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Gilmar Mendes: “Lava Jato terminou como uma organização criminosa”

Repro­dução: © Val­ter Campanato/Agência Brasil

Nos 10 anos do início da operação, ministro diz que saldo foi negativo


Publicado em 17/03/2024 — 10:02 Por Sabrina Craide — Repórter da Agência Brasil* — Brasília

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Em seu gabi­nete, na cober­tu­ra do pré­dio anexo do Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF), o min­istro Gilmar Mendes despacha cer­ca­do de fotos com jogadores e per­son­al­i­dades do fute­bol brasileiro. Os livros jurídi­cos divi­dem espaço nas pare­des com bolas, troféus, medal­has e dezenas de camise­tas de times auto­grafadas. “Pelezista” declar­a­do, o min­istro tam­bém osten­ta diver­sos quadros com fotos tiradas ao lado do eter­no Camisa 10 da seleção brasileira.

Decano do STF, com 22 anos de toga, Mendes rece­beu as equipes da Agên­cia Brasil e da TV Brasil nesse espaço depois das 20h de uma terça-feira. Ain­da ter­mi­na­va seu jan­tar, na mes­ma mesa de reuniões usa­da para o tra­bal­ho, mas não se per­tur­bou ao perce­ber a entra­da de jor­nal­is­tas e da equipe de imagem. “Tudo bem, como vai?”, cumpri­men­tou, antes de retomar a refeição.

Brasília (DF), 17/03/2024, O ministro do STF, Gilmar Mendes, durante entrevista exclusiva em seu gabinete. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Repro­dução: O min­istro Gilmar Mendes durante entre­vista exclu­si­va em seu gabi­nete — Val­ter Campanato/Agência Brasil

Pouco aves­so a sor­risos, como de cos­tume, retirou-se para uma sala anexa após o jan­tar para, min­u­tos depois, retornar para a entre­vista. Sen­tou-se cal­ma­mente na cadeira de seu gabi­nete, já sabedor do tema da con­ver­sa.

A história acabou por lhe dar razão, após ser crit­i­ca­do nos primeiros anos de Oper­ação Lava Jato. E foi assim que dis­cor­reu sobre o tema, com a tran­quil­i­dade de quem não se per­tur­bou diante dos mitos e heróis sem capa surgi­dos durante esse perío­do. Essas mes­mas fig­uras seri­am destron­adas com o pas­sar do tem­po.

O iní­cio da oper­ação com­ple­ta dez anos neste domin­go, dia 17 de março e, para o min­istro, o bal­anço é “mar­cada­mente neg­a­ti­vo”. Em sua opinião, a úni­ca lição apren­di­da pelo país foi a de não com­bat­er o crime prat­i­can­do out­ros crimes. Gilmar Mendes afir­ma ter sido ele a primeira voz a se lev­an­tar con­tra os abu­sos da oper­ação, como as prisões alon­gadas em Curiti­ba e as delações incon­sis­tentes.

O min­istro esta­b­elece uma relação con­tra­ditória entre a Lava Jato e as ativi­dades que a oper­ação bus­ca­va com­bat­er.

“Na ver­dade, a Lava Jato ter­mi­nou como uma ver­dadeira orga­ni­za­ção crim­i­nosa, ela envolveu-se em uma série de abu­sos de autori­dades, desvio de din­heiro, vio­lação de uma série de princí­pios e tudo isso é de todo lamen­táv­el”.

Durante a oper­ação, Gilmar Mendes foi figu­ra cen­tral em decisões impor­tantes para os rumos da Lava Jato. Entre elas, a que declar­ou a incom­petên­cia da 13ª Vara da Justiça Fed­er­al de Curiti­ba e anu­lou as ações penais con­tra Luiz Iná­cio Lula da Sil­va. O mag­istra­do tam­bém votou para con­sid­er­ar o ex-juiz Ser­gio Moro par­cial em proces­sos da oper­ação.

