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História de racismo e morte de menino no Recife faz 3 anos sem punição

Repro­dução: © Arte/Agência Brasil

Mãe de Miguel junta-se a apoiadores em manifestação por justiça


Pub­li­ca­do em 02/06/2023 — 06:24 Por Luiz Cláu­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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Luta e luto, decepção e âni­mo, força e dor. Há tam­bém out­ros tan­tos sen­ti­men­tos intraduzíveis que fazem parte da roti­na incan­sáv­el da per­nam­bu­cana Mirtes Rena­ta San­tana, de 36 anos. “São três anos de saudade, de dor e de frus­tração”. Do bair­ro do Bar­ro, na per­ife­ria do Recife (PE), onde mora, ela ini­cia, às 6h30, diari­a­mente a jor­na­da. Da cabeça, a ideia de bus­ca por justiça não ces­sa há exatos três anos.

Ex-tra­bal­hado­ra domés­ti­ca, ela, atual­mente, está atuan­do na Assem­bleia Leg­isla­ti­va de Per­nam­bu­co, em uma função de asses­so­ria. O per­cur­so envolve duas via­gens de ônibus e uma de metrô. Depois do tra­bal­ho, segue para a fac­ul­dade, onde faz o cur­so de dire­ito. Está no quin­to semes­tre. Lá quer apren­der como se faz justiça. Chega em casa tarde da noite. Nes­ta sex­ta-feira (2), porém, a roti­na será difer­ente.

“A con­cen­tração da man­i­fes­tação será às 14h em frente ao local do crime. Levare­mos faixas e car­tazes com as fotos do meu fil­ho”. O fil­ho é Miguel Otávio, mor­to aos 5 anos de idade. Mirtes vai voltar às prox­im­i­dades do pré­dio de luxo res­i­den­cial de onde o meni­no caiu, o Píer Mau­rí­cio de Nas­sau (con­heci­do como Tor­res Gêmeas), no Cen­tro do Recife.

Brasília - 01/06/2023 - Multiartista gaúcho, Giuliano Lucas, faz primeira exposição individual no Sesc Caxias Foto: Zucca Produções. Foto: Giuliano Lucas/ Divulgação
Repro­dução: “Eu não enx­er­ga­va racis­mo”, diz mãe de Miguel– Arqui­vo pes­soal

A par­tir de lá, o grupo fará uma cam­in­ha­da de pouco mais de um quilômetro até o Tri­bunal de Justiça de Per­nam­bu­co (TJPE). No local, farão ato para hom­e­nagear o garo­to. Ela pede que as pes­soas, se for pos­sív­el, com­pareçam de bran­co e azul.

Crime na pandemia

Mirtes bus­ca justiça depois da morte do fil­ho, que ocor­reu naque­le 2 de jun­ho de 2020. A então tra­bal­hado­ra domés­ti­ca lev­ou o garo­to para o tra­bal­ho porque a creche esta­va fecha­da em função da pan­demia.

Mes­mo naque­le momen­to em que o gov­er­no de Per­nam­bu­co havia definido que o tra­bal­ho domés­ti­co não era essen­cial, Mirtes teve que ir ao serviço para não perder o emprego e a ren­da. Segun­do o que foi teste­munhado e apu­ra­do, a empre­ga­da foi incumbi­da de passear com o cachor­ro da então patroa dela, Sari Corte Real, enquan­to a dona da casa fazia as unhas.

A empre­gado­ra, então, ficou com Miguel, mas o garo­to pedia pela mãe. Sari, com a man­i­cure em casa e sem paciên­cia, colo­cou o garo­to no ele­vador do pré­dio e aper­tou o botão do nono andar.  Soz­in­ho, o meni­no chegou a uma área de maquinar­ia e caiu de uma altura de mais de 35 met­ros. Miguel chegou a ser socor­ri­do, mas fale­ceu.

