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Fogo em ônibus virou modus operandi do crime no Rio, diz pesquisadora

Repro­dução: © Tomaz Silva/Agência Brasil

Nos últimos dez anos, 436 veículos foram incendiados no estado


Publicado em 15/08/2024 — 07:02 Por Francielly Barbosa*- Estagiária da Agência Brasil — Rio de Janeiro

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Eram por vol­ta de 16h30 quan­do um grupo de home­ns arma­dos car­regan­do galões de gasoli­na abor­daram um ônibus da Auto Viação Jabour em direção ao bair­ro de Paciên­cia, na Zona Norte do Rio de Janeiro. “Ali é uma área muito perigosa, de milí­cia, con­stan­te­mente com assaltos”, con­ta o motorista João* à Agên­cia Brasil. Há 20 anos na profis­são, João rela­ta que já pas­sou por assaltos e agressões durante ataques de gru­pos crim­i­nosos, mas aque­la era a primeira vez que enfrenta­va um caso de incên­dio.

Naque­la segun­da-feira, 23 de out­ubro de 2023, Matheus da Sil­va Rezende, con­heci­do como Faustão, sobrin­ho do mili­ciano Luís Antônio da Sil­va Bra­ga, o Zin­ho, foi mor­to durante um con­fron­to com a Polí­cia Civ­il na comu­nidade de Três Pontes, em San­ta Cruz. Em represália, 35 ônibus e um trem foram queima­dos na Zona Oeste, sendo a maio­r­ia deles (20) da fro­ta munic­i­pal, de acor­do com infor­mações do Sindi­ca­to das Empre­sas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro (Rio Ônibus). O veícu­lo que João diri­gia naque­la tarde esta­va entre um dos incen­di­a­dos.

“Me pegaram e me bat­er­am, man­daram eu e os pas­sageiros descer­mos do ônibus e botaram fogo no cole­ti­vo no qual eu esta­va tra­bal­han­do nesse dia. Tam­bém botaram fogo nos car­ros de pas­seio mais a frente”, relem­bra. “Tomei dois tapões no meio da cara. E não só eu, os pas­sageiros tam­bém apan­haram na hora de descer. Aí meter­am gasoli­na e man­daram a gente sen­tar no chão, ali na altura de Paciên­cia, próx­i­mo à estação de trem”.

Ônibus são incendiados no Rio durante protesto em dia nacional de paralisações
Repro­dução: Ônibus são incen­di­a­dos no Rio durante protesto em dia nacional de par­al­isações — Vladimir Platonow

Histórico de incêndios

Coor­de­nado­ra do Grupo de Estu­dos dos Novos Ile­gal­is­mos da Uni­ver­si­dade Fed­er­al Flu­mi­nense (GENI-UFF), Car­oli­na Gril­lo expli­ca que o ato de incen­di­ar ônibus pas­sou de uma for­ma de man­i­fes­tar insat­is­fação com o poder públi­co para um meio de demon­strar e reafir­mar poder por parte de gru­pos arma­dos. “Algo que antes era uma práti­ca comum de demon­strar insat­is­fação, bas­tante espon­tânea por parte da pop­u­lação indig­na­da com algo que tivesse ocor­ri­do, foi incor­po­ra­do ao modus operan­di de chefes locais de gru­pos arma­dos como for­ma de demon­stração de poder e de ameaçar o poder públi­co por meio da inter­rupção da ordem”, anal­isa.

Con­forme dados disponi­bi­liza­dos pelo Sindi­ca­to das Empre­sas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro, 32 veícu­los foram queima­dos de agos­to do ano ante­ri­or a jul­ho de 2024, geran­do um pre­juí­zo de aprox­i­mada­mente R$ 22,9 mil­hões. Out­ros 2.516 foram van­dal­iza­dos e 135 sequestra­dos para serem uti­liza­dos como bar­ri­cadas. Quan­to aos veícu­los sequestra­dos, os bair­ros mais afe­ta­dos foram Vila Aliança, Cor­dovil e Ramos, já as lin­has mais impactadas foram 926 (Senador Camará x Pen­ha), 731 (Cam­po Grande x Marechal Her­mes), 765 (Men­dan­ha x Ter­mi­nal Deodoro), 685 (Ira­já x Méi­er) e 335 (Cor­dovil x Tiradentes).