Con­fi­ra os prin­ci­pais tre­chos da entre­vista:

Agên­cia Brasil: Min­istro, a Oper­ação Lava Jato com­ple­ta dez anos no dia 17 de março, o sen­hor acha que a Lava Jato foi boa ou ruim para o Brasil? Qual é o sal­do?
Gilmar Mendes: Eu acho que a Lava Jato fez um mal enorme às insti­tu­ições. Bem inspi­ra­da talvez, no iní­cio, ela acabou pro­duzin­do uma série de dis­torções no sis­tema jurídi­co políti­co. Por isso, o meu bal­anço é mar­cada­mente neg­a­ti­vo. Mas é claro que nós apren­demos da história, inclu­sive dos fatos neg­a­tivos na vida dos povos, na vida das nações. Então, alguém sem­pre poderá diz­er algo pos­i­ti­vo. Nós apren­demos como não faz­er deter­mi­nadas coisas. E, nesse sen­ti­do, se pode até extrair aspec­tos pos­i­tivos. O que a gente apren­deu? Eu diria em uma frase: não se com­bate o crime come­tendo crimes. Na ver­dade, a Lava Jato ter­mi­nou como uma ver­dadeira orga­ni­za­ção crim­i­nosa, ela envolveu-se em uma série de abu­sos de autori­dades, desvio de din­heiro, vio­lação de uma série de princí­pios e tudo isso é de todo lamen­táv­el.

Agên­cia Brasil: Hipoteti­ca­mente: temos uma sus­pei­ta de cor­rupção no Brasil. Como agir cor­re­ta­mente, como pro­ced­er?
Mendes: A primeira coisa é não inven­tar a roda, é faz­er aqui­lo que se tem que faz­er, deixar que as autori­dades poli­ci­ais façam as inves­ti­gações, que o Min­istério Públi­co faça o seu acom­pan­hamen­to. Hoje, o país dis­põe de uma série de instru­men­tos para isso. E não imag­i­nar que nós vamos ter heróis voadores, que vamos ter pes­soas que resolvem com um mila­gre a questão da cor­rupção no país. E faz­er as coisas com o dev­i­do proces­so legal. Acho que isso é extrema­mente impor­tante. Inves­ti­gações espetac­u­lares, toni­tru­antes, a gente tem aí aos mon­tões e depois nós temos ape­nas um resto de lixo em anu­lações, em não há aproveita­men­to de provas, como acabou ocor­ren­do aqui na Lava Jato. Acho que o que a Lava Jato vai ensi­nar ao sis­tema jurídi­co proces­su­al brasileiro é como não se faz­er deter­mi­nadas coisas e ensi­nar que nós deve­mos ser extrema­mente cautelosos em relação a essas questões, aos pro­ced­i­men­tos jurídi­cos, para não pro­duzir­mos situ­ações estapafúr­dias.

Agên­cia Brasil: A punição às empre­sas e às pes­soas foi além da con­ta?
Mendes: Tudo o que é exces­si­vo e tudo que é inde­v­i­do, cer­ta­mente, é além da con­ta. Nós vamos ter que dis­cu­tir isso ago­ra. Cer­ta­mente, muitos vão diz­er: ‘ah, tem réus con­fes­sos que estão sendo isen­ta­dos de cul­pa por con­ta de fal­has proces­suais’, mas é assim no Esta­do de Dire­ito em qual­quer lugar. Então, não há nen­hu­ma sur­pre­sa em relação a isso e vamos ter que faz­er tam­bém um exame caso a caso, isso não se resolve em um juí­zo com­ple­to, dire­to. E é isso que nós esta­mos fazen­do e temos feito, tive­mos o proces­so do Lula e out­ros. Então, me parece que nós fomos de uma eufo­ria quase alcoóli­ca a uma depressão, e os dois esta­dos não são bons. É impor­tante que nós este­jamos aten­tos para faz­er­mos o tra­bal­ho de maneira cor­re­ta e acho que é isso que nós temos que incul­car nos agentes poli­ci­ais, nos agentes de Recei­ta, nos agentes inves­ti­gadores todos, do Min­istério Públi­co e os próprios juízes.

