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História de Tia Ciata reforça resistência cultural do povo preto

Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Neste sábado, faz 170 anos que a ativista nasceu, na Bahia


Pub­li­ca­do em 13/01/2024 — 09:34 Por Cristi­na Indio do Brasil — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Neste sába­do (13) faz 170 anos que Hilária Batista de Almei­da nasceu em San­to Amaro da Purifi­cação, no recôn­ca­vo baiano. Con­heci­da no Rio de Janeiro como Tia Cia­ta, em abril faz cem anos que ela fale­ceu, após vida de inten­sa par­tic­i­pação na preser­vação da cul­tura brasileira, espe­cial­mente, da pop­u­lação pre­ta e no for­t­alec­i­men­to do can­domblé con­tra a intol­erân­cia reli­giosa.

A atu­ação de Tia Cia­ta é con­sid­er­a­da espe­cial­mente impor­tante na for­mação do sam­ba em ter­ras car­i­o­cas. Entre tan­tas pes­soas, ela rece­bia em sua casa, que era tam­bém o seu ter­reiro, a chama­da san­tís­si­ma trindade do sam­ba, com­pos­ta por Don­ga, Pixin­guin­ha e João da Baiana. Foi onde se jun­tou o esti­lo da musi­cal­i­dade do Rio com o sam­ba de roda da Bahia.

Rio de Janeiro (RJ), 11/01/2024 - Largo João da Baiana, na Pedra do Sal, zona portuária do Rio de Janeiro, tradicional reduto do samba. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução: Tia Cia­ta é hom­e­nagea­da em muro do Largo João da Baiana, na Pedra do Sal, zona por­tuária do Rio de Janeiro, tradi­cional redu­to do sam­ba.- Tomaz Silva/Agência Brasil

“Enquan­to na casa de Tia Cia­ta tin­ha os rit­u­ais de can­domblé, depois, como acon­tece até hoje, é o sam­ba que graça. Primeiro tem as obri­gações reli­giosas, depois tem a fes­ta. Todo mun­do sam­ba e todo mun­do dança. É a con­frat­er­niza­ção. É aquilom­ba­men­to com nos­sas músi­cas de base africana”, comen­tou a pro­fes­so­ra da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ), douto­ra em filosofia e em história com­para­da, Hele­na Theodoro, em entre­vista à Agên­cia Brasil. A espe­cial­ista desta­ca que esse envolvi­men­to musi­cal de Tia Cia­ta resul­tou ain­da na cri­ação das esco­las de sam­ba com os primeiros des­files na Praça Onze, próx­i­mo a casa dela.

“Quan­do fazia isso, pro­te­gia essas duas expressões impor­tantes da nos­sa cul­tura ances­tral”, com­ple­tou à Agên­cia Brasil, o babal­a­wo Ivanir dos San­tos, inter­locu­tor da Comis­são de Com­bate à Intol­erân­cia Reli­giosa do Rio de Janeiro (CCIR) e doutor em História pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ).

Candomblé

A reli­giosi­dade sem­pre foi muito pre­sente na vida de Tia Cia­ta. Fil­ha de Oxum, aos 16 anos já par­ticipou da fun­dação da Irman­dade da Boa Morte, em Cachoeira, tam­bém uma cidade do recôn­ca­vo baiano. A irman­dade con­tin­ua até hoje graças à resistên­cia das seguido­ras. No can­domblé, Hilária foi ini­ci­a­da na casa do babal­a­wo Bámg­bósé Òbítíkò, da nação Ketu. Chegou ao Rio com uma fil­ha quan­do tin­ha 22 anos e foi na cidade que se tornou Mãe-Peque­na de João de Alabá, função que dá suporte ao líder do ter­reiro, tam­bém chama­do de bar­racão. Na con­tinuidade dos pre­ceitos da religião, se tornou uma ialorixá, uma mãe de san­to.

Na cidade, se casou com o fun­cionário públi­co João Bap­tista da Sil­va e a família cresceu com mais 14 fil­hos. Morou em diver­sos endereços na região cen­tral do Rio, como a Pedra do Sal, pon­to de refer­ên­cia na área con­heci­da como Peque­na África; no Beco João Iná­cio; nas ruas da Alfân­de­ga, Gen­er­al Pedra e dos Cajueiros. Mas foi na casa da Rua Vis­conde de Itaú­na que o encon­tro da cul­tura com a religião ficou mais forte. O casarão históri­co não existe mais. Toda a área foi demol­i­da para a con­strução da Aveni­da Pres­i­dente Var­gas, uma das vias mais movi­men­tadas da cap­i­tal flu­mi­nense.