Justiça

Sari foi con­de­na­da, em primeira instân­cia, a oito anos e seis meses de reclusão por aban­dono de inca­paz, segui­do de morte. No entan­to, ela recorre da decisão em liber­dade, o que decep­ciona a mãe Mirtes. “Sou frustra­da com o Judi­ciário de Per­nam­bu­co”. O caso está ago­ra na segun­da instân­cia aos cuida­dos do desem­bar­gador Cláu­dio Jean Nogueira

Em nota à Agên­cia Brasil, a asses­so­ria de comu­ni­cação do Tri­bunal de Justiça de Per­nam­bu­co afir­mou que um recur­so trami­ta na 3ª Câmara Crim­i­nal do TJPE, mas em seg­re­do de justiça. “O relatório do recur­so será encam­in­hado em jun­ho para o desem­bar­gador revi­sor. Após a revisão, será incluí­do em pau­ta para jul­ga­men­to”, apon­tou. O TJPE não esclare­ceu para a reportagem o porquê de o proces­so estar em seg­re­do de justiça.

O Judi­ciário tam­bém infor­mou que out­ro proces­so corre na área cív­el em relação a pedi­do de ind­eniza­ção. “O proces­so trami­tou nor­mal­mente e, encer­ra­da a instrução, o feito se encon­tra com pra­zo para ale­gações finais das partes (…)  Após as ale­gações finais, o proces­so estará apto a jul­ga­men­to e será incluí­do na lista de feitos em ordem cronológ­i­ca de con­clusão”.

A assis­tente da acusação, a advo­ga­da Maria Clara D´ávila, diz que não entende por que o proces­so penal corre em seg­re­do de justiça. “Nós fize­mos uma apelação pedin­do que fos­sem con­sid­er­adas out­ras cir­cun­stân­cias do crime e tam­bém em relação à sen­tença. Ped­i­mos a reti­ra­da de alguns tre­chos. A decisão, ape­sar de ter con­de­na­do a ré, trouxe argu­men­tos con­sid­er­a­dos racis­tas”. A sen­tença do juiz José Rena­to Biz­er­ra incluía a pos­si­bil­i­dade de inves­ti­gar a mãe e a avó do meni­no por pos­síveis maus tratos.

O crime e o des­fe­cho trági­co fiz­er­am com que o Leg­isla­ti­vo local aprovasse a Lei Miguel, que proíbe que cri­anças até 12 anos de idade uti­lizem ele­vador desacom­pan­hadas de adul­tos.

Resumo de Brasil

Diante de tan­tos absur­dos, Mirtes enten­deu que todos os acon­tec­i­men­tos que cer­cam a história de sua família têm relação com racis­mo.

“Eu não enx­er­ga­va o racis­mo. Depois que eu pas­sei por um perío­do de for­mação políti­ca, come­cei a tra­bal­har em duas orga­ni­za­ções par­ceiras. Eu vi real­mente que hou­ve racis­mo no caso do meu fil­ho. Infe­liz­mente, o judi­ciário não enx­er­ga que hou­ve racis­mo, inclu­sive para me acusar”, lamen­ta Mirtes.

Para o pro­fes­sor Hugo Mon­teiro Fer­reira, dire­tor do Insti­tu­to Meni­no Miguel, enti­dade lig­a­da aos dire­itos humanos na Uni­ver­si­dade Fed­er­al Rur­al de Per­nam­bu­co, o crime explici­ta a cul­tura racista e elit­ista no País. “Se você quer resumir o Brasil, leia aten­ta­mente o caso Miguel. É o Brasil explic­i­ta­do. É um País de maio­r­ia negra que foi con­stan­te­mente retal­i­a­da pela lóg­i­ca da bran­qui­tude e seg­re­gado­ra”, afir­ma o pesquisador.

Fer­reira entende que um dos prin­ci­pais enfrenta­men­tos que o insti­tu­to real­iza é em relação à vio­lên­cia con­tra a cri­ança e con­tra o ado­les­cente, já que são situ­ações que lev­am a uma con­vul­são social. “O Insti­tu­to Meni­no Miguel atua, por exem­p­lo, na for­mação de con­sel­heiros e con­sel­heiras tute­lares na ten­ta­ti­va da for­mação de mel­ho­ra da atu­ação do sis­tema de garan­tia de dire­itos”. Ele afir­ma que a leg­is­lação evoluiu ao com­bat­er o racis­mo, mas essa é ape­nas uma das dimen­sões.

