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Hip hop é a maior cultura urbana da história, afirma pesquisador

Repro­dução: © Arte/Agência Brasil

Em entrevista, DJ Eugênio Lima fala sobre 50 anos do movimento


Pub­li­ca­do em 12/11/2023 — 08:45 Por Daniel Mel­lo — Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

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Repro­dução: @Agência Brasil

“A maior cul­tura urbana da história da humanidade.” É assim que o DJ Eugênio Lima define o hip hop, que em 2023 com­ple­ta 50 anos de existên­cia e 40 anos de pre­sença no Brasil. Pesquisador e um dos fun­dadores do Núcleo Bar­tolomeu de Depoi­men­tos, grupo que pen­sa o teatro a par­tir da estéti­ca do hip hop, Lima vê nes­sa cul­tura ele­men­tos tradi­cionais africanos que dialogam com as pop­u­lações negras em diás­po­ra por todo o mun­do.

Aqui, ele pega emprestadas as palavras de Afri­ka Bam­baataa, DJ e pro­du­tor pio­neiro do gênero para explicar essa relação. “Uma coisa que o Bam­baataa fala é que o hip hop nada mais é do que [a téc­ni­ca] dos griôs [con­ta­dores tradi­cionais de histórias] da África [lev­a­da] para o sul do Bronx [bair­ro de Nova York, nos Esta­dos Unidos]. E aqui, para mim, o sul do Bronx é só uma metá­fo­ra, porque é o sul do Bronx pode ser o Capão Redon­do [zona sul paulis­tana], é o Alto José do Pin­ho [no Recife], é a per­ife­ria de São Luís, a per­ife­ria de Man­aus”, rela­ciona.

A for­ma tradi­cional de trans­mis­são de saberes e histórias se trans­for­ma, segun­do Lima, para abar­car as con­struções que estão fora das for­mal­i­dades acadêmi­cas.

“Essa tec­nolo­gia dos griôs do oeste africano colo­ca­da, fun­da­men­ta­da, a par­tir dos toca-dis­cos, a par­tir da cul­tura de rua, a par­tir do con­hec­i­men­to que não é o con­hec­i­men­to da sabedo­ria for­mal, tran­cafi­a­da com seus parâmet­ros, con­struí­da pro­fun­da­mente a par­tir da oral­i­dade”, acres­cen­ta.

O toca-dis­cos, enfa­ti­za o pesquisador, é o pilar fun­da­men­tal da cul­tura hip hop, que é con­struí­da a par­tir de qua­tro ele­men­tos: o DJ, o MC, o grafite e o break – bati­da, can­to, pin­tu­ra e dança. “A par­tir daí, se cria todo um grande vocab­ulário que a gente chama de con­hec­i­men­to de rua. A esco­la da rua. O con­hec­i­men­to, a moda a própria lóg­i­ca da rua”, enu­mera.

São Paulo SP 09/11/2023, DJ Eugenio de Lima - 50 Anos Hip-Hop. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
Repro­dução: Eugênio Lima é um dos fun­dadores do Núcleo Bar­tolomeu de Depoi­men­tos, que pen­sa o teatro a par­tir da estéti­ca do hip hop — Paulo Pinto/Agência Brasil

O momen­to fun­dador dessa cul­tura é quan­do os qua­tro ele­men­tos foram reunidos em uma úni­ca fes­ta no Bronx, em 1973, orga­ni­za­da pelo DJ Kool Herc jun­to com sua irmã, Cindy Camp­bell. Lima esteve, neste ano, no mes­mo local onde essa primeira fes­ta foi orga­ni­za­da, em uma cel­e­bração de 50 anos de existên­cia do hip hop.

