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Estatuto do Idoso traz melhoras no campo, mas falta acesso a serviços

Repro­dução: © Marce­lo Camargo/Agência Brasil

Fiscalização falha para que a lei seja cumprida


Pub­li­ca­do em 30/09/2023 — 13:34 Por Mar­i­ana Tokar­nia – Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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“Vou falar min­ha roti­na. Lev­an­tei hoje às 5h, coei café, lavei as vasil­has sujas, cuidei das gal­in­has. Ai, depois, eu pas­so para a coz­in­ha, cui­do do café da man­hã. Sem­pre obser­van­do tudo, porque mul­her é mais obser­vado­ra, obser­va onde a gal­in­ha está can­tan­do, onde está botan­do o ovo, qual bicho ameaça a cri­ação. Mul­her faz não sei quan­tas util­i­dades por dia”.

Eram 11h da man­hã quan­do Maria das Graças Galvão con­ta­va o que tin­ha feito até aque­le momen­to. Ela detal­ha­va o dia enquan­to prepar­a­va o almoço para ela e o mari­do. A tra­bal­hado­ra rur­al aposen­ta­da, de 71 anos de idade, con­ta que nun­ca deixou de tra­bal­har. Ela mora no assen­ta­men­to Bananal, na zona rur­al do municí­pio de Peixe (TO) e é pres­i­dente do Sindi­ca­to dos Tra­bal­hadores e Tra­bal­hado­ras Rurais da cidade.

“Em todos os lugares que a gente chega, eu ain­da vejo uma grande fal­ta de respeito com o idoso. Às vezes, até um olhar que a pes­soa dire­ciona a um idoso é dis­crim­i­nan­do”, diz. “Eu ten­ho 71 anos e eu real­mente pos­so falar. Nós, idosos, somos car­entes. O que apren­demos, o que temos de sabedo­ria, é real­mente em cima das pan­cadas que a gente rece­beu durante essa vida, crian­do família”.

Maria Galvão está entre as mais de 4,5 mil­hões de pes­soas com 60 anos de idade ou mais que vivem nas áreas rurais do país, de acor­do com o Anuário Estatís­ti­co da Agri­cul­tura Famil­iar 2023, da Con­fed­er­ação Nacional dos Tra­bal­hadores na Agri­cul­tura (Con­tag), com dados do Depar­ta­men­to Inter­sindi­cal de Estatís­ti­ca e Estu­dos Socioe­conômi­cos (Dieese) e do Insti­tu­to Brasileiro de Geografia e Estatís­ti­ca (IBGE).

Assim como ela, 6,6 mil­hões de pes­soas idosas estão aposen­tadas no cam­po por con­ta da idade. Pelas regras da aposen­ta­do­ria rur­al, os home­ns podem se aposen­tar aos 60 anos de idade e as mul­heres, aos 55 anos de idade. Mais de um quar­to dessa pop­u­lação, 1,4 mil­hão, não têm nen­hu­ma instrução ou têm menos de 1 ano de estu­do e, a maio­r­ia, 2,6 mil­hões, são negras.

Con­sid­er­a­da a pop­u­lação rur­al ati­va, com 14 anos ou mais, a maio­r­ia, 87%, gan­ha até dois salários mín­i­mos, o que equiv­ale a R$ 2.640. Dess­es, 27% recebem menos de meio salário mín­i­mo, ou seja, até R$ 660.

A palavra mais repeti­da entre as pes­soas idosas do cam­po e espe­cial­is­tas entre­vis­ta­dos pela Agên­cia Brasil é respeito. Respeito que fal­ta a essa pop­u­lação e que está garan­ti­do em lei, no Estatu­to da Pes­soa Idosa, que com­ple­ta neste dia 1º, 20 anos. Com 118 arti­gos, o estatu­to visa reg­u­la­men­tar os dire­itos asse­gu­ra­dos às pes­soas com idade igual ou supe­ri­or a 60 anos. Ele amplia os dire­itos já pre­vis­tos na Lei Fed­er­al 8.842, de 4 janeiro de 1994 e na Con­sti­tu­ição Fed­er­al de 1988.

“O estatu­to nos aju­dou bas­tante, muito mes­mo, mas ain­da hoje temos pes­soas no cam­po que não têm con­hec­i­men­to de cobrar o seu dire­ito. Já acon­te­ceu de eu chegar no ban­co e ter idoso na fila com não sei quan­tas pes­soas na frente. Eu per­gun­to por que estão ali, e dizem que não querem pas­sar na frente. As pes­soas não se pre­ocu­pam muito em con­vencer os idosos de seus dire­itos”, disse Maria Galvão.

Falta de cuidado

O estatu­to pre­vê uma série de garan­tias às pes­soas idosas, des­de as pri­or­i­dades nos serviços ao dire­ito à liber­dade, edu­cação, cul­tura, esporte e laz­er, dire­ito à saúde, ao Sis­tema Úni­co de Saúde (SUS), garan­tia de ali­men­to, pre­v­idên­cia social e pro­teção.