Nos últi­mos dez anos, 423 veícu­los foram incen­di­a­dos crim­i­nosa­mente no esta­do, sendo 236 ape­nas na cap­i­tal, de acor­do com dados da Fed­er­ação das Empre­sas de Mobil­i­dade do Esta­do do Rio de Janeiro (Semove). O segun­do local com maior número de ocor­rên­cias foi Duque de Cax­i­as, com 53 casos, mas tam­bém há reg­istros de incên­dios fora da Região Met­ro­pol­i­tana, como em Angra dos Reis, Macaé, Cabo Frio, Resende e Paraty. “O municí­pio do Rio de Janeiro rep­re­sen­ta mais da metade dos casos de 2014 a 2024. Este ano já foram 12 — con­sideran­do o total de veícu­los, além dos munic­i­pais —, enquan­to no ano pas­sa­do, por con­ta dos 35 incen­di­a­dos em out­ubro, foram 58”, avalia à Agên­cia Brasil o ger­ente de Plane­ja­men­to e Con­t­role da Semove, Guil­herme Wil­son.

“Onde temos mais reg­istros de ônibus incen­di­a­dos em protestos é na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Tem out­ros lugares que sofrem muito com van­dal­is­mo, como ban­co ras­ga­do ou rou­ba­do e janelas que­bradas, como as regiões do Jacaré, de Man­guin­hos e da Maré, mas não são de incen­di­ar”, traz o dire­tor de Comu­ni­cação e Relações Insti­tu­cionais da Rio Ônibus, Paulo Valente. “Ness­es locais, há um con­fli­to maior entre as autori­dades de segu­rança com os traf­i­cantes ou os mili­cianos”, acres­cen­ta.

Já para João, os bair­ros de Cos­mos, Guarat­i­ba, Paciên­cia e San­ta Cruz são regiões de con­stante peri­go, com pouco ou nen­hum poli­ci­a­men­to. “É com­pli­ca­do lá, poli­ci­a­men­to mes­mo é zero, ninguém vê viatu­ra”. Em out­ubro, além do ônibus que diri­gia, out­ros nove veícu­los da Auto Viação Jabour foram incen­di­a­dos. “Um cole­ga de tra­bal­ho teve queimaduras no cor­po, parte do braço foi queima­da. Até pedi para o meu supe­ri­or me tro­car de lin­ha, já vin­ha pedin­do isso a ele, e ago­ra, graças a Deus, estou tra­bal­han­do em Ban­gu. Não estou mais naque­la área, não tin­ha mais condição de tra­bal­har lá depois dessa con­fusão”, con­ta.

Subnotificação de ocorrências


Repro­dução: Ônibus foram queima­dos em protesto. Marce­lo Camargo/Agência Brasil

Ape­sar dos números lev­an­ta­dos pela Rio Ônibus e pela Semove, a pro­fes­so­ra da UFF apon­ta para uma sub­no­ti­fi­cação das ocor­rên­cias reg­istradas ofi­cial­mente pela Sec­re­taria de Esta­do de Polí­cia Civ­il do Rio de Janeiro (SEPOL). Por meio de pedi­do de aces­so à infor­mação, a SEPOL disse que 33 incên­dios crim­i­nosos con­tra ônibus foram reg­istra­dos em del­e­ga­cias da sec­re­taria nos últi­mos cin­co anos, sendo 15 em 2023, 20 a menos que os noti­ci­a­dos em out­ubro de 2023. Ain­da con­forme os dados da sec­re­taria, 11 foram queima­dos em 2019, um em 2020, um em 2021 e cin­co em 2022.

“Há um desin­ter­esse em reg­is­trar dev­i­da­mente os casos pelo fato de não haver uma cat­e­go­ria admin­is­tra­ti­va que gera uma estatís­ti­ca própria nos estu­dos de segu­rança públi­ca. Pelo que parece pela sub­no­ti­fi­cação evi­dente, porque vemos na impren­sa que esse número (da SEPOL) já foi super­a­do, isso provavel­mente tem a ver com as autori­dades públi­cas não con­sid­er­arem esse um tema rel­e­vante o sufi­ciente para mere­cer uma cat­e­go­ria admin­is­tra­ti­va própria que vai ger­ar um dado especí­fi­co”, descreve Gril­lo.

Dos 33 casos infor­ma­dos, ape­nas 25 apre­sen­tavam infor­mações sobre os horários em que acon­te­ce­r­am: um entre meia-noite e 6h, qua­tro entre 6h e 12h, 14 entre 12h e 18h e seis entre 18h e meia-noite. O perío­do próx­i­mo às 18h, segun­do a pro­fes­so­ra, é prefer­ív­el para os ataques aos trans­portes públi­cos por ser o horário em que as pes­soas estão retor­nan­do do tra­bal­ho, pos­si­bil­i­tan­do maior vis­i­bil­i­dade. “Ao se incen­di­ar um ônibus, pre­tende-se que essa ação ten­ha uma vis­i­bil­i­dade que, de algu­ma for­ma, com­pense os riscos iner­entes a essa práti­ca. O incên­dio de um ônibus no horário de vol­ta do tra­bal­ho tem uma vis­i­bil­i­dade maior porque pro­duz um engar­rafa­men­to na cidade e impede as pes­soas de retornarem para casa. Isso gera uma cober­tu­ra da impren­sa, crian­do vis­i­bil­i­dade para a insat­is­fação que quer ser demon­stra­da”.