“Eu tive o praz­er de con­hecer esse lugar. Ele existe ain­da  e está sendo prepara­do para ser o tem­p­lo do hip hop. Ago­ra, essa rua é chama­da de Boule­vard do Hip Hop. É uma rua sem saí­da, no sul do Bronx, den­tro de um con­jun­to habita­cional, em Nova York. Então, no dia 12 de agos­to de 2023, teve a block par­ty nesse lugar, que é o lugar fun­dante, comem­o­ran­do 50 anos da cul­tura hip hop”, con­tou ao rece­ber a reportagem da TV Brasil para gravação do pro­gra­ma Cam­in­hos da Reportagem. O episó­dio vai ao ar neste domin­go (12), às 22h, na emis­so­ra públi­ca.

Nes­sa opor­tu­nidade, o DJ pôde mostrar parte da coleção de dis­cos, que inclui diver­sas peças impor­tantes para essa tra­jetória de cin­co décadas do hip hop. “Esse aqui”, diz colo­can­do o dis­co para rodar, “é o primeiro vinil, o primeiro fono­gra­ma da história do hip hop. É o Rap­per’s Delight do The Sug­arhill Gang. Ele é de setem­bro de 1978, lança­do pela Sug­arhill Records, ape­sar de a gente con­sid­er­ar que o hip hop nasce em 1973”, con­ta.

Con­fi­ra abaixo os prin­ci­pais tre­chos da entre­vista com Eugênio Lima:

Agên­cia Brasil: Como fun­ciona a mág­i­ca do DJ, essa relação entre a base e a voz?
Eugênio Lima: Eu vou explicar do princí­pio. Em inglês é two turnta­bles and a micro­phone — quer diz­er, dois toca-dis­cos e um micro­fone. Isso é a base do hip hop: dois toca-dis­cos em um micro­fone. Por que tem um MC? Segun­do o Kool Herc, é porque o DJ não tem três braços. Cadê o ter­ceiro braço para segu­rar o micro­fone? Então, ele con­vi­da um MC chama­do Coke La Rock, ele está com quase 80 anos hoje, e um out­ro MC chama­do Mark Wal­ters, esse já é fale­ci­do. Aqui você tem os dois toca-dis­cos e  você tem um mix­er, onde você mixa vol­ume. Isso aqui são os faders [con­t­role de vol­ume].

A par­tir desse vocab­ulário, são cri­a­dos dois dos ele­men­tos mais impor­tantes da cul­tura hip hop — o DJ e o MC. Mas a cul­tura hip hop é fei­ta de vários out­ros con­hec­i­men­tos. Os out­ros ele­men­tos fun­dantes seri­am: o grafite, que eles chamam de graf­fi­ti writ­ters, ou seja, escritores de grafite. Os dançari­nos – b‑boys e b‑girls – porque eles dançam nos breaks [inter­va­l­os] da músi­ca. Seria break­boy,  porque se dança­va nos inter­va­l­os instru­men­tais entre cada músi­ca.

B‑boys e b‑girls, DJ, MC e grafite –  a par­tir daí se cria todo um grande vocab­ulário de con­hec­i­men­tos, que a gente chama de con­hec­i­men­to de rua. Por isso que é a esco­la da rua. Tem o con­hec­i­men­to da moda da rua, da própria lóg­i­ca da rua. Rua não só no sen­ti­do de que está fora é do cam­po, dig­amos assim, for­mal do con­hec­i­men­to. Mas é rua porque tam­bém as out­ras for­mas de con­hec­i­men­to acabam sendo per­me­adas por esse con­hec­i­men­to fun­dante. E para um DJ tudo tem a ver com dis­cos.

Agên­cia Brasil: A gente pode diz­er, então, que o hip hop começa na mesa do DJ?
Lima: A gente pode diz­er, não, ele começa na mesa do DJ. O pilar fun­dante da cul­tura é a block par­ty de 1973, onde o Kool Herc mon­ta isso e con­vi­da as out­ras pes­soas. Ele [o lugar] existe ain­da e está sendo prepara­do para ser o tem­p­lo do hip hop. Ago­ra, essa rua é chama­da de Boule­vard do Hip Hop. É uma rua sem saí­da, no sul do Bronx, den­tro de um con­jun­to habita­cional, em Nova York. Então, no dia 12 de agos­to de 2023, teve a block par­ty nesse lugar, que é o lugar fun­dante, comem­o­ran­do 50 anos da cul­tura hip hop.