“As pes­soas idosas pre­cisam ser bem cuidadas e não desre­speitadas. Tem gente que abraça essa causa e tem out­ras que não estão nem aí para eles mes­mos, quan­to mais para a pes­soa idosa”, defende o secretário da Ter­ceira Idade da Con­tag, Antônio Oliveira. Oliveira, de 66 anos de idade, pro­du­tor rur­al em Nos­sa Sen­ho­ra Apare­ci­da (SE), aposen­ta­do e, mes­mo assim, como Maria Galvão, segue tra­bal­han­do na roça.

“Vou lhe diz­er, você pega e lê o estatu­to, vê que tem mui­ta defe­sa no estatu­to. Você vê um monte de pro­teção, mas quan­do vai até o ban­co rece­ber o din­heiro, tem que enfrentar aque­la fila, tem trans­porte que não para porque a pes­soa idosa não vai pagar ou vai pagar menos. Eu acho que mel­horou, mas tem mui­ta dis­crim­i­nação, o estatu­to pre­cis­aria ser mais divul­ga­do”, defende.

A asses­so­ra da Con­tag Adri­ana Souza, que rep­re­sen­ta a enti­dade no Con­sel­ho Nacional dos Dire­itos da Pes­soa Idosa, recla­ma que fal­ta fis­cal­iza­ção para que a lei seja cumpri­da. “É uma pau­ta que a gente reivin­di­cou bas­tante, para que o estatu­to alcance as pes­soas que estão na zona rur­al. A gente sabe das difi­cul­dades das políti­cas públi­cas chegarem [às pes­soas] e na zona rur­al é ain­da mais difí­cil que na zona urbana. Ape­sar da lei ser muito fes­te­ja­da, ain­da há muito que mel­ho­rar na imple­men­tação. O estatu­to trouxe a pre­visão de fis­cal­iza­ção, que nem sem­pre é cumpri­da”.

Violações em casa

Além de não serem pri­or­izadas nos atendi­men­tos e nos serviços, Antônio Oliveira con­ta que muitas das vio­lações que ocor­rem con­tra os dire­itos das pes­soas idosas no cam­po são prat­i­cadas pela própria família e que isso tor­na mais difí­cil ain­da as denún­cias.

“É um prob­le­ma, a gente pede para eles irem na del­e­ga­cia ou na pro­mo­to­ria públi­ca ou liguem para o Disque 100 e digam o que está acon­te­cen­do. Mas quan­do é famil­iar, eles não têm cor­agem de faz­er isso, sabe”, rev­ela o secretário. “Eles não querem faz­er essas denún­cias porque dizem que é da família, que é feio faz­er isso, mas a gente sem­pre diz que feio é a família estar ameaçan­do vocês, dizen­do que quer din­heiro, que quer isso ou aqui­lo out­ro”.

Dados do Disque 100 mostram que cer­ca da metade das vio­lên­cias cometi­das con­tra pes­soas idosas são cometi­das pelos próprios fil­hos. Além dis­so, grande parte ocorre na casa da própria víti­ma, onde mora ou não com o autor das vio­lên­cias. Entre as vio­lên­cias mais cometi­das estão a vio­lên­cia físi­ca, psíquica e pat­ri­mo­ni­al.

O Disque Dire­itos Humanos — Disque 100 é um serviço de util­i­dade públi­ca do Min­istério dos Dire­itos Humanos e da Cidada­nia. Para acioná-lo, bas­ta dis­car o número 100 no tele­fone ou celu­lar. Qual­quer pes­soa pode repor­tar algu­ma notí­cia de fato rela­ciona­da a vio­lações de dire­itos humanos, da qual seja víti­ma ou que ten­ha con­hec­i­men­to.

Em 2022, foram feitas 96 mil denún­cias de vio­lên­cia con­tra pes­soas idosas. Não é pos­sív­el dis­tin­guir quais delas foram cometi­das em áreas urbanas ou rurais. Os fil­hos estão o topo dos agres­sores. Desse total, 48 mil, ou seja, a metade, foram cometi­das por eles. Quase a metade, 43 mil, ocor­reram nas casas onde moram as pes­soas idosas e os agres­sores, e 42 mil, na casa onde moram ape­nas as pes­soas idosas.

As vio­lên­cias mais comuns são físi­cas, que envolvem exposição de risco à saúde, maus tratos, aban­dono e insub­sistên­cia mate­r­i­al; e psíquicas, como tor­tu­ra psíquica, insub­sistên­cia afe­ti­va e con­strang­i­men­to. Em segui­da, estão as vio­lên­cias pat­ri­mo­ni­ais. Ape­nas no primeiro semes­tre deste ano, já foram feitas 65 mil denún­cias, que seguem o mes­mo padrão dos anos ante­ri­ores.