Na casa da Rua da Alfân­de­ga, onde hoje é uma loja de roupas fem­i­ni­nas, nasceu em 1909 o músi­co e com­pos­i­tor Bucy Mor­eira, neto de Tia Cia­ta e pai de Gra­cy Mary Mor­eira, a pres­i­dente da Casa Tia Cia­ta, um pon­to de cul­tura na Rua Cameri­no, 5, que per­mite ao vis­i­tante con­hecer a história des­ta impor­tante per­son­agem brasileira.

Rio de Janeiro (RJ) 11/01/2024 – Entevista com Gracy Mary Moreira, bisneta de Tia Ciata e sambista, presidente do espaço cultural Casa da Tia Ciata. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Ente­vista com Gra­cy Mary Mor­eira, bis­ne­ta de Tia Cia­ta e sam­bista, pres­i­dente do espaço cul­tur­al Casa da Tia Cia­ta — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Eu vejo que a força da Tia Cia­ta está rep­re­sen­ta­da em vários locais. Não é só no sam­ba, mas em out­ros lugares. A gente pode diz­er que ela atu­ou tam­bém como assis­tente social. Inde­pen­dente das fes­tas, onde tin­ha mui­ta comi­da, ela ofer­e­cia comi­da para as pes­soas que bati­am a sua por­ta”, apon­tou a bis­ne­ta à reportagem da Agên­cia Brasil, acres­cen­tan­do que Tia Cia­ta ain­da aju­da­va a localizar as famílias de negros que chegavam no por­to do Rio.

“Quan­do a gente fala dela, a gente fala na plu­ral­i­dade e na diver­si­dade que ela con­seguiu colo­car na casa dela. Com isso, Heitor dos Praz­eres, ven­do aque­las pes­soas, os islâmi­cos, os judeus, ciganos descen­dentes de África, começou a diz­er que a casa de Tia Cia­ta era a cap­i­tal de uma África peque­na que depois ficou como a Peque­na África”, refletiu a bis­ne­ta.

Gra­cy con­tou ain­da que a bisavó tin­ha um meio de burlar a repressão poli­cial que havia con­tra os sam­bis­tas. “A polí­cia batia na casa de Tia Cia­ta e ela tin­ha uma exper­tise de mudar o gênero musi­cal. Dizia que ali não esta­va tocan­do sam­ba e esta­va tocan­do choro, que não era proibido. Meu pai fala­va isso dire­to. Tia Cia­ta foi uma mul­her plur­al e à frente do seu tem­po”, con­tou.

Economia

Na visão de Hele­na Theodoro, Tia Cia­ta lid­er­ou um movi­men­to econômi­co infor­mal, que asse­gurou ren­da para mul­heres quituteiras. Tudo começou quan­do, vesti­da de baiana, ela mon­tou um tab­uleiro no cen­tro do Rio para vender acara­jés e foi se jun­tan­do a out­ras mul­heres que com o tra­bal­ho pas­saram a garan­tir a ren­da da família. O lugar é o Largo da Car­i­o­ca, que a par­tir daque­le momen­to começou a ser chama­do tam­bém de Tab­uleiro da Baiana. “O que traz com Tia Cia­ta é a inde­pendên­cia econômi­ca e cul­tur­al das mul­heres pre­tas do Rio de Janeiro”, afir­mou a pro­fes­so­ra.

“Ela con­soli­dou real­mente um espaço de empodera­men­to da mul­her negra, um espaço de bom con­vívio”, pon­tu­ou Gra­cy.

Segun­do Hele­na Theodoro, além dessa força, as mul­heres pas­sam a influ­en­ciar a políti­ca. Tia Cia­ta foi procu­ra­da por asses­sores do pres­i­dente Wences­lau Braz para ver se ela pode­ria curar uma feri­da que ele tin­ha na per­na e não fecha­va nun­ca. Ela foi ao Palá­cio do Catete, na época sede da presidên­cia da Repúbli­ca do Brasil.

“Depois de um jogo [de búzios para con­sul­ta aos orixás] ela fez uma infusão de ervas e foi ao Palá­cio do Catete. Ela ban­hou as per­nas do pres­i­dente e falou que em três dias ia secar e ele ia ficar cura­do. E foi isso que acon­te­ceu”, rela­tou Gra­cy.