Quem con­vi­dou tudo isso foi o [MC e pro­du­tor musi­cal] KRS-One que é um cara da [pro­du­to­ra] Boo­gie Down Pro­duc­tions.  Essa é um das músi­cas mais famosas dele, Step Into the World [mostra um dis­co]. [Pega out­ro dis­co] Uma out­ra pes­soa que tam­bém é muito fun­da­men­tal é esse cara aqui, Afri­ka Bam­baataa. Esse aqui é um encon­tro dele com James Brown. É cred­i­ta­do ao Bam­baataa a ideia a nom­i­nação [hip hop]. É o Bam­baataa que cria a ideia de que isso que se faz com ess­es qua­tro ele­men­tos é hip hop, e isso não é um movi­men­to, é uma cul­tura.

Em 2016, eles entre­garam um doc­u­men­to na ONU [Orga­ni­za­ção das Nações Unidas], que é a declar­ação de paz da cul­tura hip hop. É uma série de man­da­men­tos, como se fos­sem os dez man­da­men­tos, mas tem mais que dez, tem uns 24 man­da­men­tos, onde eles vão dizen­do quais são os princí­pios fun­da­men­tais do que seria a cul­tura hip hop. É assi­na­do pelo KRS-One, pelo Bam­baataa e por mais de 300 ativis­tas do hip hop no mun­do inteiro.

Agên­cia Brasil: Onde o Grand­mas­ter Flash entra na história?
Lima: O Grand­mas­ter Flash é tipo o mago. Mui­ta gente cred­i­ta a invenção do cross­fad­er a ele [téc­ni­ca de reduzir o vol­ume de uma músi­ca e faz­er a entra­da de out­ra grad­ual­mente]. É o cara que faz aque­la história de mar­car os dis­cos, de trans­for­mar o mer­ry go-round [téc­ni­ca que man­tém a parte instru­men­tal da músi­ca tocan­do por mais tem­po], que era a téc­ni­ca do Kool Herc, numa coisa mais pra frente, que é o back to back, que é ir e voltar com os toca-dis­cos, ir e voltar com os toca-dis­cos numa estru­tu­ra inter­mináv­el sem tirar o pé da dança.

back to back cria o vocab­ulário do que vai ser a ideia de que um MC e um DJ vão rimar jun­tos. E para com­ple­tar tem aqui um clás­si­co que é uma péro­la do que seria o Grand­mas­ter Flash and the Furi­ous Five, que chama The Mes­sage. E o The Mes­sage é, vamos diz­er assim, uma das pedras fun­da­men­tais da história. [Colo­ca o dis­co para rodar]. É o Mel­ly Mel can­tan­do. Isso aqui é Grand­mas­ter Flash and the Furi­ous Five. Cow­boy, Kid Cre­ole, Melle Mel, Scor­pio. Esse aqui é 1982. A gente cred­i­ta muito essa ideia de que o hip hop, o rap, é a crôni­ca da per­ife­ria. Essa é a primeira crôni­ca. Essa é a primeira crôni­ca.

O Melle Mel vai descr­ev­er o que está acon­te­cen­do na que­bra­da. O primeiro ver­so é fan­tás­ti­co: [Toca um tre­cho da músi­ca] “Bro­ken glass everywhere/People pissin’ on the stairs, you know they just don’t care/ I can’t take the smell, can’t take the noise” — “Vidro que­bra­do por toda parte. Pes­soas mijan­do na esca­da, você sabe que eles sim­ples­mente não lig­am. Eu não con­si­go supor­tar o cheiro, não aguen­to o barul­ho.”