Agên­cia Brasil: Muito antes da Vaza Jato, o sen­hor já dizia que o STF teria um encon­tro mar­ca­do com a Oper­ação Lava Jato, o que que havia? O que o sen­hor ouvia nas audiên­cias com os advo­ga­dos, qual era a per­cepção na época?
Mendes: Já se disse que o prob­le­ma do dia­bo não é que ele seja o dia­bo, né? É que ele é vel­ho, ele é expe­ri­ente. Então, a gente aprende a faz­er essas leituras e col­he tam­bém exper­iên­cias. A primeira coisa que eu vi, acho que foi em 2015, foram as prisões alon­gadas de Curiti­ba. E, claro, os advo­ga­dos pas­saram a diz­er que as prisões alon­gadas eram uti­lizadas como uma for­ma de tor­tu­ra para obter delações. E delações que muitas vezes se mostraram incon­sis­tentes. Delações que muitas vezes se trans­for­maram em acor­dos de leniên­cia, por isso os ques­tion­a­men­tos de ago­ra. Então, nós tive­mos toda a essa situ­ação e eu fui talvez a primeira voz a lev­an­tar con­tra essa situ­ação.

E depois gan­hei a con­vicção de que não se trata­va ape­nas de uma irreg­u­lar­i­dade pro­ced­i­men­tal ou proces­su­al e que na ver­dade nós está­va­mos diante de um movi­men­to políti­co, como depois se rev­el­ou no con­tex­to ger­al: [Ser­gio] Moro [virou] o min­istro da Justiça de Bol­sonaro, Deltan Dal­lagnol, um ativista políti­co. E a gente tam­bém desco­briu, isso é uma coisa bas­tante pecu­liar, que o vol­ume de din­heiro com o qual eles se envolvi­am tam­bém os estim­u­lou a ter suas próprias empre­sas ou par­tic­i­par dis­so. Aí surge a tal Fun­dação Dal­lagnol lá em Curiti­ba. Aqui em Brasília surge tam­bém algo semel­hante com a tal Oper­ação Green­field. A gente desco­bre que ess­es nos­sos ‘com­bat­entes da cor­rupção’ gostavam muito de din­heiro, o que é uma con­tradição nos próprios ter­mos. O min­istro Salomão [Luis Felipe Salomão, cor­rege­dor Nacional de Justiça] está encer­ran­do um tra­bal­ho sobre essa questão e diz que há uma quan­tia per­to de R$ 1 bil­hão que não se sabe para onde foi, do din­heiro que esta­va deposi­ta­do na vara em Curiti­ba. Então, isso pre­cisa ser esclare­ci­do.

