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Historiadores negros criticam legado heroico de Duque de Caxias

Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Patrono do Exército brasileiro nasceu há 220 anos no Rio de Janeiro


Pub­li­ca­do em 25/08/2023 — 10:13 Por Pedro Rafael Vilela — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Paci­fi­cador e sol­da­do de vocação, “seus atos de bravu­ra, de mag­na­n­im­i­dade e de respeito à vida humana con­quis­taram a esti­ma e o recon­hec­i­men­to dos adver­sários”. Geno­ci­da e racista, lid­er­ou uma repressão mil­i­tar que “matou, de for­ma atroz, cer­ca de 10 mil pes­soas entre a pop­u­lação pobre, negros e mestiços”.

Descrições com­ple­ta­mente opostas, mas que tratam do mes­mo sujeito: Luís Alves de Lima e Sil­va, o Duque de Cax­i­as. A primeira está no site do Exérci­to brasileiro, do qual ele é o patrono. A segun­da, no site Gale­ria de Racis­tas, pro­je­to ide­al­iza­do pelo Cole­ti­vo de His­to­ri­adores Negros Tere­sa de Benguela, pelo site Notí­cia Pre­ta e por um grupo de pub­lic­itários negros. As difer­enças mostram con­tro­vér­sias entre a história e a imagem do homem que nasceu há exatos 220 anos, em 25 de agos­to de 1803. Data em que até hoje é comem­o­ra­do o Dia do Sol­da­do.

Cax­i­as é figu­ra comum nas pais­agens urbanas do país. Municí­pios, insta­lações e mon­u­men­tos hom­e­nageiam o mil­i­tar. Há está­tuas públi­cas dele em lugares como Curiti­ba (PR), Marabá (PA), Ipameri (GO), Rio de Janeiro (RJ), San­to Ânge­lo (RS), Vitória (ES), Por­to Ale­gre (RS) e São Paulo (SP).

Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 - O Pantheon de Caxias, monumento em homenagem ao Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 — O Pan­theon de Cax­i­as, mon­u­men­to em hom­e­nagem ao Duque de Cax­i­as, patrono do Exérci­to Brasileiro, em frente ao Palá­cio Duque de Cax­i­as, sede do Coman­do Mil­i­tar do Leste. Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Por muito tem­po, a nar­ra­ti­va que exal­ta os feitos e o caráter de Cax­i­as foi hegemôni­ca na sociedade. Hoje ela é sus­ten­ta­da prin­ci­pal­mente den­tro das insti­tu­ições mil­itares. Entre os his­to­ri­adores, há con­sen­so de que para enten­der mel­hor a tra­jetória do mil­i­tar é pre­ciso, primeiro, descon­stru­ir o cul­to cri­a­do em torno dele na primeira metade do sécu­lo 20. Cax­i­as nem sem­pre foi con­sid­er­a­do o mod­e­lo ide­al de sol­da­do da pátria.

Construindo o mito

Um arti­go do pesquisador Cel­so Cas­tro, da Fun­dação Getulio Var­gas, mostra que des­de a Procla­mação da Repúbli­ca, em 1889, o Exérci­to Brasileiro vivia um proces­so de crise inter­na, com divisões pro­fun­das entre os mem­bros da insti­tu­ição. Elas envolvi­am questões doutrinárias, orga­ni­za­cionais e políti­cas.

Um pro­je­to inter­no começou a gan­har força e con­sid­er­a­va que, para unir o Exérci­to, era pre­ciso con­stru­ir nova iden­ti­dade insti­tu­cional e novos sím­bo­los. A escol­ha de um patrono e de um mod­e­lo de sol­da­do era parte impor­tante desse proces­so. Até então, o gen­er­al Manuel Luís Osório era o prin­ci­pal herói das forças brasileiras. E a prin­ci­pal comem­o­ração mil­i­tar ocor­ria no dia 24 de maio, em refer­ên­cia à Batal­ha de Tuiu­ti, na Guer­ra do Paraguai. Era con­heci­da pop­u­lar­mente como O Dia do Exérci­to ou A Fes­ta do Exérci­to.