Além do vocab­ulário, o Grand­mas­ter Flash tem out­ra para­da que é muito tre­ta: ele é a primeira pes­soa a gravar um dis­co den­tro de um dis­co. Quan­do ele cria o Adven­tures on the Wheels of Steel, ele vai gra­van­do a músi­ca com várias téc­ni­cas de mix­agem dos toca-dis­cos. Vai crian­do um vocab­ulário. E é a primeira vez que vinis são usa­dos para se cri­ar um fono­gra­ma que tam­bém era em vinil. É met­alin­guagem da met­alin­guagem. A gente chama isso de mashup hoje, mas não exis­tia nem o nome pra diz­er o que ele esta­va fazen­do. O Grand­mas­ter Flash é o grande arquite­to mes­mo da estru­tu­ra do que viri­am a ser as téc­ni­cas de dis­cotecagem e a relação dis­so com a músi­ca.

Vozes Hip Hop arte
Repro­dução: @Agência Brasil

Agên­cia Brasil: Como é que foi estar lá com o Kool Herc? Como é que foi essa fes­ta que cele­brou os 50 anos do hip hop no lugar de origem?
Lima: Foi muito emo­cio­nante porque são 50 anos, não são 50 dias. Eu vou pegar uma frase, vou sam­plear uma frase do Prince Paul, pro­du­tor do The Last Soul, no Harlem. Ele esta­va dis­cote­can­do os seus maiores clás­si­cos, pro­du­tor do The Last Soul, do Tribe Called Quest, ele fala­va assim: “A gente pre­cisa comem­o­rar esse dia como se não hou­vesse aman­hã, porque muito provavel­mente nen­hum de nós vai estar vivo pra comem­o­rar os 100 anos do hip hop”. Essa é a dimen­são da cul­tura.

As comem­o­rações foram o mês de agos­to inteiro, no dia 11 teve uma block par­ty no Might Point Park, onde vai se cri­ar um museu ded­i­ca­do à cul­tura hip hop. É o Uni­ver­sal Muse­um of Hip Hop. É um par­que às mar­gens do East Riv­er, que é o rio que sep­a­ra o Bronx do Harlem [bair­ros de pop­u­lação negra de Nova York]. É uma ponte, mas parece um mun­do. E depois teve um show no Yan­kee Sta­di­um, o está­dio do time de beise­bol de Nova York, com todas as ger­ações. Era uma pro­gra­mação exten­sa, começou às 6h da tarde e ter­mi­nou às 2h da man­hã. E ia des­de o Sug­ar Hill Gang, pas­san­do pelo Grand­mas­ter Flash and the Furi­ous Five, a hom­e­nagem ao Kool Herc e à irmã dele, a Clive Camp­bell, coroa­d­os pela própria mãe.

A mãe do Kool Herc está com 86 anos e ela coroou o fil­ho e a fil­ha. Até ter­mi­nar com o show do Run-MC pas­san­do pelo Nas, pelo Kid Capri, pela Lau­ren Hill, pelo Snoop Dog, pelo Ice Cube, foi assim, pelo T.I. até o trap [sub­gênero do rap], o Lil Wayne, assim, até das novas ger­ações tam­bém con­ver­san­do, Lil’Leo King, todo mun­do fazen­do isso no dia 11, que é o dia mes­mo que se comem­o­ra, porque foi 11 de agos­to de 1973.

No dia 12, teve a block par­ty no sul do Bronx e no, dia 13, a block par­ty no Harlem. Eu não vi a block par­ty do dia 5, que foi no Brook­lyn, que é onde foi coman­da­do pelo Grand­mas­ter Flash. Essa eu per­di. Foi incrív­el.

Depois a gente voltou pra São Paulo e eu tive a hon­ra de poder diri­gir esse espetácu­lo que é o Hip Hop aos 50 anos e a gente ten­tou faz­er uma hom­e­nagem às diver­sas ger­ações do hip hop: teve a Shary­laine, Thaíde, o Dex­ter, a MC Sofia, a Back­spin, o Cole­ti­vo Amen, teve a Brisa Flow, teve a Linn Que­bra­da, teve o Rin­con Sapiên­cia, o Nel­son Tri­un­fo. A ideia é de a gente hom­e­nagear a par­tir dessa história, a dança, a músi­ca, a pro­dução icono­grá­fi­ca através dos grafites, foi uma pesquisa bem inten­sa e eu tive o praz­er de diri­gir isso. Foi um doc­u­men­to bacana. A gente fez isso no dia 24 de agos­to de 2023 no Sesc Pin­heiros lota­do, mais de 1,1 mil pes­soas.