“Temos a rede de pro­teção à pes­soa idosa, cri­a­da em 2006, uma rede nacional com­pos­ta por Pro­mo­to­ria do Idoso, Vara do Idoso, Defen­so­ria do Idoso, Con­sel­ho de Dire­itos do Idoso, del­e­ga­cias, entre out­ros. O Brasil é muito exten­so e a atu­ação não chega a essas pes­soas, tem que ter atu­ação mais efe­ti­va”, defende a asses­so­ra da Con­tag, Adri­ana Souza.

Acesso aos serviços

A rep­re­sen­tante da Pas­toral da Pes­soa Idosa no Con­sel­ho Nacional dos Dire­itos da Pes­soa Idosa, Bernadete Dal Molin Schen­at­to, ressalta que, no Brasil, as pes­soas envel­he­cem de for­ma desigual, depen­den­do da situ­ação socioe­conômi­ca, e que fal­ta a uni­ver­sal­iza­ção do aces­so a serviços públi­cos, sobre­tu­do para pop­u­lações rurais.

“Esta­mos diante de um país enorme, com mui­ta desigual­dade no envel­hec­i­men­to. As pes­soas que nasce­r­am de 1945 a 1964 já chegaram aos 60 anos ou estão chegan­do lá. A real­i­dade do cam­po é um pouco mais cru­el se a gente con­sid­er­ar as questões de gênero, de ren­da, de esco­lar­i­dade as questões econômi­cas”.

Em relação à saúde, segun­do Bernadete Schen­at­to, a pas­toral pres­ta atendi­men­to a pes­soas idosas em situ­ação de vul­ner­a­bil­i­dade, e “uma questão recor­rente é o fato de pre­cis­arem se deslo­car de suas comu­nidades para rece­berem atendi­men­to. Muitos acabam não voltan­do dos hos­pi­tais”.

O estatu­to pre­vê que as pes­soas idosas têm dire­ito ao atendi­men­to domi­cil­iar, incluin­do a inter­nação, para a pop­u­lação que dele neces­si­tar e este­ja impos­si­bil­i­ta­da de se loco­mover, inclu­sive para as pes­soas idosas abri­gadas e acol­hi­das por insti­tu­ições públi­cas, filantrópi­cas ou sem fins lucra­tivos e even­tual­mente con­ve­ni­adas com o poder públi­co, nos meios urbano e rur­al.

“A pes­soa idosa, nos momen­tos cru­ci­ais da vida, tem que se deslo­car para hos­pi­tais de alta ou media com­plex­i­dade que estão local­iza­dos, muitas vezes, a 200 km, 300 km de onde moram. Para aces­sar o trata­men­to, a pes­soa idosa, no final da vida, está longe dos famil­iares, dos ami­gos e da comu­nidade. É pre­ciso que se human­ize esse atendi­men­to”, defende Bernadete Schen­at­to.

Out­ro desafio apon­ta­do pela con­sel­heira é a garan­tia do aces­so à seguri­dade social. “O que as pes­soas repor­tam para nós é que é muito difí­cil inclu­sive agen­dar o atendi­men­to. Aí, tem out­ra questão que pre­cisamos nos aten­tar. A ger­ação que nasceu nes­sa fase não é tec­nológ­i­ca. Ela tem extrema difi­cul­dade de faz­er agen­da­men­to e isso tam­bém depende se é anal­fa­be­ta ou anal­fa­be­ta fun­cional, se tem ou não tem aces­so a dis­pos­i­tivos e sinal 4G, se não tem alfa­bet­i­za­ção tec­nológ­i­ca. A pes­soa vai uma vez e não resolve, porque o proces­so é buro­cráti­co, tem que levar doc­u­men­tos, não é fácil”.

De acor­do com ela, é pre­ciso que o serviço de seguri­dade ajude mais as pes­soas, ori­ente, faça pos­sív­el para evi­tar os reagen­da­men­tos.

Out­ra deman­da impor­tante, de acor­do com Bernadete Schen­at­to, é a definição de uma Políti­ca Nacional de Cuida­dos, atual­mente, em dis­cussão pelo gov­er­no fed­er­al. A políti­ca dev­erá elab­o­rar ini­cia­ti­vas para garan­tir dire­itos às pes­soas que exercem função de cuidador — seja um mem­bro da família ou um tra­bal­hador remu­ner­a­do.

As medi­das voltadas para as pes­soas idosas, no entan­to, pre­cisam de celeri­dade, como ressalta a con­sel­heira. “Pre­cisamos que seja rápi­do, já estão na situ­ação de vul­ner­a­bil­i­dade do envel­hec­i­men­to. A pri­or­i­dade para quem envel­he­ceu é ontem. Não se sabe quan­to tem­po vive, nem se pode avaliar a dimen­são da dor de cada um, da solidão de cada um, da fal­ta de atenção, da fal­ta de tudo. Isso tem que ser acel­er­a­do”.

Edição: Fer­nan­do Fra­ga

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