Em agradec­i­men­to, o pres­i­dente deter­mi­nou que a polí­cia deix­as­se de faz­er oper­ações de repressão no redu­to de sam­bis­tas que era a casa de Tia Cia­ta. “O mari­do dela gan­hou um emprego e ela teve autor­iza­ção para tocar os seus atabaques e faz­er seus encon­tros de sam­ba”, disse Hele­na Theodoro.

“Ela foi uma estrate­gista bril­hante. Já naque­le perío­do difí­cil de um códi­go crim­i­nal que man­da­va pren­der e tomar os uten­sílios reli­giosos, ela criou esta rede de pro­teção, a par­tir da sua influên­cia com pes­soas impor­tantes aten­di­das por ela. Ela fazia isso como pro­teção para essas cul­turas, tan­to espir­i­tu­al, como a do sam­ba e a das comi­das”, apon­tou Ivanir dos San­tos.

Rio de Janeiro (RJ) 11/01/2024 – Espaço cultural Casa da Tia Ciata. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Espaço cul­tur­al Casa da Tia Cia­ta — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Preservação

Para a bis­ne­ta, a força da sua ances­tral ali­men­ta atual­mente o dese­jo de preser­vação do seu lega­do, que é nota­do em uma vas­ta região do Rio.

“A reafir­mação desse ter­ritório da Peque­na África é muito impor­tante e Tia Cia­ta está inseri­da nis­so. Você pas­sa em qual­quer lugar aqui, tan­to no Largo da Prain­ha, tem imagem da Tia Cia­ta, na Pedra do Sal, no Mor­ro da Con­ceição, no Mor­ro da Providên­cia. As pes­soas abraçan­do e recon­hecen­do todas as ati­tudes e expressões que Tia Cia­ta trouxe. Esse é o lega­do dela”, indi­cou.

A pro­fes­so­ra Hele­na Theodoro lem­brou que Tia Cia­ta tam­bém cos­tu­ma­va se reunir com esti­vadores, muitos eram escrav­iza­dos lib­er­tos, e que os encon­tros der­am origem ao primeiro sindi­ca­to do Rio for­ma­do pela cat­e­go­ria, con­sid­er­a­da forte nas reivin­di­cações. “São os primeiros tra­bal­hadores que cri­am o sindi­ca­to da resistên­cia. Era uma cat­e­go­ria muito forte e eram todos jongueiros [que dançavam jon­go de origem africana], inclu­sive por isso o Império Ser­ra­no é vis­to como uma esco­la sindi­cal­ista”, con­cluiu.

Oralidade

Tia Cia­ta pas­sou os seus con­hec­i­men­tos para pes­soas da família, inte­grantes do can­domblé e do sam­ba. E foi por meio da oral­i­dade que o lega­do foi pas­sa­do para o neto e chegou à bis­ne­ta. “Ela con­seguiu que o meu pai apren­desse para pas­sar para as futuras ger­ações”, comen­tou Gra­cy, que teve difi­cul­dade em explicar o sen­ti­men­to de estar à frente da Casa Tia Cia­ta, guardan­do a memória da bisavó.

“Não ten­ho nem palavras para expres­sar. É um amor, é um car­in­ho tão grande de mostrar essa bagagem cul­tur­al que a Tia Cia­ta nos deixou e trazen­do isso de um modo ver­dadeiro para que as pes­soas enten­dam todo o proces­so. É mui­ta respon­s­abil­i­dade”, disse emo­ciona­da.

Rio de Janeiro (RJ) 11/01/2024 – Espaço cultural Casa da Tia Ciata. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Espaço cul­tur­al Casa da Tia Cia­ta — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

O vis­i­tante da Casa Tia Cia­ta pode tam­bém con­tratar um pas­seio guia­do, no qual vai per­cor­rer todos os pon­tos impor­tantes da região da Peque­na África, que segun­do o babal­a­wo, era orig­i­nal­mente uma área muito maior do que se mostra atual­mente, porque ia des­de a região por­tuária até o bair­ro do Está­cio, na região cen­tral do Rio.

“Tia Cia­ta tem uma importân­cia enorme. Ela rep­re­sen­ta a mul­her inde­pen­dente, tra­bal­hado­ra, reli­giosa, dona do seu nar­iz e admin­istrado­ra com lid­er­ança comu­nitária”, con­cluiu Hele­na Theodoro.

O espaço cul­tur­al Casa da Tia Cia­ta vai con­tar com pro­gra­mação espe­cial em comem­o­ração à data de nasci­men­to da “matri­ar­ca do sam­ba”.

Edição: Aline Leal

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