...
quarta-feira ,11 dezembro 2024
Home / Cultura / Exposição mostra os impactos das grandes obras durante a ditadura

Exposição mostra os impactos das grandes obras durante a ditadura

Repro­dução: © Rove­na Rosa/Agência Brasil

Mostra fica em cartaz até 30 de junho no Centro MariAntonia da USP


Publicado em 21/03/2024 — 08:00 Por Elaine Patricia Cruz – Repórter da Agência Brasil — São Paulo

ouvir:

A exposição Pais­agem e Poder: con­struções do Brasil na ditadu­ra, aber­ta na noite de terça-feira (19), no históri­co Cen­tro MariAnto­nia da Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP), procu­ra refle­tir sobre as trans­for­mações ocor­ri­das no Brasil nos anos da ditadu­ra civ­il-mil­i­tar. Com uma vas­ta doc­u­men­tação de época e mate­r­i­al audio­vi­su­al, exposição mostra as con­tradições das grandes obras no perío­do e seus impactos soci­ais e ambi­en­tais. A curado­ria é dos arquite­tos Paula Dedec­ca, Vic­tor Próspero, João Fiammenghi, Mag­a­ly Pul­hez e José Lira. Mostra fica em car­taz até o dia 30 de jun­ho.

Nos 21 anos de ditadu­ra civ­il-mil­i­tar, o Brasil se trans­for­mou pro­fun­da­mente com a con­strução de con­jun­tos res­i­den­ci­ais, estradas, bar­ra­gens, viadu­tos, grandes hidrelétri­c­as e avenidas. Mas foi tam­bém nesse perío­do que os recur­sos nat­u­rais foram ampla­mente explo­rados, pré­dios e lugares históri­cos foram removi­dos ou destruí­dos, e em que as desigual­dades soci­ais foram expandi­das.

Em entre­vista à Agên­cia Brasil, o curador Vic­tor Próspero, que acabou de defend­er seu doutora­do na Fac­ul­dade de Arquite­tu­ra da USP, expli­ca que essas obras, emb­o­ra ten­ham sido pro­je­to de desen­volvi­men­to do país, guardam uma face con­tra­ditória, porque tam­bém retratam uma mod­ern­iza­ção con­ser­vado­ra e autoritária.

São Paulo (SP), 19/03/2024 - Exposição Paisagem e Poder: construções do Brasil na ditadura, com curadoria de Paula Dedecca, Victor Próspero, João Fiammenghi, Magaly Pulhez e José Lira, no Centro Maria Antonia da Unversidade de São Paulo - USP, em Vila Buarque. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Repro­dução: Exposição Pais­agem e Poder: con­struções do Brasil na ditadu­ra, no Cen­tro Maria Anto­nia da Uni­ver­si­dade de São Paulo — Foto: Rove­na Rosa/Agência Brasil

“Essa mod­ern­iza­ção con­ser­vado­ra foi dire­ta­mente lig­a­da com a repressão. Não existe mila­gre econômi­co sem o rebaix­a­m­en­to dos salários e sem a inter­venção dos sindi­catos. Várias refor­mas estru­tu­rais deixaram os tra­bal­hadores um pouco mais con­tro­la­dos, como a repressão e a lei de greves, por exem­p­lo, que via­bi­lizaram uma cer­ta for­ma de mod­ern­iza­ção sem freios, sem oposição”, disse.

“Esse mila­gre [econômi­co] é basea­do em números, como em um cresci­men­to do PIB [Pro­du­to Inter­no Bru­to, a soma de riquezas do país] sem­pre aci­ma de 11%, por exem­p­lo, mas que, na ver­dade, pres­supõe um con­ge­la­men­to do salário mín­i­mo e o con­t­role dos sindi­catos e da oposição. É um tipo de desen­volvi­men­to econômi­co sem reba­ti­men­to no desen­volvi­men­to social. É claro que tem um aumen­to do emprego, mas geral­mente esse emprego está rela­ciona­do à explo­ração da mão de obra na con­strução civ­il”, avalia Próspero.

Um dos exem­p­los dessa con­tradição do perío­do, segun­do o curador, é a con­strução da Usi­na Hidrelétri­ca de Itaipu. Duas fotos apre­sen­tadas na exposição, colo­cadas lado a lado, ilus­tram essa con­tradição. Uma foto mostra a pop­u­lação vis­i­tan­do a usi­na durante a sua inau­gu­ração e a out­ra apre­sen­ta a usi­na vista de longe, em con­strução. “Essa rep­re­sen­tação do momen­to de inau­gu­ração mostra como essas grandes obras eram uma peça de pro­pa­gan­da impor­tante para a ditadu­ra. Já a out­ra imagem mostra Itaipu em obras e o grau de vio­lên­cia de trans­for­mação do espaço daque­la pais­agem. Ao lado dessa imagem, colo­camos uma reportagem que desta­ca o Salto das Sete Quedas, que era um pon­to turís­ti­co, uma pais­agem recon­heci­da, e que dava cer­ta iden­ti­dade para a pop­u­lação daque­la região, e que foi inun­da­da para faz­er a repre­sa”.