“A gente tem uma vio­lên­cia cometi­da até pelo próprio Esta­do con­tra a juven­tude negra. E tem muitas cri­anças negras mor­tas que estão asso­ci­adas à etnia, à raça e à situ­ação social. Não ten­ho dúvi­das de que, se fos­se o con­trário (uma cri­ança bran­ca tivesse mor­ri­do), a Mirtes estaria pre­sa e não respon­den­do em liber­dade”, apon­ta.

A edu­cado­ra Môni­ca Oliveira, da rede de mul­heres negras de Per­nam­bu­co, tam­bém con­sid­era o caso do meni­no Miguel emblemáti­co porque desta­ca como o racis­mo mar­ca a vida de todas as pes­soas negras des­de antes do seu nasci­men­to no Brasil. “Todas essas desigual­dades são com­pro­vadas em pesquisa. O Brasil é um país onde há pou­ca respon­s­abi­liza­ção pelo racis­mo. Do pon­to de vista do imag­inário da sociedade, o Brasil é um país que teria racis­mo, mas não racis­tas”.

Para a ativista, é necessário haver esforço grande para dar destaque a essa e todas as vio­lên­cias racis­tas. “Racis­mo é um sis­tema de opressão. A leg­is­lação por si só não resolve. Isso é um lado da questão. Temos um sis­tema judi­ciário que evi­ta con­denar pes­soas por esse crime porque é inafi­ançáv­el e impre­scritív­el”.

“O dedo do botão é o mesmo da chibata”

O his­to­ri­ador Hum­ber­to Miran­da, tam­bém pesquisador da Uni­ver­si­dade Fed­er­al Rur­al de Per­nam­bu­co, obser­va que o caso do meni­no Miguel tem a ver com a relação entre “Casa Grande e Sen­za­la”. “Eu cos­tu­mo diz­er que a mão que aper­tou o botão do ele­vador é aque­la mes­ma mão da chi­ba­ta. Que enten­dia a cri­ança como um futuro empre­ga­do domés­ti­co, como um futuro tra­bal­hador braçal”.

Ele avalia que há na história um exem­p­lo da objeti­fi­cação dessa cri­ança negra, pobre e per­iféri­ca que “esta­va inco­modan­do” a mul­her em um momen­to que fazia as unhas. “A história dele rev­ela esse ‘adul­to­cen­tris­mo’ bran­co e que nega a infân­cia da cri­ança negra. A gente assis­tiu a vários episó­dios onde a cri­ança é colo­ca­da como aque­le obje­to dos inter­ess­es de adul­tos”

Luta

Quan­do chega a noite, Mirtes só pen­sa em estu­dar. Pen­sa no fil­ho e no futuro que que­ria para ele. Lem­bra que antes dizia que que­ria faz­er o cur­so de admin­is­tração. O crime que o fil­ho foi víti­ma fez com que ela mudasse de ideia.

Brasília - 01/06/2023 - Multiartista gaúcho, Giuliano Lucas, faz primeira exposição individual no Sesc Caxias Foto: Zucca Produções. Foto: Giuliano Lucas/ Divulgação
Repro­dução: À noite, Mirtes pen­sa no fil­ho e no futuro que que­ria para ele– Arqui­vo pes­soal

“Eu resolvi faz­er fac­ul­dade de dire­ito jus­ta­mente para aju­dar out­ras mães a não pas­sar pelo que eu ven­ho pas­san­do hoje. Eu vou seguir a car­reira de advo­ga­da e, mais na frente, vou para a pro­mo­to­ria”.

Ela está no quin­to semes­tre do cur­so e ado­ra o que está apren­den­do, e tam­bém a força que tem rece­bido dos cole­gas e dos pro­fes­sores.

“Eu me deparei com situ­ações, com vários casos e vi que não é só o caso do Miguel. Eu falo tam­bém de cri­anças negras que foram mor­tas por con­ta do racis­mo e cri­anças vivas pas­san­do por isso. Assim, eu me for­t­aleço”.

Aos finais de sem­ana, diz que estu­da sem parar. Olha as fotos do fil­ho, cui­da da casa e dos son­hos para abaste­cer a certeza da jor­na­da do hoje e do aman­hã. “Eu vou lutar”.

Edição: Aline Leal

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