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Há 120 anos nascia Nise da Silveira, a “psiquiatra rebelde”

Médica inspirou o movimento da reforma psiquiátrica no Brasil

Tâmara Freire — Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 15/02/2025 — 10:15
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro (RJ) 13/02/2025 – A exposição Ocupação Nise da Silveira, no anexo do Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Ninguém hoje, no Brasil, que se inter­esse pelas questões lig­adas à expressão artís­ti­ca ou à psiquia­tria, ou a ambas, pode igno­rar a con­tribuição de Nise da Sil­veira. Con­tribuição essa que é mar­ca­da, de um lado, pela cor­agem int­elec­tu­al de romper com o esta­b­ele­ci­do e, de out­ro, pela iden­ti­fi­cação pro­fun­da com o sofri­men­to do seu semel­hante.”

As palavras escritas por Fer­reira Gullar, em 1996, já eram vál­i­das 50 anos antes e per­manecem ver­dadeiras até hoje. Assim ele começa seu livro Nise da Sil­veira — Uma Psiquia­tra Rebelde, biografia da médi­ca que rev­olu­cio­nou o trata­men­to psiquiátri­co, nasci­da em Maceió, no dia 15 de fevereiro de 1905, há exatos 120 anos.

A “cor­agem” men­ciona­da por Gullar se rev­el­ou logo cedo, quan­do ela decid­iu cur­sar med­i­c­i­na em 1921, ape­sar de se sen­tir mal ao ver sangue e de ser a úni­ca mul­her entre mais de 150 home­ns na sua tur­ma na Fac­ul­dade de Med­i­c­i­na da Bahia. Nise tin­ha ape­nas 15 anos. Um ano depois de con­cluir o cur­so, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se espe­cial­i­zou em neu­rolo­gia e psiquia­tria e pas­sou a tra­bal­har na unidade públi­ca de saúde men­tal então denom­i­na­da Assistên­cia a Psi­co­patas e Pro­fi­lax­ia Men­tal. Mas, assim como muitos int­elec­tu­ais, ela foi pre­sa pelo gov­er­no Var­gas acu­sa­da de envolvi­men­to com a causa comu­nista e foi afas­ta­da do serviço públi­co até 1944.

Rio de Janeiro (RJ) 13/02/2025 – A exposição Ocupação Nise da Silveira, no anexo do Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Exposição Ocu­pação Nise da Sil­veira, no anexo do Museu de Ima­gens do Incon­sciente — Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

A parte mais con­heci­da de sua tra­jetória começa neste mes­mo ano, quan­do ela con­segue ser rein­tegra­da aos quadros públi­cos e assume um pos­to no Cen­tro Psiquiátri­co Pedro II, no bair­ro de Engen­ho de Den­tro, na zona norte do Rio de Janeiro. Os quase 2 anos que Nise pas­sou no cárcere apro­fun­daram nela a “mania de liber­dade”, ter­mo que ela iria repe­tir muitas vezes pos­te­ri­or­mente, e tam­bém a importân­cia de não se deixar con­sumir pelo vazio.

E o Pedro II guar­da­va muitas semel­hanças com a prisão. Eram mais de 1 mil pacientes, de ambos os sex­os e de todas as idades. A maio­r­ia tin­ha diag­nós­ti­co de esquizofre­nia crôni­ca e, para muitos, o hos­pi­tal tin­ha uma por­ta de entra­da, mas não de saí­da.

Os pacientes vivi­am enclausura­dos, em condições insalu­bres, sem realizar nen­hu­ma ativi­dade cria­ti­va e eram sub­meti­dos a trata­men­tos recon­heci­dos atual­mente como vio­len­tos, mas com­ple­ta­mente aceitos e dis­sem­i­na­dos entre os psiquia­tras de todo mun­do naque­la época, como a lobot­o­mia, o eletro­choque e a ter­apia de choque por insuli­na. Mas Nise não era como todo mun­do. Bas­tou assi­s­tir a uma sessão de eletro­choque e ver os efeitos danosos da ter­apia com insuli­na, para que a médi­ca se recusasse a aplicar ess­es “trata­men­tos”, o que lhe ren­deu o títu­lo de “rebelde” que ela fez questão de nun­ca mais aban­donar.