Agên­cia Brasil: Nes­sa pesquisa, qual você sen­tiu que é a tra­jetória do hip hop no Brasil?
Lima: No ano que vem, faz 40 anos do hip hop no Brasil, que é o mar­co zero lá da cul­tura hip hop a que o Nel­son [Tri­un­fo, pio­neiro do break] se ref­ere. Nestes 40 anos, eu acho que pou­cas vezes na história do Brasil uma con­strução cul­tur­al afro-diaspóri­ca, pre­ta, indí­ge­na, per­iféri­ca, transna­cional, tran­scul­tur­al fez o que o hip hop fez no Brasil nos últi­mos 40 anos.

Tem uma coisa tam­bém que eu sem­pre gos­to de colo­car, que é o Chico Sci­ence e Nação Zumbi, quan­do ele fala: “É hip hop na min­ha embo­la­da”. É um panora­ma de um proces­so que é muito maior do que a arte, mas, sim, um proces­so de sobre­vivên­cia. “Acharam que a gente esta­va mor­to”, como diz o Dex­ter no Oita­vo Anjo, “achavam que a gente esta­va der­ro­ta­do, quem achou isso esta­va erra­do”. Que a gente vivia sob ruí­nas e, por­tan­to, seríamos arru­ina­dos, mas a gente trans­for­mou as ruí­nas na pro­dução poéti­ca mais potente, na cul­tura urbana, a maior cul­tura urbana da história da humanidade. O hip hop brasileiro está den­tro desse panora­ma e é muito legal porque, como todo o hip hop no mun­do, é diaspóri­co, é transna­cional, se conec­ta com out­ras diás­po­ras no mun­do todo.

O ter­ritório que a gente fala, seja a lín­gua, seja o próprio ter­ritório brasileiro, ele tem influên­cias de out­ras tan­tas cul­turas, out­ros tan­tos beats, out­ras tan­tas sabedo­rias. Porque uma coisa que o Bam­baataa fala é que o hip hop nada mais é do que dos griôs da África para o sul do Bronx. E pra mim o sul do Bronx é só uma metá­fo­ra, porque o sul do Bronx pode ser o Capão Redon­do, o sul do Bronx é o Alto José do Pin­ho, o sul do Bronx é a per­ife­ria de São Luís, o sul do Bronx é a per­ife­ria de Man­aus, é a per­ife­ria de qual­quer out­ra grande cidade do mun­do.

Essa tec­nolo­gia dos griôs do oeste africano colo­ca­da, fun­da­men­ta­da, a par­tir dos toca-dis­cos, a par­tir da cul­tura de rua, a par­tir do con­hec­i­men­to que não é o con­hec­i­men­to da sabedo­ria for­mal tran­cafi­a­da com seus parâmet­ros tudo, além do que é um con­hec­i­men­to con­struí­do pro­fun­da­mente a par­tir da oral­i­dade. Nesse momen­to tam­bém em Nova York está ten­do uma exposição na bib­liote­ca do Brook­lin sobre a tra­jetória do Jay‑Z. E tem uma parte da exposição que é “Every­thing with­out a pen”, quer diz­er, tudo isso sem uma cane­ta, porque o Jay‑Z nun­ca escreveu nen­hu­ma letra, todas as letras dele são na cabeça e ele gra­va. Isso é o teste­munho da oral­i­dade. Ele nun­ca escreveu uma letra na vida. Eu acho que esse é o teste­munho que tam­bém a cul­tura hip hop traz. Como as sabedo­rias ances­trais se conec­tam com as tec­nolo­gias, com a pos­si­bil­i­dade de sobre­vivên­cia.

