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Imprensa negra: 190 anos de luta antirracista ligam passado e presente

Repro­dução: © Bib­liote­ca Nacional do Rio de Janeiro

Comunicadores negros têm se levantado contra desigualdades históricas


Pub­li­ca­do em 14/09/2023 — 07:02 Por Rafael Car­doso — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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“Crim­i­noso seria o homem de cor, se na crise mais arrisca­da, na ocasião em que os agentes do Poder desem­bain­ham as espadas dan­do pro­fun­dos golpes na Con­sti­tu­ição, na Liber­dade (…) guardasse mudo silên­cio, fil­ho da coação, ou do ter­ror.”

O tex­to aci­ma está em uma das edições do primeiro jor­nal da impren­sa negra no Brasil: O Mula­to ou O Homem de Côr, cri­a­do há exatos 190 anos, no dia 14 de setem­bro de 1833. A men­sagem é rep­re­sen­ta­ti­va de uma mis­são que une comu­ni­cadores negros do pas­sa­do e do pre­sente: a de não se calar diante da intim­i­dação, da vio­lação de dire­itos e de ameaças à liber­dade.

Naque­le con­tex­to, o per­iódi­co denun­ci­a­va a prisão arbi­trária de um homem negro, Mau­rí­cio José de Lafuente, acu­sa­do de vadi­agem e de porte ile­gal de arma. O que foi pronta­mente rebati­do por uma série de provas. Se avançar­mos para os dias atu­ais, há uma clara con­tinuidade. Movi­men­tos soci­ais e pesquisadores têm denun­ci­a­do inces­san­te­mente as abor­da­gens poli­ci­ais racis­tas e a crim­i­nal­iza­ção sis­temáti­ca de negros: o grupo responde por 68% dos que estão hoje em presí­dios no país, segun­do o Anuário do Fórum Brasileiro de Segu­rança Públi­ca.

Entre as difer­entes for­mas de enfrenta­men­to do racis­mo, o jor­nal­is­mo vem sendo, de acor­do com espe­cial­is­tas ouvi­dos pela Agên­cia Brasil, uma fer­ra­men­ta impor­tante de denún­cia, debate e reflexão durante quase dois sécu­los. Diver­sas vozes e canais de comu­ni­cação têm ofer­e­ci­do alter­na­ti­vas aos dis­cur­sos dom­i­nantes de exclusão e desigual­dade.

“Des­de o iní­cio até ago­ra, os veícu­los da impren­sa negra têm em comum esse sen­ti­men­to de não se sen­tirem rep­re­sen­ta­dos e con­tem­pla­dos da maneira cor­re­ta pela mídia hegemôni­ca empre­sar­i­al. Eles trazem nar­ra­ti­vas impor­tantes de autor­refer­ên­cia, já que são feitos por pes­soas negras”, diz Jonas Pin­heiro, jor­nal­ista na Revista Afir­ma­ti­va.

“Quan­do as pes­soas con­tam as próprias histórias, trazem deter­mi­nadas sen­si­bil­i­dades e per­spec­ti­vas que são neg­li­gen­ci­adas pela grande mídia empre­sar­i­al, que na maio­r­ia das vezes é racista”, com­ple­ta Pin­heiro, pesquisador na área de comu­ni­cação e cul­tura pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al da Bahia (UFBA).

Homem de Côr: o início

Os primeiros capí­tu­los da impren­sa negra no Brasil podem ser con­ta­dos a par­tir da tra­jetória de Fran­cis­co de Paula Brito, um homem negro que nasceu em 1809 no Rio de Janeiro. Quan­do jovem, apren­deu a arte grá­fi­ca na Tipografia Impe­r­i­al e Nacional, ex-Impressão Régia, e seguiu car­reira em out­ros empreendi­men­tos como com­pos­i­tor, dire­tor das pren­sas, reda­tor, tradu­tor e con­tista.