Agên­cia Brasil: O sen­hor já disse ante­ri­or­mente que todo o sis­tema políti­co e o gov­er­no na época da Lava Jato foram ingên­u­os. Como o sen­hor avalia o com­por­ta­men­to do STF nesse perío­do?
Mendes: A Oper­ação Lava Jato não era uma oper­ação pura­mente judi­cial, poli­cial ou de inves­ti­gação admin­is­tra­ti­va, eles fiz­er­am uma força-tare­fa e lograram um apoio públi­co muito grande, um apoio de mídia. E eu ten­ho a impressão que esse apoio de mídia teve tam­bém um efeito inibitório sobre o Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al. Eu acom­pan­hei os primeiros habeas cor­pus des­de 2014, que começaram a chegar, o min­istro Teori  [min­istro Teori Zavasc­ki, rela­tor da Lava Jato no STF] era o min­istro rela­tor e havia já essa força não só de Moro e de sua equipe, mas tam­bém da Procu­rado­ria-Ger­al, Jan­ot [Rodri­go Jan­ot, então PGR]. E é capaz que o Tri­bunal naque­le momen­to não ten­ha tido a leitu­ra dev­i­da de todas as questões envolvi­das do pon­to de vista políti­co, e isso demor­ou a se con­sol­i­dar. Tan­to é que quan­do eu mes­mo assumo um papel de mais críti­co do sis­tema fico tam­bém um pouco iso­la­do e a mídia toda dizia: “essa decisão parece con­trari­ar a Lava Jato”, como se a gente estivesse con­trar­ian­do Roma ou falan­do mal do papa. Então, havia um domínio em relação a isso. E hou­ve até oper­ações que foram feitas nesse espíri­to, ain­da que não con­duzi­das pela Lava Jato, por exem­p­lo, aque­la oper­ação do Joes­ley [Batista, ex-pres­i­dente da JBS] vis-à-vis ao pres­i­dente da Repúbli­ca Michel Temer em que, obvi­a­mente, o que o pres­i­dente disse foi uma coisa, o que foi divul­ga­do foi out­ra. E isso foi divul­ga­do pela Globo, por­tan­to em uma com­bi­nação cer­ta­mente do procu­rador-ger­al Jan­ot com a direção da Globo ou setores de man­do na insti­tu­ição. Depois se viu que aqui­lo era fal­so.

Agên­cia Brasil: Min­istro, se a Vaza Jato não tivesse acon­te­ci­do, qual teria sido des­fe­cho da Oper­ação Lava Jato, na sua avali­ação?
Mendes: Eu ten­ho impressão, por exem­p­lo, que no meu proces­so, que foi talvez um turn­ing point nes­sa questão, que foi o proces­so do pres­i­dente Lula sobre a sus­peição, eu até disse isso no voto: nós tín­hamos uma per­spec­ti­va já de afir­mação da sus­peição com os ele­men­tos exis­tentes nos autos. Acho que teríamos chega­do ao mes­mo resul­ta­do, mas é inegáv­el que a Vaza Jato mostrou que o rei esta­va nu. Mostrou como eram feitos os pastéis e como eles eram malfeitos. Então, tudo aqui­lo que nós supún­hamos ou intuíamos foi con­fir­ma­do.

Agên­cia Brasil: Hou­ve desvio, mas tam­bém hou­ve muito pre­juí­zo para dezenas de empre­sas que foram prej­u­di­cadas. Como com­bat­er a cor­rupção sem a der­ro­ca­da da econo­mia?
Mendes: Eu acho que esse tam­bém é um apren­diza­do. Naque­le momen­to, me parece que o Brasil esta­va viven­do uma fase muito pecu­liar: o gov­er­no Dil­ma débil, fra­co, vem o gov­er­no Temer tam­bém acu­sa­do, envolto naque­las mes­mas cir­cun­stân­cias. O sis­tema políti­co esta­va no chão, e os procu­radores e o próprio Moro eram como se déspotas esclare­ci­dos, ou nem tan­to, podi­am faz­er o que quisessem. Acho que é um mod­e­lo de difí­cil reapli­cação hoje. Então, difi­cil­mente todas essas cir­cun­stân­cias históri­c­as vão se con­sol­i­dar para uma tal situ­ação. Mas eu me per­gun­to se não é o caso de, de fato, nós mudar­mos a leg­is­lação e even­tual­mente sep­a­rar­mos a empre­sa e pen­sar­mos inclu­sive em mod­e­los de dire­ito com­para­do para even­tual­mente punir­mos os agentes empre­sari­ais e sep­a­ramos a empre­sa. Há empre­sas que empre­gavam 150 mil pes­soas hoje empregam 14, empre­sas que foram destruí­das. E há tam­bém todo um dis­cur­so de que isso tam­bém se fez aten­den­do a inter­ess­es inter­na­cionais. E nem isso a gente pode negar peremp­to­ri­a­mente.

*Colaborou Marce­lo Brandão

Edição: Juliana Andrade

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