Aqui a gente con­seguiu con­stru­ir a par­tir dos toca-dis­cos e tudo, mas, por exem­p­lo, Cuba não teve toca-dis­co, mas teve hip hop. Eu esta­va assistin­do ontem uma meni­na de 16 anos de idade que chama J Noah, da Repúbli­ca Domini­cana, riman­do, e eu falei, meu Deus do céu, o que que é isso? Uma meni­na tem 16 anos de idade e o flow dela é mon­stro, e a letra é mon­stra. Como ela con­segue acu­mu­lar tan­ta sabedo­ria com 16 anos de idade? E ela falou: “É a min­ha exper­iên­cia, o meu bair­ro, as pes­soas que eu vi, as coisas que eu vi e nem sem­pre os teste­munhos são agradáveis”. Ou seja, é a pos­si­bil­i­dade de con­seguir trans­for­mar a dor em poe­sia, e não só isso, mas de trans­for­mação.

Agên­cia Brasil: Ago­ra, uma coisa que eu acho que você provavel­mente é a mel­hor pes­soa para me explicar: Como é que foi isso de unir o hip hop com o teatro, que foi o Núcleo Bar­tolomeu de Depoi­men­tos?
Lima: Isso foi uma das bênçãos na min­ha vida, na nos­sa vida. Essa aqui é a palavra como ter­ritório, a nos­sa antolo­gia poéti­ca, que é trans­for­mar a nos­sa palavra em livro, são os 23 anos de existên­cia do Núcleo Bar­tolomeu de Depoi­men­tos, e a gente chamou isso de casa­men­to estéti­co: do teatro épi­co com a cul­tura hip hop e a par­tir de um princí­pio muito bási­co, a autor­rep­re­sen­tação. A ideia de que eu pre­ciso ter a pos­si­bil­i­dade de nar­rar a min­ha própria história.

Eu, como ator nar­rador, como atriz nar­rado­ra ou como uma per­sona que não está colo­ca­da nem no gênero mas­culi­no ou fem­i­ni­no, de nar­rar a própria história. Por quê? Porque eu con­si­go orga­ni­zar a cena, não é mais só sobre pro­tag­o­nis­mo ou antag­o­nis­mo, não. É sobre como eu pos­so orga­ni­zar todos os mate­ri­ais. O Núcleo Bar­tolomeu cria essa lin­guagem em 2000, ou seja, 23 anos atrás. Isso, há 23 anos atrás, era tipo como se eu xin­gasse a mãe de alguém. Ninguém acred­i­ta­va que isso fos­se pos­sív­el, achavam que isso era uma grande besteira, e a gente con­seguiu, pela nos­sa insistên­cia no teatro e no hip hop, con­stru­ir lin­guagem.

A ideia do ator e da atriz MC, a ideia do DJ nar­rador a ideia de que todos os ele­men­tos cêni­cos são necessários para se con­tar uma história, então a gente chamou isso de dra­matur­gia cêni­ca. A ideia de que não tem sub­serviên­cia de lin­gua­gens, isso quer diz­er o quê? O tex­to não serve à músi­ca, a músi­ca não serve ao tex­to, a atu­ação não está a serviço [de out­ra lin­guagem]. Todos estão em condições hor­i­zon­tais e são ele­men­tos necessários para con­tar a nar­ra­ti­va. E ao lon­go desse tem­po a gente foi crian­do vários des­do­bra­men­tos.

Por exem­p­lo, o slam no Brasil chega a par­tir do Núcleo Bar­tolomeu de Depoi­men­tos em 2008. Hoje, neste ano, nos 50 anos do hip hop, são 15 anos do slam no Brasil, 2023. Quem trouxe foi a Rober­ta Estrela D’Al­va, o primeiro slam acon­te­ceu na sede do Clube Bar­tolomeu de Depoi­men­tos. Em 2008, você tin­ha uma comu­nidade de slam, hoje você tem quase 300 no Brasil inteiro. Esse é o poder da lin­guagem.