Nas primeiras décadas do sécu­lo 20, o nome de Cax­i­as pas­sou a ser vis­to como mais rep­re­sen­ta­ti­vo dos novos inter­ess­es mil­itares e políti­cos do perío­do. Em 1923, o Insti­tu­to Históri­co e Geográ­fi­co Brasileiro (IHGB) propôs uma cel­e­bração ofi­cial para o Duque, que foi aten­di­da pelo min­istro do Exérci­to no mes­mo ano. A Fes­ta de Cax­i­as entrou ofi­cial­mente no cal­endário mil­i­tar. Em 1925, um avi­so min­is­te­r­i­al ofi­cial­i­zou o dia de nasci­men­to de Cax­i­as como Dia do Sol­da­do em todo o país, data que con­tin­ua sendo comem­o­ra­da nos dias atu­ais.

Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 - O Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste do Exército Brasileiro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 — O Palá­cio Duque de Cax­i­as, sede do Coman­do Mil­i­tar do Leste do Exérci­to Brasileiro. Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Ao lon­go da déca­da de 30, prin­ci­pal­mente durante a ditadu­ra do Esta­do Novo (1937–1945), o fechamen­to políti­co do país foi acom­pan­hado de uma nar­ra­ti­va mil­i­tar que evo­ca­va Cax­i­as como sím­bo­lo de autori­dade, dis­ci­plina e união. Val­ores que inter­es­savam aos líderes das Forças Armadas e do próprio Esta­do brasileiro.

Em 1935, o então Forte do Vigia, no Leme (zona sul do Rio de Janeiro), mudou de nome para o atu­al Forte Duque de Cax­i­as. O mar­co mais rep­re­sen­ta­ti­vo veio em 1949, quan­do o pré­dio do Min­istério da Guer­ra, inau­gu­ra­do na Aveni­da Pres­i­dente Var­gas (cen­tro do Rio) foi bati­za­do de Palá­cio Duque de Cax­i­as. Uma está­tua do mil­i­tar, que esta­va no Largo do Macha­do, foi trans­feri­da para a frente do pré­dio. Tam­bém foi con­struí­do um pan­teão na área, que rece­beu os restos mor­tais de Cax­i­as, da esposa e do fil­ho, que estavam no cemitério São João Batista.

Patrono do Exército

Um decre­to do gov­er­no fed­er­al em 1962 ofi­cial­i­zou Duque de Cax­i­as como o patrono do Exérci­to Brasileiro. No site ofi­cial a insti­tu­ição, uma biografia ressalta como ele foi gal­gan­do posições nas patentes mil­itares e na hier­ar­quia da nobreza do sécu­lo 19. Os títu­los de marechal e duque vier­am depois das atu­ações na Guer­ra da Cis­plati­na (1825–1828), na Bal­a­ia­da (1838–1841), na Rev­olução Far­roupil­ha (1835–1845), na Guer­ra do Paraguai (1864–1870) e con­tra movi­men­tos de inde­pendên­cia em Minas Gerais, São Paulo e na Bahia.

O patrono ain­da é um dos nomes mais cel­e­bra­dos em pub­li­cações mil­itares. Uma bus­ca pelo ver­bete “Cax­i­as” na Bib­liote­ca Dig­i­tal do Exérci­to encon­tra 504 itens. Dess­es, 476 se ref­er­em ao perío­do entre 2000 e 2023. Em relação ao con­teú­do, mono­grafias mais recentes do acer­vo trazem anális­es pre­dom­i­nan­te­mente pos­i­ti­vas. Um tra­bal­ho de con­clusão do Cur­so de Ofi­ci­ais Médi­cos, por exem­p­lo, elo­gia Cax­i­as pela “com­petên­cia lid­era­cional e a habil­i­dade de nego­ciar” durante os con­fli­tos da Bal­a­ia­da e da Rev­olução Far­roupil­ha. Em out­ro tex­to, pro­duzi­do na espe­cial­iza­ção em Ciên­cias Mil­itares do Exérci­to, o autor afir­ma que Cax­i­as criou “um mod­e­lo de lid­er­ança que via­bi­li­zou a vitória brasileira” na Guer­ra do Paraguai e seria, por­tan­to, “um exem­p­lo a ser segui­do no que se ref­ere à união da tropa”.

Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 - O Pantheon de Caxias, monumento em homenagem ao Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 — O Pan­theon de Cax­i­as, mon­u­men­to em hom­e­nagem ao Duque de Cax­i­as, patrono do Exérci­to Brasileiro, em frente ao Palá­cio Duque de Cax­i­as, sede do Coman­do Mil­i­tar do Leste. Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Derrubando o mito

Em 2008, a his­to­ri­ado­ra Adri­ana Bar­reto de Souza pub­li­cou o livro Duque de Cax­i­as: o homem por trás do mon­u­men­to. Em entre­vista à Agên­cia Brasil, ela expli­ca que a imagem insti­tu­cional do mil­i­tar é basea­da em pelo menos dois mitos que não se sus­ten­tam his­tori­ca­mente. O primeiro deles diz respeito ao rig­or e à dis­ci­plina. É comum uma pes­soa com essas car­ac­terís­ti­cas ser chama­da de “cax­i­as”.

“A for­mação na Acad­e­mia Mil­i­tar no iní­cio do sécu­lo 19, quan­do o jovem Luís Alves de Lima e Sil­va (futuro Duque de Cax­i­as) a fre­quen­tou, fun­ciona­va pre­cari­a­mente e, para os padrões atu­ais, era total­mente desmil­i­ta­riza­da: o regime era de exter­na­to, as regras dis­ci­pli­nares eram as mes­mas das esco­las civis e os alunos sequer usavam uni­formes”, diz a his­to­ri­ado­ra. “O padrão atu­al, que faz uma asso­ci­ação dire­ta entre a car­reira mil­i­tar e a incor­po­ração de um con­jun­to de val­ores ori­en­ta­dos por uma dis­ci­plina rig­orosa, pela aquisição de con­hec­i­men­tos téc­ni­cos especí­fi­cos e por uma forte unidade cor­po­ra­ti­va, não valia para o Exérci­to do sécu­lo 19”.

Out­ro mito é o de que Cax­i­as não se envolvia em questões políti­cas. Segun­do Adri­ana Bar­reto, isso era sim­ples­mente impos­sív­el na época. Todas as patentes altas eram dis­tribuí­das dire­ta­mente pelo monar­ca brasileiro e ess­es mil­itares eram parte con­sti­tu­inte da Corte Impe­r­i­al. Além dis­so, Cax­i­as tin­ha vín­cu­lo par­tidário bem explíc­i­to. O cur­rícu­lo políti­co é exten­so: chefe mil­i­tar do Par­tido Con­ser­vador; dep­uta­do pelo Maran­hão em 1841, pres­i­dente das provín­cias do Maran­hão (1839–1841) e do Rio Grande do Sul (1842–1846 e 1851–1852); vice-pres­i­dente de São Paulo (1842), senador pelo Rio Grande do Sul em 1845 (car­go vitalí­cio); e min­istro da Guer­ra em 1853, 1861 e 1875.

Galeria de Racistas

Com o obje­ti­vo de descon­tru­ir nar­ra­ti­vas históri­c­as enviesadas, o Cole­ti­vo de His­to­ri­adores Negros Tere­sa de Benguela criou a Gale­ria de Racis­tas. O site lista mon­u­men­tos de brasileiros que come­ter­am crimes con­tra a humanidade. O pro­je­to surgiu no con­tex­to dos protestos pela morte de George Floyd, nos Esta­dos Unidos, e a der­ruba­da da está­tua de um traf­i­cante de escravos na Inglater­ra, ambos em 2020. O Duque de Cax­i­as foi incluí­do na gale­ria por causa de ataques con­tra escrav­iza­dos e quilom­bo­las.

“Podemos falar em um herói com a está­tua suja de sangue. Um exem­p­lo é que ele agiu de for­ma difer­ente na Rev­olução Far­roupil­ha, lid­er­a­da por uma pop­u­lação mais bran­ca, de descendên­cia europeia, e na Bal­a­ia­da, uma revol­ta que tin­ha quilom­bo­las, uma pop­u­lação negra e pes­soas de origem amerín­dia. Foi por causa desse últi­mo con­fli­to que rece­beu o nome de Cax­i­as: era o mes­mo nome da cidade no Maran­hão onde a repressão lid­er­a­da por ele matou cer­ca de 10 mil pes­soas”, diz Jorge San­tana, do Cole­ti­vo de His­to­ri­adores Negros.