Eixos

A exposição con­ta com diver­sos reg­istros audio­vi­suais da época, como reporta­gens, fotografias, filmes, desen­hos e dia­pos­i­tivos, além de doc­u­men­tos e cader­nos téc­ni­cos. Tam­bém mostra que críti­cas já exis­ti­am naque­le perío­do, apre­sen­tan­do livros que con­tes­tavam o desen­volvi­men­to explo­ratório e não igual­itário desse mod­e­lo desen­volvi­men­tista.

Todos ess­es reg­istros foram agru­pa­dos em cin­co eixos prin­ci­pais. O primeiro tra­ta sobre a urban­iza­ção e o plane­ja­men­to do ter­ritório. Esse núcleo mostra que o incen­ti­vo ao desen­volvi­men­to nos chama­dos “vazios demográ­fi­cos”, com a cri­ação da Rodovia Transamazôni­ca e do Ban­co da Amazô­nia, por exem­p­lo, tam­bém teve uma out­ra face, mar­ca­da pela vio­lên­cia e assim­i­lação dos povos orig­inários e pela dev­as­tação ambi­en­tal.

“Muitas pop­u­lações orig­inárias foram removi­das e seus mod­os de vida foram trans­for­ma­dos. Foi um tipo de pro­dução do espaço muito vio­len­ta”, desta­cou o curador João Fiammenghi.

“Essa explo­ração da Amazô­nia teve desen­ho, teve pro­je­to e teve pesquisa. Ou seja, não foi uma destru­ição caóti­ca, como a gente pen­sa. Era tudo parte de um plano, de um pro­je­to de país, de uma ide­olo­gia do regime mil­i­tar, de segu­rança nacional e de ocu­pação dos vazios demográ­fi­cos, que não eram vazios, tin­ham pes­soas, tin­ham pequenos agricul­tores e indí­ge­nas viven­do lá. Quise­mos mostrar nesse eixo como que essa pro­dução do espaço vio­len­ta foi muito plane­ja­da”, expli­cou.

O segun­do núcleo tra­ta sobre o extra­tivis­mo e sua relação com a pro­dução de com­po­nentes para a indús­tria da con­strução civ­il. “E, com isso, a gente não pode deixar de falar do tra­bal­ho, da indus­tri­al­iza­ção e do sindi­cal­is­mo. Então, esse é um núcleo mais lig­a­do com tra­bal­ho e pro­dução”, desta­ca Fiammenghi.

Em relação à questão tra­bal­hista, por exem­p­lo, a exposição desta­ca que o pro­je­to desen­volvi­men­tista da ditadu­ra envolveu um alto número de aci­dentes e mortes tra­bal­his­tas.

O ter­ceiro eixo, por sua vez, desta­ca o ter­ritório e a inte­gração nacional, tratan­do sobre a cir­cu­lação entre as cidades, onde são apre­sen­tadas as rodovias, as grandes avenidas e as obras de con­strução de metrô. Há tam­bém um eixo todo ded­i­ca­do à con­strução da cidade de São Paulo, que apre­sen­ta obras como o Min­hocão e o Anhem­bi.

O últi­mo núcleo dis­cute a questão da mora­dia e con­ta um pouco sobre a ver­ti­cal­iza­ção dos espaços urbanos e a cri­ação do Ban­co Nacional de Habitação (BNH). “Quan­do a gente aden­tra os anos 60 e, sobre­tu­do, após o golpe civ­il-mil­i­tar, a gente tem o desen­ho e a pro­moção de um grande plano habita­cional naque­le momen­to, que está lig­a­do à imple­men­tação de um Sis­tema Finan­ceiro de Habitação e ao Ban­co Nacional de Habitação. O ban­co se estru­tu­ra jus­ta­mente nes­sa per­spec­ti­va de enfrenta­men­to do déficit habita­cional, mas com um dis­cur­so, já des­de então, lig­a­do a essa espé­cie de con­t­role das mas­sas e das pop­u­lações morado­ras dess­es ter­ritórios”, expli­cou a arquite­ta, urban­ista e tam­bém curado­ra da mostra Mag­a­ly Pul­hez.

Cri­a­do com a pro­pos­ta de reduzir o déficit habita­cional, o BNH aca­ba, no entan­to, se trans­for­man­do em um “motor de arranque” da econo­mia. “Fomen­tan­do a con­strução habita­cional, fomen­ta-se a con­strução civ­il e, por­tan­to, se agen­cia uma série de agentes pri­va­dos, empre­sas, con­stru­toras e incor­po­rado­ras. E o que a gente vai ver, a par­tir dessa movi­men­tação toda, não é pro­pri­a­mente uma pro­dução habita­cional volta­da para as mas­sas pop­u­lares neces­si­tadas de fato, mas o ban­co fun­cio­nan­do nes­sa cadeia pro­du­ti­va da con­strução civ­il”, disse Mag­a­ly Pul­hez.