Agên­cia Brasil: Você falou tam­bém do slam, o que você acha que o slam rep­re­sen­ta para a poe­sia brasileira?
Lima: Não vou nem falar palavras min­has. Segun­do o [escritor e pro­du­tor cul­tur­al] Marceli­no Freire, o slam é, talvez seja, dos últi­mos 20 anos, o movi­men­to mais impor­tante da poe­sia brasileira. Mas, para além dis­so, ele cria comu­nidades. E comu­nidades são o quê? Pos­si­bil­i­dade de pes­soas em espaços livres falarem o que pen­sam sobre o mun­do através de lin­gua­gens poéti­cas.

Não existe uma poe­sia de slam. Slam, a com­petição é só um pre­tex­to para se con­stru­ir vocab­ulário. E a gente colo­cou o slam brasileiro na rota, nos seus grandes encon­tros mundi­ais, tan­to é que este ano, em 2023, o Campe­ona­to Mundi­al de Slam acon­tece no Rio de Janeiro e quem vai apre­sen­tar é o Núcleo Bar­tolomeu de Depoi­men­tos. Você teve durante muito tem­po, quase dez anos, o Rio Poet­ry Slam, que foi o primeiro fes­ti­val inter­na­cional de poe­sia fal­a­da. Você tem o campe­ona­to brasileiro, o Slam BR, que foi o Núcleo Bar­tolomeu que mon­tou. O campe­ona­to estad­ual, que é o Slam SP, que foi o Núcleo Bar­tolomeu que mon­tou. Isso criou uma pos­si­bil­i­dade de inúmeras, múlti­plas reconexões de diver­sos cam­in­hos com diver­sas comu­nidades, des­de o Ama­zonas até o Rio Grande do Sul.

E, como dado con­cre­to, não que eu acho que isso seja uma pro­va, mas é um dado con­cre­to, há o livro escol­hi­do no Jabu­ti de 2022, que é Tam­bém Guardamos Pedras Aqui, da Luiza Romão. A Luiza Romão é uma poeta que se for­mou no slam. Depois de um proces­so, cria um grande livro, que é um livro belís­si­mo, onde ela recria a par­tir da visão das mul­heres a Ilía­da [poe­ma épi­co grego], e o livro gan­ha o Prêmio Jabu­ti de Poe­sia. Há dois anos atrás, o Slam da Guil­her­mi­na gan­hou o Prêmio Jabu­ti, como a mel­hor proposição de incen­ti­vo à leitu­ra. Ou seja, até as estru­turas for­mais já recon­hece­r­am o slam. Não é uma questão mais do que eu acho, é um dado con­cre­to. O slam veio e veio pra ficar e mudou a cara da poe­sia, e não só da poe­sia, da relação da poe­sia com o mun­do no Brasil.

Agên­cia Brasil: Sobre­viven­do no Infer­no, dos Racionais é leitu­ra obri­gatória para o vestibu­lar da Uni­ver­si­dade Estad­ual de Camp­inas. Como é que você vê isso? Qual é a importân­cia dis­so?
Lima: Eu acho que isso é só uma pro­va do que já esta­va con­struí­do há muito tem­po. A acad­e­mia demo­ra muito para recon­hecer aqui­lo que é óbvio, às vezes, acha que desco­briu a pedra quan­do desco­bre aqui­lo que era óbvio e cria out­ras nor­ma­ti­vas. Porque, assim, o Sobre­viven­do no Infer­no foi um clás­si­co instan­tâ­neo. Diário de um Deten­toEstou Ouvin­do Alguém me ChamarFór­mu­la Mág­i­ca da Paz foram clás­si­cos instan­tâ­neos. Não só pela doc­u­men­tação do proces­so históri­co, porque ali o Racionais se fir­ma­va como talvez a maior rep­re­sen­tação da músi­ca brasileira naque­le momen­to históri­co, em um lugar onde não se pen­sa­va que pode­ria se con­sti­tuir sabedo­ria.