Repro­dução: Ônibus foram queima­dos em protesto. Marce­lo Camargo/Agência Brasil

Impactos causados

Para dire­tor de Comu­ni­cação e Relações Insti­tu­cionais da Rio Ônibus, o primeiro efeito dos atos de incên­dio e van­dal­iza­ção dos ônibus é cercear o dire­ito de ir e vir dos moradores das regiões afe­tadas. “Essas lin­has não oper­am somente naque­le local, elas cir­cu­lam por out­ras regiões. Quan­do uma delas para de rodar, toda pop­u­lação usuária desse ônibus, inde­pen­dente de morar na comu­nidade ou não, é prej­u­di­ca­da”, argu­men­ta. Hoje, de acor­do com a Rio Ônibus, as empre­sas lev­am em média 180 dias para repor um veícu­lo destruí­do, con­sideran­do que pos­suam recur­sos sufi­cientes para realizar a sub­sti­tu­ição. “É necessário com­prar um novo ônibus para sub­sti­tuir aque­le que foi incen­di­a­do, e o ônibus não é como o car­ro de pas­seio, que está disponív­el na con­ces­sionária, é pre­ciso man­dar fab­ricar, para vir com todas as especi­fi­cações. Cada ônibus queima­do é um veícu­lo a menos servin­do a pop­u­lação do Rio de Janeiro por seis meses em média”.

Há ain­da a exper­iên­cia traumáti­ca viven­ci­a­da por pas­sageiros e motoris­tas, como argu­men­ta a pesquisado­ra do GENI. Como comen­ta Gril­lo, os motoris­tas já são sub­meti­dos a diver­sas situ­ações de estresse no tra­bal­ho, como assaltos, engar­rafa­men­tos, cobranças em relação aos horários que devem cumprir, sobre­car­ga de funções — ao terem que atu­ar como con­du­tores e cobradores ao mes­mo tem­po — e o des­gaste emo­cional por terem que negar o aces­so ao ônibus a pes­soas que ten­tam entrar no veícu­lo sem pagar a pas­sagem. “Ser ameaça­do, seja por uma tur­ma de pes­soas ou por home­ns arma­dos, é algo bas­tante assus­ta­dor para o cidadão que só quer sair do seu tra­bal­ho e chegar em casa para poder des­cansar”.

Após o dia de ataques que afe­tou a cir­cu­lação pela cap­i­tal car­i­o­ca, além de impactar o fun­ciona­men­to de comér­cios e esco­las, João rela­ta que pas­sou por noites sem con­seguir dormir e chegou a pedir demis­são por con­ta do trau­ma. “Eu esta­va com medo de tra­bal­har. Foram várias noites sem dormir, eu fecha­va o olho e fica­va pen­san­do naque­les caras com galões de gasoli­na na mão. Foi um caos, um pâni­co total”.

Dados do Sindi­ca­to dos Rodoviários do Rio de Janeiro apon­tam que de 2022 a 2024, entre 200 e 250 motoris­tas aban­donaram a profis­são após situ­ações de crimes e agressões nos trans­portes cole­tivos, incluin­do casos de incên­dios. No últi­mo ano, foram em torno de 130 a 140. Segun­do o vice-pres­i­dente José Sacra­men­to de San­tana, o sindi­ca­to não con­ta com um número exa­to porque nem todos os casos doc­u­men­ta­dos pelas empre­sas chegam ao órgão. “O cara aban­dona a profis­são, se muda de esta­do e não se comu­ni­ca com o sindi­ca­to. Pedem demis­são e vão emb­o­ra sem comu­nicar nada, sem diz­er um moti­vo”, afir­ma. “Hoje, esta­mos entregues no Rio de Janeiro à milí­cia, a esse poder para­le­lo que dom­i­na a cidade. Fal­tam medi­das de segu­rança não ape­nas aos motoris­tas de ônibus, mas à pop­u­lação tam­bém”, declara San­tana.

*Nome fic­tí­cio escol­hi­do para preser­var a segu­rança do entre­vis­ta­do

*Estag­iária sob super­visão de Viní­cius Lis­boa

 

Edição: Valéria Aguiar

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