Fran­cis­co de Paula Brito é recon­heci­do por dois feitos históri­cos: ter sido o primeiro edi­tor de Macha­do de Assis, maior nome da lit­er­atu­ra brasileira, e o edi­tor do pasquim O Homem de Côr, primeiro per­iódi­co da impren­sa negra no país. Impres­so na Tipografia Flu­mi­nense de Paula Brito, do qual era pro­pri­etário, o jor­nal teve ape­nas cin­co edições, mas abriu as por­tas para todos os que viri­am depois.

A par­tir do ter­ceiro número, o nome foi muda­do para O Mula­to ou O Homem de Côr. A escravidão, ain­da em vig­or no país, não foi tema do jor­nal, que esta­va mais foca­do em denun­ciar a dis­crim­i­nação racial con­tra pes­soas negras livres. Durante o ano de 1833, uma das prin­ci­pais ban­deiras foi a de atacar as difi­cul­dades impostas aos negros para con­seguir car­gos públi­cos civis, políti­cos e mil­itares. Ain­da no mes­mo ano, entre setem­bro e novem­bro, out­ros per­iódi­cos desse seg­men­to sur­giri­am inspi­ra­dos pelo pio­neiro: Brasileiro Par­doO Cabri­toO Crioulin­ho e O Lafuente.

Demor­ari­am 43 anos até que uma nova man­i­fes­tação da impren­sa negra sur­gisse. Foi ape­nas em 1876, no Recife, que começou a cir­cu­lar o jor­nal O Homem. Pouco depois será a vez de São Paulo, com A Pátria e O Pro­gres­so, ambos em 1899, e de Por­to Ale­gre, com O Exem­p­lo, de 1892. O per­iódi­co gaú­cho teria a maior duração até ali da impren­sa negra, sendo encer­ra­do em 1930, por prob­le­mas finan­ceiros.

Rio de Janeiro (RJ), 16/03/2023 – A diretora-geral do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto concede entrevista à Agência Brasil. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução: His­to­ri­ado­ra Ana Flávia Mag­a­l­hães Pin­to apre­sen­tou dis­ser­tação sobre a impren­sa negra do sécu­lo 19 — Tomaz Silva/Agência Brasil

Na dis­ser­tação sobre impren­sa negra do sécu­lo 19, a his­to­ri­ado­ra Ana Flávia Mag­a­l­hães Pin­to apre­sen­ta uma definição do que car­ac­teri­zaria ess­es tipos de veícu­los: são “jor­nais feitos por negros; para negros; veic­u­lan­do assun­tos de inter­esse das pop­u­lações negras”. Em comum tam­bém a pos­tu­ra de desafi­ar as ten­ta­ti­vas de silen­ci­a­men­to.

“Ess­es momen­tos ini­ci­ais da impren­sa negra no Brasil demon­stram que, a despeito de inúmeros con­tratem­pos – entre os quais o próprio escrav­is­mo e seus instru­men­tos afins –, negros aqui for­mu­la­ram uma fala própria e tornaram-na públi­ca. Ain­da que não ten­ham alcança­do simul­tane­a­mente todo o ter­ritório nacional, ess­es impres­sos são parte do esforço cole­ti­vo de con­tro­lar os códi­gos da dom­i­nação e sub­vertê-los”, diz o tre­cho da dis­ser­tação de Ana Flávia. Atual­mente, ela ocu­pa o car­go de dire­to­ra-ger­al do Arqui­vo Nacional.