Segun­do o his­to­ri­ador, o racis­mo de Cax­i­as ficou mais evi­dente quan­do ele lidou com dois gru­pos difer­entes da Rev­olução Far­roupil­ha. Com os líderes bran­cos, o mil­i­tar preferiu nego­ciar do que ir para o con­fron­to arma­do. E o acor­do envolveu a traição a um grupo de sol­da­dos negros que tin­ha se jun­ta­do à Rev­olução, com a promes­sa de ser lib­er­ta­do ao fim do con­fli­to. Um dos coman­dantes far­roupil­has, David Can­abar­ro, envi­ou car­ta para Cax­i­as com as coor­de­nadas geográ­fi­cas do local onde estavam os sol­da­dos que ficaram con­heci­dos como lan­ceiros negros. Pelo menos 100 foram mor­tos pelo Exérci­to, no que ficou con­heci­do como o Mas­sacre dos Poron­gos.

Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 - O Pantheon de Caxias, monumento em homenagem ao Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro (RJ), 24/08/2023 — O Pan­theon de Cax­i­as, mon­u­men­to em hom­e­nagem ao Duque de Cax­i­as, patrono do Exérci­to Brasileiro, em frente ao Palá­cio Duque de Cax­i­as, sede do Coman­do Mil­i­tar do Leste. Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Ele agiu com repressão arma­da, mas tam­bém com estraté­gias de espi­onagem, sub­or­no e intri­ga. Porque ele apren­deu que uma maneira de man­ter a hier­ar­quia da sociedade não era somente por meio do açoite, mas tam­bém por meio de out­ras estraté­gias”, com­ple­men­ta a his­to­ri­ado­ra Camil­la Fogaça.

Um novo patrono?

Já que o nome de Cax­i­as sim­boliza­va um pro­je­to políti­co especí­fi­co do iní­cio do sécu­lo 20, seria o caso de escol­her um novo patrono para o Exérci­to?

“O Cax­i­as foi con­struí­do em torno de uma imagem dis­ci­plina­da, hier­ar­quiza­da e apolíti­ca. É um tipo de Exérci­to mais vio­len­to que vai ser exal­ta­do em 1920. E ago­ra, qual a imagem que se quer pas­sar do Exérci­to?”, ques­tiona Camil­la Fogaça. “Mon­u­men­tos como os de Cax­i­as emitem val­ores. Quer­er que ele con­tin­ue sendo um herói e um paci­fi­cador nos ter­mos do pas­sa­do é muito prob­lemáti­co. Ain­da mais quan­do a gente tem hoje assas­si­natos de cri­anças por agentes do Esta­do”.

“Não há dúvi­das de que ele colo­cou suas habil­i­dades de mil­i­tar a serviço de um pro­je­to de Brasil ultra­con­ser­vador. Como chefe mil­i­tar do Par­tido Con­ser­vador, defend­eu uma monar­quia assen­ta­da na escravidão”, anal­isa a his­to­ri­ado­ra Adri­ana Bar­reto. “Uma cul­tura mil­i­tar que, infe­liz­mente, per­siste ain­da nos nos­sos dias: a de um Exérci­to que se con­stru­iu não na defe­sa do inimi­go estrangeiro, mas na repressão a cidadãos brasileiros e a out­ros pro­je­tos políti­cos de Brasil”.

“A história é sem­pre fei­ta em relação ao pre­sente. Então, o pre­sente olha para o pas­sa­do e vê aque­las ações como erradas, crim­i­nosas e incom­patíveis com a car­ta con­sti­tu­cional vigente de 1988. Por­tan­to, para a sociedade do pre­sente, essa figu­ra não pode estar em um pedestal como um herói, porque o herói é um mod­e­lo que inspi­ra a sociedade. Com uma Con­sti­tu­ição que con­de­na a escravidão e os crimes de guer­ra, ter um herói nacional como Cax­i­as é uma con­tradição”, diz Jorge San­tana.

A reportagem da Agên­cia Brasil entrou em con­ta­to com o Exérci­to para comen­tar as críti­cas ao patrono da insti­tu­ição, mas até o momen­to não hou­ve respos­ta.

Edição: Graça Adju­to

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