A direção do hos­pi­tal, então, rele­gou à Nise uma ativi­dade con­sid­er­a­da de segun­da classe, a ter­apia ocu­pa­cional. Em entre­vista a Fer­reira Gullar, pub­li­ca­da no mes­mo livro, Nise con­ta que a ocu­pação dos pacientes era “var­rer, limpar os vasos san­itários, servir os out­ros doentes”. A médi­ca então criou uma sala de cos­tu­ra e depois um ateliê de pin­tu­ra.

“A ino­vação con­sis­tiu exata­mente em abrir para eles o cam­in­ho da expressão, da cria­tivi­dade, da emoção de lidar com os difer­entes mate­ri­ais de tra­bal­ho”, expli­cou a médi­ca ao escritor.

Rebeldia

A par­tir daí, a rev­olução começou, inclu­sive com os nomes. Nise se recusa­va a chamar os inter­nos de pacientes e prefe­ria o ter­mo “clientes”. Durante as ofic­i­nas, os trata­va com afe­to, e não com indifer­ença. O setor de ter­apia ocu­pa­cional chegou a ter 17 ativi­dades difer­entes, e ela tam­bém uti­liza­va os pátios, onde os “clientes” eram colo­ca­dos para tomar sol, em um local para fes­tas e out­ras ativi­dades cole­ti­vas. E o resul­ta­do dessas ativi­dades era cuida­dosa­mente guarda­do ou reg­istra­do pela médi­ca, como mate­r­i­al de pesquisa.

Rio de Janeiro (RJ) 13/02/2025 – O diretor do Museu de Imagens do Inconsciente, Luiz Carlos Mello, fala sobre o trabalho com Nise da Silveira. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Dire­tor do Museu de Ima­gens do Incon­sciente, Luiz Car­los Mel­lo, tra­bal­hou com Nise da Sil­veira — Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Pou­cas pes­soas con­hecem esse mate­r­i­al tão bem quan­to Luiz Car­los Mel­lo. O atu­al dire­tor do Museu de Ima­gens do Incon­sciente — fun­da­do por Nise — tra­bal­hou com a médi­ca por 26 anos, con­tribuin­do com suas pesquisas e com a orga­ni­za­ção do seu gigan­tesco acer­vo, recon­heci­do como Memória do Mun­do pela Unesco. Ele con­heceu Nise em 1974, quan­do entrou no Pedro II como estag­iário, “muito jovem e muito tími­do” e começou a par­tic­i­par do seu grupo de pesquisas. Mas só se tornou seu colab­o­rador em 1975, ano em que a médi­ca foi aposen­ta­da com­pul­so­ri­a­mente por com­ple­tar 70 anos.

“Quan­do eu cheguei, o acer­vo já tin­ha quase 200 mil obras. Foi a fase reflex­i­va dela, de pegar o saber, os con­hec­i­men­tos dela e trans­for­mar em livros, cur­sos, doc­u­men­tários. Ela tin­ha um rig­or de tra­bal­ho impres­sio­n­ante e um con­hec­i­men­to uni­ver­sal extra­ordinário, então ger­ou muitos fru­tos”, lem­bra Luiz Mel­lo.

Segun­do o dire­tor do museu, os resul­ta­dos da ter­apia ocu­pa­cional ori­en­ta­da por Nise foram rápi­dos e visíveis, mas ain­da assim ela enfren­tou resistên­cia durante toda sua car­reira: “Ela cri­a­va um ambi­ente sem grades. Os clientes eram chama­dos pelo nome, uma das bases do tra­bal­ho dela era a relação afe­ti­va. E em qual­quer doença, não só a doença men­tal, com um ambi­ente favoráv­el, o prognós­ti­co é mel­hor”.

As obras pro­duzi­das pelos clientes rev­elavam emoções que eles não con­seguiam orga­ni­zar e exprim­ir em palavras, e com o pas­sar do tem­po, com­pro­vavam tam­bém sua mel­ho­ra. Em out­ros casos, ates­tavam o male­fí­cio das ter­apias tradi­cionais. Um dos exem­p­los mais con­tun­dentes é o de Lúcio Noe­man, que esculpia guer­reiros em ges­so com mui­ta téc­ni­ca e pre­cisão, mas foi sub­meti­do a uma lobot­o­mia, e depois dis­so só con­seguia pro­duzir fig­uras dis­formes.

