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Estado chileno promete assumir busca por desaparecidos na ditadura

Repro­dução: © Fabio Rodrigues-Pozze­bom/Agên­cia Brasil

Extensa programação marca 50 anos do golpe no país


Pub­li­ca­do em 11/09/2023 — 07:33 Por Alex Rodrigues — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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Nos primeiros anos da déca­da de 1980, os pais de um garo­to nasci­do em Machalí, na região cen­tral do Chile, chamavam a atenção dos fil­hos para uma sepul­tura sem qual­quer iden­ti­fi­cação exis­tente no Cemitério San­ta Inés, de Viña del Mar, cidade litorânea a cer­ca de 100 quilômet­ros da cap­i­tal, San­ti­a­go, onde fica­va o mau­soléu da família do meni­no. 

“Não havia sequer uma pla­ca com nome”, recor­da o atu­al embaix­ador chileno no Brasil, Sebas­t­ian Depo­lo Cabr­era. “Meus pais nos diziam que um ex-pres­i­dente escol­hi­do pelo povo esta­va enter­ra­do sob aque­la tum­ba anôn­i­ma e que aque­le trata­men­to não era dig­no dele.”

O pres­i­dente era Sal­vador Allende, eleito pelo voto pop­u­lar democráti­co em 1970 e depos­to do car­go por um golpe civ­il-mil­i­tar em 11 de setem­bro de 1973 – cer­ca de três anos antes de Depo­lo nascer.

Defen­sor da tese de que o Chile pode­ria chegar ao social­is­mo por vias insti­tu­cionais democráti­cas, Allende mor­reu no inte­ri­or do palá­cio pres­i­den­cial de La Mon­e­da, resistin­do ao ataque dos golpis­tas que usaram inclu­sive aviões da Força Aérea e tan­ques do Exérci­to para bom­bardear o pré­dio.

Con­suma­do com o apoio de parte da sociedade chile­na e de gov­er­nos estrangeiros, incluin­do os dos Esta­dos Unidos e do Brasil (tam­bém, então, sob o regime mil­i­tar), o golpe lev­ou ao poder o então chefe das Forças Armadas, o gen­er­al Augus­to Pinochet, que por 17 anos coman­dou forte apara­to repres­si­vo, resul­tan­do em uma das mais vio­len­tas ditaduras lati­no-amer­i­canas.

Orga­ni­za­ções soci­ais e o próprio Esta­do chileno cal­cu­lam que cer­ca de 40 mil pes­soas sofr­eram abu­sos cometi­dos pelo regime. As forças de segu­rança públi­ca tam­bém seques­traram e/ou mataram mais de 3 mil pes­soas, das quais ao menos 1.162 mil seguem desa­pare­ci­das.

Só em 1990, ano em que a ditadu­ra chile­na chegou ao fim, os restos mor­tais de Allende foram lev­a­dos para San­ti­a­go. Em 4 de setem­bro, com a Cat­e­dral cer­ca­da por uma mul­ti­dão dis­pos­ta a se des­pedir e hom­e­nagear Allende, uma cer­imô­nia ofi­cial mar­cou a trans­fer­ên­cia da ossa­da do ex-pres­i­dente para o cemitério ger­al da cap­i­tal. Depo­lo esta­va prestes a com­ple­tar 14 anos.

“Para mim, isso rep­re­sen­ta o quan­to nos cus­tou reposi­cionar a figu­ra de Allende como grande líder políti­co democráti­co, alguém que sem­pre apos­tou na via­bil­i­dade de pro­mover trans­for­mações [soci­ais] por meios democráti­cos. Fatos nega­dos por muitos anos”, avalia o embaix­ador, entre­vis­ta­do pela Agên­cia Brasil dias antes de o golpe civ­il-mil­i­tar chileno com­ple­tar 50 anos.

Evento

A data é obje­to de exten­sa pro­gra­mação pro­movi­da pelo gov­er­no chileno, insti­tu­ições públi­cas e pri­vadas e por orga­ni­za­ções soci­ais. Além de exposições — incluin­do a do fotó­grafo brasileiro Evan­dro Teix­eira, no Museu da Memória e dos Dire­itos Humanos de San­ti­a­go -, mar­chas, debates, apre­sen­tações artís­ti­cas e exibição de filmes, há uma série de ini­cia­ti­vas políti­cas agen­dadas, a começar pela trans­for­mação do Plano Nacional de Bus­ca da Ver­dade e Justiça em uma políti­ca públi­ca per­ma­nente.

Na práti­ca, o Esta­do chileno prom­ete assumir os esforços de bus­ca pelos 1.162 desa­pare­ci­dos, con­forme o pres­i­dente Gabriel Boric anun­ciou em 30 de agos­to. Por décadas, as próprias famílias das víti­mas da repressão foram os prin­ci­pais respon­sáveis por ten­tar localizar os desa­pare­ci­dos, con­seguin­do encon­trar os restos mor­tais de 307 pes­soas. O plano tam­bém esta­b­elece a imple­men­tação de medi­das de reparação e que garan­tam o aces­so de famil­iares das víti­mas às infor­mações obti­das durante o proces­so de bus­cas.

