, já quem nem mes­mo aque­las que têm mais esco­lar­i­dade com­preen­dem os tex­tos e as sen­tenças. “É como se você tivesse algo, mas não usasse. Como é pos­sív­el ter Justiça se ela não é com­preen­di­da? Este é o pon­to. Se uma pes­soa com alto grau de esco­lar­i­dade não entende, sig­nifi­ca que tem algo erra­do. A pro­pos­ta é que todo mun­do enten­da, e de primeira, porque isso econ­o­miza tem­po e din­heiro.”

Ivy obser­vou ain­da que a com­preen­são dos tex­tos e sen­tenças do Judi­ciário encos­ta na questão da inclusão, pois o princí­pio da lin­guagem sim­ples é incluir. “Todas as pes­soas se ben­e­fi­ci­am muito com isso. E o cur­so de dire­ito prepara profis­sion­ais que acabam atuan­do na esfera públi­ca e na defe­sa da cidada­nia, como a Defen­so­ria Públi­ca, por exem­p­lo.”

Serviço público

Com base nis­so, há pelo menos 80 anos, existe um movi­men­to que bus­ca sim­pli­ficar o lin­gua­jar jurídi­co, ten­ta­ti­va que se estende ao serviço públi­co para diminuir a buro­c­ra­cia estatal. As ini­cia­ti­vas pelo país são inúmeras e, na cap­i­tal paulista, por exem­p­lo, há uma lei de auto­ria do ex-vereador, ex-secretário de Ino­vação e Tec­nolo­gia da prefeitu­ra de São Paulo e ex-coor­de­nador do Poupatem­po, Daniel Annem­berg, que deter­mi­na que todos os órgãos públi­cos da cidade busquem esse obje­ti­vo.

“Quan­do a gente está há bas­tante tem­po na área públi­ca, tem a mania de falar por siglas, falar por ter­mos téc­ni­cos. Isso é muito ruim porque não se democ­ra­ti­za o aces­so às pes­soas. Muitas vezes, expli­ca-se algo, e elas sim­ples­mente não enten­dem. Daí vem a importân­cia de haver, na área públi­ca, como já ocorre em vários país­es, uma lei que deixe muito clara a for­ma de se comu­nicar com a pop­u­lação”, expli­cou Annem­berg.

Para ele, já ficou clara a importân­cia de reduzir a dis­tân­cia entre os órgãos públi­cos e a pop­u­lação por meio da lin­guagem. Entre­tan­to, é pre­ciso que, por meio de uma lei, os servi­dores assim­i­lem esse con­ceito. Por isso, há ain­da neces­si­dade de que todos sejam con­sci­en­ti­za­dos e capac­i­ta­dos para faz­er isso na práti­ca.

“A mania de falar difí­cil afas­ta as pes­soas do que você está dizen­do, e são poucos os enten­di­dos em uma lin­guagem rebus­ca­da. E por que não falar em uma lin­guagem que as pes­soas pos­sam enten­der de for­ma mais clara, mais sim­ples, mais trans­par­ente? Aí, se atinge muito mais gente”, ressaltou.

De acor­do com Annem­berg, quan­do a pes­soa aten­di­da em um serviço públi­co não entende o que foi dito, obvi­a­mente voltará para falar do mes­mo assun­to, o que vai ger­ar filas e idas a lugares incor­re­tos, na ten­ta­ti­va de resolver o prob­le­ma. “Isso prej­u­di­ca o cidadão, e o próprio serviço públi­co, que vai ter que aten­der de novo essa pes­soa que não enten­deu o que o fun­cionário escreveu ou falou. Aumen­ta muitas vezes o tra­bal­ho, quan­do a comu­ni­cação não é sim­ples ou dire­ta”, pon­der­ou.

A edu­cado­ra, jor­nal­ista e empresária Heloisa Fis­ch­er enfa­ti­zou que sem­pre hou­ve desconexão entre a lin­guagem téc­ni­ca, admin­is­tra­ti­va e buro­cráti­ca e a lin­guagem com­preen­di­da pelo cidadão. E isso não é exclu­sivi­dade do Brasil, além de estar muito rela­ciona­do à fal­ta de empa­tia, disse Heloisa. Ela citou como exem­p­lo a lin­guagem prev­i­den­ciária, que tem ter­mos téc­ni­cos e mod­os de expressão atre­la­dos a pes­soas muito espe­cial­izadas no assun­to.

“Mas o que acon­tece é que essa pes­soa não con­segue se colo­car no lugar do cidadão que vai ler, que não con­hece nada daque­le assun­to. Isso pode ser lev­a­do para qual­quer área, pois há sem­pre uma pes­soa téc­ni­ca, que con­hece muito bem o assun­to e dá as instruções a quem procu­ra. Heloisa cita o caso de uma pes­soa que está dan­do entra­da no pedi­do de aposen­ta­do­ria. “Ela só faz isso uma vez na vida. O tex­to que a infor­ma tem que ser claro para o nív­el de con­hec­i­men­to dela no tema”, disse a jor­nal­ista.

Para Heloisa, a trans­for­mação dig­i­tal tornou a questão ain­da mais urgente, já que a “plataformiza­ção” dos gov­er­nos está basea­da em autosserviços, sem que o cidadão pre­cise pas­sar antes por uma pes­soa, ir a um bal­cão ou tele­fonar para bus­car infor­mações. “Dessa for­ma, con­segue-se aten­der em escala, aten­der mais gente, porém, isso requer não só letra­men­to dig­i­tal, como de leitu­ra, além de um con­hec­i­men­to sobre as platafor­mas dig­i­tais e do próprio fun­ciona­men­to do sis­tema”, disse ela.

Por isso, Heloisa afir­ma que os tex­tos que infor­mam as pes­soas nos ambi­entes dig­i­tais pre­cisam reduzir as dúvi­das, levan­do em con­ta tam­bém o alto índice de anal­fa­betismo fun­cional. “Temos 29% de anal­fa­betos na pop­u­lação brasileira, ou pes­soas que têm uma alfa­betismo tão rudi­men­tar que elas não fun­cionam em sociedade, não con­seguem dar con­ta do que pre­cisam ler. Nós só temos 12% de pes­soas com profi­ciên­cia em leitu­ra e 88% com grau de difi­cul­dade para lidar com tex­to lon­go, com­plexo, com infor­mações não tão explíc­i­tas, o que já jus­ti­fi­ca que os tex­tos sejam mais fáceis”, con­cluiu.

Edição: Nádia Fran­co

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