Rio de Janeiro (RJ) 13/02/2025 – A exposição Ocupação Nise da Silveira, no anexo do Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Exposição Ocu­pação Nise da Sil­veira, no anexo do Museu de Ima­gens do Incon­sciente -. Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Segun­do a psiquia­tria da época, a prin­ci­pal car­ac­terís­ti­ca da lou­cu­ra é a per­da da unidade do indi­ví­duo. Mas no ate­lier eram feitas ima­gens de man­dalas em cír­cu­los, o que era uma con­tradição na própria doença, porque o cír­cu­lo, por excelên­cia, é o sím­bo­lo da unidade. Foi aí que ela escreveu uma car­ta ao Jung [psiquia­tra e psi­coter­apeu­ta suíço], com fotografias, per­gun­tan­do se real­mente eram man­dalas e por que elas apare­ci­am em tão grande quan­ti­dade na pro­dução deles. Menos de um mês depois, ele respon­deu dizen­do que real­mente eram man­dalas e que cor­re­spon­de­ri­am às forças auto-cura­ti­vas da psiquê. Então, se a pes­soa vive um esta­do de con­fusão men­tal, de dis­so­ci­ação, exis­tem forças no incon­sciente que con­tra­bal­an­ceiam isso, que bus­cam a unidade, a reestru­tu­ração”, desta­ca Luiz Car­los Mel­lo.

Em uma car­ta seguinte, Jung escreveu: “O sig­natário des­ta car­ta con­vi­da a sen­ho­ra douto­ra Nise da Sil­veira a se jun­tar ao semes­tre de verão de 1957 do Insti­tu­to C. G. Jung — Zurique”, o que deu iní­cio a uma profícua relação de Nise com os pesquisadores do insti­tu­to — ela chegou a ser anal­isa­da por uma de suas dis­cípu­las, a psi­coter­apeu­ta Marie-Louise von Franz — e com o próprio Jung. A par­tir daí, Nise se tornou grande dis­sem­i­nado­ra das teo­rias de Jung no Brasil, e seus tra­bal­hos tam­bém gan­haram maior dimen­são inter­na­cional.

Nise tam­bém foi pio­neira na ter­apia com ani­mais, algo que hoje é larga­mente uti­liza­do, com evidên­cias cien­tí­fi­cas da sua efe­tivi­dade. De acor­do com Luiz Mel­lo, essa ideia par­tiu da obser­vação aten­ta dos clientes.

“Nise sem­pre gos­tou de bicho. E um doente chegou para ela com um cachor­ro machu­ca­do e per­gun­tou se pode­ria cuidar desse cachor­ro. A douto­ra Nise deu condições e começou a obser­var que, à medi­da que o bicho mel­ho­ra­va, o paciente tam­bém mel­ho­ra­va”, recor­da Luiz Mel­lo.

Incon­for­ma­da com a grande rein­cidên­cia de pacientes inter­na­dos — que chega­va a 70% -, Nise tam­bém se lançou a um empreendi­men­to que Luiz Mel­lo con­sid­era uma ante­ci­pação, em mais de 30 anos, dos cen­tros de Atenção Psi­cos­so­cial, que hoje são as grandes ânco­ras do serviço públi­co de saúde men­tal do Brasil. A Casa das Palmeiras, fun­da­da pela médi­ca em 1956, aten­dia pes­soas com transtornos men­tais de for­ma gra­tui­ta, sem inter­nação, apli­can­do a reabil­i­tação ocu­pa­cional que ela criou. O local per­manece aber­to até hoje, mas depois de enfrentar difi­cul­dades finan­ceiras, pas­sou a cobrar men­sal­i­dade dos pacientes.

Legado

Por todas essas rebel­dias, Nise é tida como uma grande inspi­ração do movi­men­to de refor­ma psiquiátri­ca, que gan­hou força no Brasil nos anos 80. Mas um dos prin­ci­pais expoentes dessa luta, o pesquisador sênior da Fun­dação Oswal­do Cruz Paulo Ama­rante, diz que a médi­ca descon­fi­a­va da pro­pos­ta de acabar com os man­icômios.

Rio de Janeiro (RJ) 13/02/2025 – A exposição Ocupação Nise da Silveira, no anexo do Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Exposição Ocu­pação Nise da Sil­veira, no anexo do Museu de Ima­gens do Incon­sciente — Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Assim como muitas pes­soas impor­tantes na história da psiquia­tria, ela acha­va que seria pos­sív­el exi­s­tir uma insti­tu­ição em regime con­tro­la­do, de uma maneira human­iza­da. E ela tin­ha medo: ‘Você vai dar alta pra pes­soa e ela vai pra onde? Vai com­er aonde? Ela vai ser víti­ma de vio­lên­cia’ ”, expli­ca Ama­rante.