“Ape­nas 15% da pro­dução do ban­co nesse perío­do foi volta­da para atendi­men­to das pop­u­lações de baixa ren­da”, desta­cou.

A exposição tam­bém mostra out­ro grande para­doxo do perío­do. O tra­bal­hador respon­sáv­el pela con­strução dessas grandes obras desen­volvi­men­tis­tas era o mes­mo que, aos finais de sem­ana, pre­cisa­va con­stru­ir a sua mora­dia, quase sem­pre sem recur­sos sufi­cientes. “Os tra­bal­hadores que estão na própria indús­tria da con­strução civ­il con­stru­in­do essas grandes obras não têm casa”, ressalta Mag­a­ly.

Centro

No ano pas­sa­do, o Cen­tro MariAnto­nia, espaço impor­tante de luta e de resistên­cia con­tra a ditadu­ra brasileira, com­ple­tou 30 anos.

O espaço é con­heci­do, prin­ci­pal­mente, por ter sido pal­co, em out­ubro de 1968, de uma das mais impor­tantes batal­has pela democ­ra­cia na ditadu­ra mil­i­tar. Esse episó­dio ficou con­heci­do como a Batal­ha da Maria Anto­nia e envolveu estu­dantes de posições ide­ológ­i­cas opostas — os estu­dantes da USP e os estu­dantes do Macken­zie — e a polí­cia.

Nes­sa batal­ha, o pré­dio foi par­cial­mente incen­di­a­do e, em segui­da, toma­do pelo gov­er­no de São Paulo. Somente em 1993, a USP rece­beu o pré­dio de vol­ta e decid­iu cri­ar no local um espaço cul­tur­al, com exposições reg­u­lares e ded­i­cadas à memória e à arte.

“Neste ano, nós achamos que seria muito bom olhar para esse perío­do da ditadu­ra pelo ângu­lo da arquite­tu­ra, do urban­is­mo, do plane­ja­men­to, da geografia e do meio ambi­ente, ou seja, da pais­agem e do espaço físi­co brasileiro”, expli­ca José Lira, pro­fes­sor e dire­tor do Cen­tro Maria Antô­nia.

“A exposição é prin­ci­pal­mente uma mostra doc­u­men­tal. Durante a seleção dess­es doc­u­men­tos, nós procu­ramos focalizar questões que são muito pre­sentes no nos­so ter­ritório ain­da hoje, como a questão do desre­speito às pop­u­lações tradi­cionais e a questão envol­ven­do a explo­ração do meio ambi­ente. Hoje, o mun­do inteiro está sen­si­bi­liza­do pelas questões da crise ambi­en­tal e climáti­ca. E nós vemos que, naque­le momen­to [da ditadu­ra], essa era uma das coisas menos obser­vadas. A natureza era pen­sa­da como fonte ines­gotáv­el de riquezas e de recur­sos e explo­ra­da como se fos­se sub­sti­tuív­el. Hoje a gente vê que é bem o con­trário. Se a gente não con­stru­ir de maneira a per­mi­tir que a natureza se recon­strua ou se con­serve, a gente não tem futuro”, disse o dire­tor do cen­tro à Agên­cia Brasil.

Sua expec­ta­ti­va é de que a mostra pos­sa enrique­cer o debate sobre a ditadu­ra e sobre o mod­e­lo de con­strução do país. “Nós esper­amos que a exposição pos­sa ser vista por esse cidadão comum, esse habi­tante do Brasil, prin­ci­pal­mente inter­es­sa­do no seu espaço, inter­es­sa­do no ambi­ente em que ele vive, inter­es­sa­do nas suas cidades, no seu bair­ro, na sua qual­i­dade de vida, nas suas liber­dades, nos seus espaços públi­cos, para que nesse ano de 60 anos do golpe pos­sa aju­dar na autoanálise do país”.

Programação

Para­le­lo à exposição, o cen­tro preparou uma pro­gra­mação gra­tui­ta e aber­ta ao públi­co, com mesas de debates e exibições de filmes.

Out­ras infor­mações sobre a exposição e a pro­gra­mação para­lela podem ser obti­das no site do Cen­tro MariAnto­nia.

Edição: Fer­nan­do Fra­ga

LOGO AG BRASIL

Você pode Gostar de:

Hemorragia não afeta função cerebral do presidente, diz médico de Lula

Paciente encontra-se lúcido e acordado Pedro Peduzzi — Repórter da Agên­cia Brasil Pub­li­ca­do em 10/12/2024 …