“Não somos movi­dos pelo ran­cor, mas sim pela con­vicção de que a úni­ca pos­si­bil­i­dade de con­stru­irmos um futuro mais livre e respeitoso com a vida e a dig­nidade humana é con­hecer toda a ver­dade”, jus­ti­fi­cou o pres­i­dente chileno ao lançar o plano nacional.

Por ini­cia­ti­va do gov­er­no de Boric, um ex-líder estu­dan­til de esquer­da, qua­tro ex-pres­i­dentes chilenos (Eduar­do Frei Ruiz-Tagle (1994/2000), Ricar­do Lagos (2000/2006), Michelle Bachelet (2006/2010 e 2014/2018) e Sebastián Piñera (2010/2014 e 2018/2022) já assi­naram doc­u­men­to que gan­hou o nome infor­mal de Com­pro­mis­so de San­ti­a­go.

Os sig­natários da declar­ação se com­pro­m­e­tem a cuidar e defend­er a democ­ra­cia, respei­tan­do a Con­sti­tu­ição, as leis e o Esta­do de Dire­ito diante de ameaças autoritárias e da intol­erân­cia. Tam­bém assumem o com­pro­mis­so de enfrentar os desafios da democ­ra­cia com mais democ­ra­cia; defend­er e pro­mover os dire­itos humanos aci­ma de quais­quer difer­enças ide­ológ­i­cas e for­t­ale­cer os espaços de colab­o­ração entre Esta­dos e o mul­ti­lat­er­al­is­mo. O tex­to já divul­ga­do ter­mi­na desta­can­do a importân­cia do cuida­do com a memória históri­ca, “ânco­ra do futuro democráti­co que nos­sos povos deman­dam”. Con­vi­da­dos a aderir à ini­cia­ti­va, con­ferindo-lhe um caráter supra­partidário, par­tidos de dire­i­ta optaram por lançar seu próprio man­i­festo.

Memória

Sobre a pro­gra­mação ded­i­ca­da aos 50 anos do golpe de Esta­do, o gov­er­no chileno afir­ma que a pro­pos­ta é ger­ar um “espaço de encon­tro e reflexão em torno da memória, da democ­ra­cia e do futuro”. Foram con­vi­dadas lid­er­anças políti­cas de vários país­es, incluin­do o Brasil, que será rep­re­sen­ta­do pelo min­istro dos Dire­itos Humanos e da Cidada­nia, Sil­vio Almei­da; pelo secretário exec­u­ti­vo do Min­istério da Cul­tura, Már­cio Tavares, e pelo asses­sor espe­cial de Defe­sa da Democ­ra­cia, Memória e Ver­dade, Nilmário Miran­da, já que o pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va está na Índia, par­tic­i­pan­do da Cúpu­la do G20.

Chefes de Esta­do que já con­fir­maram pre­sença, como os pres­i­dentes do Méx­i­co, da Colôm­bia, Argenti­na e do Uruguai, tam­bém serão con­vi­da­dos a fir­mar a Declar­ação de San­ti­a­go durante cer­imô­nia ofi­cial no Palá­cio de La Mon­e­da, nes­ta segun­da-feira (11). O palá­cio será aber­to à vis­i­tação públi­ca, sendo necessário inscr­ev­er-se pre­vi­a­mente. Locais de todo o país que foram usa­dos como cen­tros de detenção e tor­tu­ra sedi­arão diver­sas ativi­dades ao lon­go dos próx­i­mos dias.

Para o embaix­ador Depo­lo, “datas emblemáti­cas”, mes­mo quan­do asso­ci­adas a “trág­i­cas exper­iên­cias” são opor­tu­nidades para as sociedades apren­derem algo mais, “a fim de que fatos semel­hantes não voltem a ocor­rer”. E há, segun­do ele, ao menos três impor­tantes razões para que tam­bém os cidadãos brasileiros se inteirem sobre os fatos ocor­ri­dos no Chile há 50 anos

“Primeiro, recon­hecer o val­or da democ­ra­cia, que nun­ca está garan­ti­da. E se não a defend­emos, out­ros val­ores como saúde, tra­bal­ho e segu­rança, tam­bém não estarão [asse­gu­ra­dos]. Depois, nen­hum país vive iso­la­do. Isso ficou evi­dente na Améri­ca Lati­na. Há sufi­cientes evidên­cias histórias sobre como, no con­tex­to da chama­da Guer­ra Fria, as potên­cias estrangeiras par­tic­i­param da artic­u­lação do golpe no Chile. É pre­ciso com­preen­der e lem­brar isso. O ter­ceiro moti­vo é que ninguém, nen­hum país, vai pro­duzir bem-estar para as pes­soas sem grandes acor­dos democráti­cos que impul­sionem e sus­ten­tem ess­es avanços”, disse Depo­lo, desta­can­do as voltas da história.

“Pes­soal­mente, isso parece fechar um ciclo. Aos oito anos de idade, tomei con­hec­i­men­to de que havia um pres­i­dente enter­ra­do em uma sepul­tura não iden­ti­fi­ca­da. Quarenta e dois anos depois, há um lugar aonde pos­so levar min­has fil­has e lhes con­tar sobre o que se pas­sou e quem era Allende. Vou poder lhes diz­er o que meu pai não pôde me diz­er”, con­cluiu o embaix­ador.

Edição: Graça Adju­to

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