Eu gos­to muito de um tre­cho do Fór­mu­la Mág­i­ca da Paz, do Racionais, que o Brown fala assim: “Essa por­ra é um cam­po mina­do. Quan­tas vezes eu pen­sei em me tacar daqui, mas aí, min­ha área é tudo o que eu ten­ho. A min­ha vida é aqui, eu não con­si­go sair. Eu podia fugir, mas eu não vou. Não vou trair quem eu fui e quem eu sou. Eu sei pra onde vou e de onde vim. O ensi­na­men­to da favela foi muito bom pra mim. Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão. E eu sem­pre respeit­ei qual­quer juris­dição, qual­quer área”. Pen­sa nis­so, na tra­jetória da músi­ca, mas pen­sa nis­so se ele não está falan­do sobre a lin­guagem? É isso: a lin­guagem é um cam­po mina­do, enten­deu? Mas e aí?! Min­ha área é tudo eu ten­ho, a min­ha vida é aqui, enten­deu? Eu não con­si­go sair. É sobre cul­tura, sobre lin­guagem, sobre per­tenci­men­to, sobre a dona Maria de luto, nar­ra­ti­vas que o Brasil nun­ca teve capaci­dade de enten­der como elas eram pro­duzi­das.

O livro Sobre­viven­do no Infer­no não é nada mais do que a acad­e­mia enten­den­do, os proces­sos das edi­toras enten­den­do a grande sabedo­ria. Porque ele é tudo: ele é lit­er­atu­ra, é con­hec­i­men­to, é hino, é sobre­vivên­cia, é esti­lo de vida, é um monte de coisa. Sobre­viven­do no Infer­no é um grande doc­u­men­to e é tam­bém um doc­u­men­to da dor. O Brown fala sobre isso: é um grande doc­u­men­to da dor. Nos shows de Sobre­viven­do no Infer­no tiver­am aque­les grandes acon­tec­i­men­tos, pes­soas que fale­ce­r­am e tal. Tam­bém é um doc­u­men­to da dor. Não está dis­so­ci­a­da uma coisa da out­ra. E os livros, eles são um dos instru­men­tos. Não é o instru­men­to, mas é um dos. É uma lit­er­atu­ra que eu acho que sai da oral­i­dade para se trans­for­mar em lit­er­atu­ra.

E como isso é uma dico­to­mia só para a cul­tura oci­den­tal, porque, na ver­dade, isso em out­ras cul­turas não é dicotômi­co, muito pelo con­trário. A Odis­seia e a Ilía­da foram fal­adas durante sécu­los antes de serem escritas. Todo mun­do sabe dis­so.

Aque­les poe­mas árabes – cás­si­da [tipo de ver­so] — pas­saram qua­tro sécu­los na oral­i­dade antes de alguém escr­ev­er. Isso é um proces­so nat­ur­al. O hip hop se conec­ta com out­ras estru­turas de con­hec­i­men­to da oral­i­dade, da pre­sença e da pre­sença diaspóri­ca. Eu acho que é impor­tante falar dis­so. São muitas diás­po­ras.

A gente perdeu este ano um grande poeta, um grande MC, que é o Aza­ga­ia, de Moçam­bique. Tem uma músi­ca dele chama­da Maçonar­ia, que ele faz uma espé­cie de digressão des­de a escravidão até os dias atu­ais. Ele fala assim: “Quan­do os europeus gan­haram gos­to pelo açú­car, escravos no Brasil plan­taram cana-de-açú­car e algo­dão no sul da Améri­ca e no Novo Méx­i­co, enquan­to o chicote ensi­na­va o novo léx­i­co.” Isso é de uma poe­sia absur­da. O chicote criou um novo léx­i­co. É sobre dor, é sobre resistên­cia, é sobre estar na lin­ha de frente, ao mes­mo tem­po sobre como cri­ar estraté­gias para além da sobre­vivên­cia, para a própria existên­cia.

Edição: Juliana Andrade

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