Século 20

Ao lon­go do sécu­lo 20, o número de veícu­los da impren­sa negra se mul­ti­pli­cou. No Rio Grande do Sul, surge o A Alvo­ra­da, pub­li­ca­do entre 1907 e 1965, com inter­rupções. Depois A Tesoura (1924), A Revol­ta (1925) e O Tagarela (1929). Em Minas Gerais, cir­cu­lam A Ver­dade (1904) e o Raça (1935). Em São Paulo, O Menelick (1915), O Xauter (1916), A Rua (1916), O Ban­deirante (1918), O Alfinete (1918), A Liber­dade (1919), A Sen­tinela (1920), Kos­mos (1922), Clarim d’Alvorada (1924), Elite (1924), Pro­gres­so (1928) e A Voz da Raça (1933). Esse últi­mo era pub­li­ca­do pela Frente Negra Brasileira (1931–1937), prin­ci­pal orga­ni­za­ção negra do país no perío­do.

Mais para a frente viri­am O Novo Hor­i­zonte (1946), Mun­do Novo (1950), Nos­so Jor­nal (1951), Notí­cias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), além das revis­tas Sen­za­la (1946) e Níger (1960). No Rio de Janeiro, destaque para A Voz da Negri­tude (1953).

190 anos da imprensa negra: luta antirracista liga passado e presente. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Repro­dução:  Jor­nal gaú­cho O Exem­p­lo foi um dos que deixaram de cir­cu­lar por prob­le­mas finan­ceiros — Bib­liote­ca Nacional do Rio de Janeiro

A maio­r­ia das pub­li­cações teve vida cur­ta. Em alguns casos, duran­do pou­cas edições e não indo além do primeiro ano de vida. O his­to­ri­ador João Paulo Lopes expli­ca que é pre­ciso levar em con­ta o con­tex­to social daque­les que pro­duzi­am e liam os per­iódi­cos.

“Os cus­tos para pub­licar um jor­nal eram altos. Geral­mente, o paga­men­to se dava por meio de rateio entre os edi­tores e os ativis­tas, se o jor­nal tivesse vín­cu­lo com algu­ma asso­ci­ação do movi­men­to negro. Out­ros con­seguiam ver­ba com pub­li­ci­dade, o que aju­da­va a custear a pub­li­cação por um tem­po maior. E out­ros depen­di­am de assi­nat­uras. E quan­do os leitores eram afe­ta­dos por crises econômi­cas, podi­am deixar de pagar pelas pub­li­cações, o que afe­ta­va a cir­cu­lação. Mas nem tudo era só finan­ceiro. De tem­pos em tem­pos, essas pub­li­cações sofri­am ataques, eram empaste­ladas em momen­tos de crise políti­ca e ditaduras”, expli­ca o his­to­ri­ador João Paulo Lopes.

190 anos da imprensa negra: luta antirracista liga passado e presente. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Repro­dução: Edição do jor­nal Quilom­bo, lid­er­a­do por Abdias Nasci­men­to — Bib­liote­ca Nacional do Rio de Janeiro

Vale men­cionar espe­cial­mente o caso do jor­nal Quilom­bo, lid­er­a­do por Abdias Nasci­men­to: políti­co, artista, ativista e cri­ador do movi­men­to cul­tur­al Teatro Exper­i­men­tal do Negro (TEN). O Quilom­bo teve dez edições entre dezem­bro de 1948 e jul­ho de 1950. E ado­tou agen­da políti­ca mar­cante con­tra “a piedade e o filantro­pis­mo avil­tantes” em relação à pop­u­lação negra, além de reforçar a importân­cia de uma luta ati­va con­tra o racis­mo no país.

Com o fim da ditadu­ra, se destacari­am jor­nais fun­da­dos por pes­soas que pas­saram pelo Movi­men­to Negro Unifi­ca­do (MNU), fun­da­do em 1978, ten­do como pau­tas cen­trais a descon­strução do “mito da democ­ra­cia racial” e a denún­cia do racis­mo estru­tur­al. Alguns exem­p­los são o Tição (1977), o Obje­ti­vo (1977), Jorne­gro (1977), Negrice (1977), O Saci (1978), Vis­sun­go (1979), Pix­aim (1979), a Voz do Negro (1984), o Áfric­as Gerais (1995), Elê­mi (1985), o Iro­hin (1996) e a revista Raça, de cir­cu­lação nacional (1996).