Ama­rante pas­sou a ter con­ta­to fre­quente com Nise ao ser con­vi­da­do para plane­jar a extinção jus­ta­mente do Hos­pi­tal Psiquiátri­co Pedro II, e fez questão de con­sul­tar a médi­ca, ini­cian­do uma ver­dadeira jor­na­da para con­vencê-la a apoiar o movi­men­to anti­man­i­co­mi­al, o que ficou mais fácil depois que alguns dis­cípu­los de Nise embar­caram no pro­je­to.

“A gente tra­bal­ha­va não para mel­ho­rar o hos­pí­cio, mas para acabar com aqui­lo, super­ar aque­le mod­e­lo. E ela tin­ha uma exper­iên­cia pes­soal com a Casa das Palmeiras, então a gente usa­va isso [para con­vencê-la]: ‘Olha, Nise, a gente quer faz­er várias Casas das Palmeiras, locais onde as pes­soas pas­sam o dia, fazem ativi­dades, não é obri­gatório, não têm que dormir, não ficam pre­sa, enten­deu?’”

Ele tam­bém lev­ou diver­sos estu­diosos favoráveis à causa para con­hecerem Nise, até que a descon­fi­ança da médi­ca se des­fez. “Foi uma pena ela não poder assi­s­tir aque­la insti­tu­ição deixar de ser um hos­pi­tal psiquiátri­co”, lamen­ta Ama­rante.

Nos anos 2000, o hos­pi­tal foi reba­ti­za­do e pas­sou a se chamar Insti­tu­to Munic­i­pal Nise da Sil­veira, dimin­uin­do sua capaci­dade ao lon­go dos anos, até a realo­cação dos últi­mos inter­nos em residên­cias ter­apêu­ti­cas, em out­ubro de 2021. Des­de então, a sua enorme área de 79 mil met­ros quadra­dos fun­ciona como par­que, com ativi­dades esporti­vas, artís­ti­cas, cul­tur­ais e de laz­er e abri­ga ain­da o Museu de Ima­gens do Incon­sciente. O insti­tu­to tam­bém man­tém ativi­dades de reabil­i­tação psi­cos­so­cial e de pro­moção da saúde men­tal.

Ape­sar da batal­ha, Ama­rante reafir­ma que Nise é uma grande inspi­ração. “No Brasil, ela foi a primeira pes­soa a recusar-se a faz­er uma psiquia­tria basea­da na vio­lên­cia. E a Nise tin­ha essa for­mação filosó­fi­ca, human­ista, e era uma pes­soa com­pro­meti­da com os dire­itos humanos, com a liber­dade, e os dire­itos das pes­soas”.

Rio de Janeiro (RJ) 13/02/2025 – Mural em homenagem à Nise da Silveira no anexo do Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Mur­al em hom­e­nagem à Nise da Sil­veira no anexo do Museu de Ima­gens do Incon­sciente — Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

E o movi­men­to anti­man­i­co­mi­al acabou reforçan­do ideias que Nise já defendia. “Nós temos que mudar as relações que a sociedade tem com essas pes­soas, por isso a gente faz um grande inves­ti­men­to em ativi­dades de arte e cul­tura. E a gente con­seguiu ques­tionar a teo­ria da irre­versibil­i­dade da doença men­tal. A maior parte daque­las pes­soas que estavam nos man­icômios, que se dizia que eram crôni­cas por causa da doença, nós mostramos que a insti­tu­cional­iza­ção, a fal­ta de dire­ito, de pro­tag­o­nis­mo, de pos­si­bil­i­dade de exercer a cidada­nia, é que cri­a­va essa croni­ci­dade”

Nise da Sil­veira con­tin­u­ou tra­bal­han­do durante toda a sua vida e mor­reu em 30 de out­ubro de 1999, já com 94 anos de idade. Sua tra­jetória parece con­fir­mar uma reflexão que ela escreveu, assim que chegou à casa de Jung para con­hecê-lo: “Nos­so plano de desen­volvi­men­to está inseri­do den­tro de nós. Se nós desvi­amos dele – e ess­es desvios são sem­pre tra­bal­ho do con­sciente – “sobres­sai” a neu­rose. Reen­con­trar o seu plano pes­soal de desen­volvi­men­to é a cura.”

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