“O que existe em uma mar­ca comum, que conec­ta os jor­nais des­de o Homem de Côr, é a dis­crim­i­nação e o pre­con­ceito. Claro, com difer­enças de con­tex­to históri­co. No sécu­lo 19, vive­mos ain­da no seio de uma sociedade escrav­ocra­ta, e as pub­li­cações estão lev­an­tan­do questões do homem negro não escrav­iza­do nos primeiros anos do país inde­pen­dente”, diz Lopes.

“Com a abolição, a luta é con­tra o racis­mo estru­tur­al, des­do­bra­do nas mais diver­sas for­mas, frentes e caras. Nas insti­tu­ições, na polí­cia, no mer­ca­do de tra­bal­ho, nas esco­las, no cam­po, no aces­so à ter­ra”, acres­cen­ta o his­to­ri­ador.

Passado e futuro

Nesse con­jun­to de per­iódi­cos históri­cos, um em espe­cial prepara edição comem­o­ra­ti­va para res­gatar debates do pas­sa­do e repen­sá-los a luz dos prob­le­mas atu­ais: A revista Tição, de Por­to Ale­gre, que orig­i­nal­mente cir­cu­lou em 1977. Com arti­gos de jor­nal­is­tas, sociól­o­gos e pro­fes­sores, o pro­je­to pre­tende con­frontar os difer­entes con­tex­tos e anal­is­ar em que pon­tos hou­ve avanços ou retro­ces­sos nos desafios enfrenta­dos pela pop­u­lação negra no país.

Jean­ice Dias Ramos, que par­ticipou do Tição na déca­da de 1970, é uma das pes­soas que lid­er­am o pro­je­to atu­al, que depende de apoio finan­ceiro para ser final­iza­do. Mas, assim como acon­te­ceu antes, ela acred­i­ta que a importân­cia do tema há de mobi­lizar difer­entes pes­soas em torno da revista.

190 anos da imprensa negra: luta antirracista liga passado e presente. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Repro­dução:  Revista Tição, de Por­to Ale­gre, que cir­cu­lou na déca­da de 1970 — Bib­liote­ca Nacional do Rio de Janeiro

“Naque­la época, com todas as difi­cul­dades, era incrív­el o número de pes­soas que que­ri­am par­tic­i­par do Tição. As reuniões de pau­ta tin­ham até 70 pes­soas. Eram prati­ca­mente assem­bleias ou plenárias. Não era só dis­cussão entre jor­nal­is­tas, era uma comu­nidade toda queren­do par­tic­i­par”, relem­bra Jean­ice.

“E, se você obser­var as pau­tas daque­le perío­do, elas con­tin­u­am novas. Falam de questões até hoje não resolvi­das den­tro da negri­tude. Todos os tópi­cos foram apro­fun­da­dos na revista e os prob­le­mas são muito atu­ais.”

Por essa con­tinuidade históri­ca de lutas e deman­das, Jean­ice entende que os veícu­los da impren­sa negra vão con­tin­uar sendo canais de expressão e denún­cia fun­da­men­tais no país.

“A mídia negra dá condições para que a comu­nidade negra se apro­prie dos seus próprios prob­le­mas. Que con­si­ga visu­alizar e super­ar os desafios que são iner­entes aos negros. São questões soci­ais e bási­cas de sobre­vivên­cia. Somos majori­tari­a­mente pobres. E temos que lutar diari­a­mente pelo pão, pela con­dução, pelo tra­bal­ho. Não temos uma vida fácil. Fal­ta o viv­er bem para a comu­nidade negra. Quan­do um negro ado­les­cente sai de casa, a mãe fica em pâni­co. Será que essa cri­ança vol­ta para casa? Essa é a nos­sa real­i­dade.”

Edição: Juliana Andrade

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