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Indígenas usam tecnologias para manter língua e cultura vivas

São Félix do Xingu (PA) - Cerca de quatro mil indígenas participam da Semana dos Povos Indígenas. O evento começou no sábado (15) e vai até quarta-feira (19), quando é celebrado o Dia do Índio (Thiago Gomes/Agência Pará)
Repro­dução: © Thi­a­go Gomes/Agência Pará

Parte das 170 línguas indígenas no Brasil corre o risco de desaparecer


Pub­li­ca­do em 19/04/2021 — 06:15 Por Daniel Mel­lo — Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

O xok­leng é uma lín­gua fal­a­da ape­nas por uma comu­nidade indí­ge­na no Vale do Alto Ita­jaí, na região cen­tral de San­ta Cata­ri­na, onde vivem mais de 2 mil pes­soas. Boa parte das 170 lín­guas indí­ge­nas exis­tentes no Brasil corre o risco de desa­pare­cer. Por isso, des­de a déca­da de 1990, o lin­guista Nam­blá Gakran tem tra­bal­ha­do para res­gatar e man­ter vivo o idioma nati­vo. “Eu não son­hei em ser lin­guista, mas hoje eu sou”, diz o indí­ge­na sobre como se tornou um espe­cial­ista durante a luta pela preser­vação da cul­tura do seu povo.

Gakran leciona em esco­las indí­ge­nas da região e já for­mou duas tur­mas de licen­ciatu­ra inter­cul­tur­al, para que tam­bém pos­sam dar aulas e repas­sar os con­hec­i­men­tos. A pan­demia de covid-19 impediu a con­tinuidade do cur­so neste ano. No entan­to, o iso­la­men­to dev­i­do à crise san­itária tam­bém abriu a por­ta para uma peque­na ini­cia­ti­va de difusão da lín­gua nati­va.

Whatsapp

Des­de o ano pas­sa­do, a comu­nidade, que vive em áreas dis­tantes fisi­ca­mente, se aprox­i­mou por meio de um grupo de What­sapp onde com­par­til­ha seu dia a dia. Até indí­ge­nas que estão fora das aldeias, nas cidades, usam o canal para se comu­nicar com os que ain­da vivem no ter­ritório tradi­cional. A úni­ca difer­ença dos out­ros gru­pos de família e ami­gos da rede de comu­ni­cação é que nesse só é per­mi­ti­do se comu­nicar em xok­leng. “Não se pode falar em por­tuguês”, afir­ma Gakran.

Assim, as pes­soas com menos con­hec­i­men­to têm a opor­tu­nidade de praticar o idioma, espe­cial­mente em tex­to, com aque­les que têm maior domínio. “As pes­soas que falam mais ou menos a lín­gua entram no grupo e ali começam a apren­der” expli­ca o pro­fes­sor. Além dos fatos do dia a dia, como uma pescaria ou uma boa caça, o grupo, aos poucos, vai se tor­nan­do espaço para com­par­til­har as histórias tradi­cionais. “Quan­do surge uma opor­tu­nidade, nós con­ta­mos uma história do pas­sa­do”, diz.

Importância da escrita

Reforçar a escri­ta do xok­leng é um dos tra­bal­hos que Gakran desen­volve ao lon­go dos últi­mos anos e con­sid­era fun­da­men­tal para evi­tar que o idioma se per­ca. “O que fal­ta é reg­istro dessa lín­gua. Não adi­anta só falar­mos ver­bal­mente, mas é pre­ciso que a comu­nidade tam­bém pos­sa manuse­ar esse mate­r­i­al”, defende, ao destacar a importân­cia de pub­li­cações no idioma.

Foi jus­ta­mente esse tra­bal­ho de reg­istro que lev­ou Gakran a se tornar doutor em lin­guís­ti­ca. Ele con­ta que há mais de 30 anos começou a gravar as histórias da comu­nidade, con­tadas pelos anciãos, em parce­ria com um pesquisador norte-amer­i­cano. À época, a comu­nidade vivia um proces­so de afas­ta­men­to da lín­gua, impul­sion­a­do pela chega­da de muitos não indí­ge­nas, com a con­strução da Bar­ragem Norte no Rio Ita­jaí.

Hoje, ele avalia que o esforço de res­gate da lín­gua já apre­sen­ta bons resul­ta­dos. “Antes só tín­hamos falantes mais vel­hos da lín­gua mater­na. Hoje, temos cri­anças monolíngues na lín­gua xok­leng”, comen­ta. Ago­ra, ele bus­ca parce­rias com enti­dades ou empre­sas que aju­dem a finan­ciar pub­li­cações no idioma nati­vo. Segun­do o pro­fes­sor, até mes­mo o mate­r­i­al didáti­co para o ensi­no é escas­so. “A gente bus­ca parce­rias com empre­sas e orga­ni­za­ções para que pos­samos faz­er um pro­je­to que ven­ha pro­duzir mate­r­i­al dessa lín­gua”, ressalta.

Histórias ao redor do fogo

Em São Miguel das Mis­sões, no Rio Grande do Sul, o cineas­ta Ariel Orte­ga tra­bal­ha jus­ta­mente na per­spec­ti­va de res­gatar a tradição oral do povo guarani mbya, muito mais numeroso e com uma lín­gua fal­a­da em vários esta­dos brasileiros. “De man­hã, quan­do a gente acor­da­va, e todos os saberes do dia a dia eram con­ta­dos ao redor do fogo, tin­ha que prestar atenção”, lem­bra sobre uma tradição que perdeu força com a chega­da de novas ativi­dades, como as esco­las.

Em 2007, Orte­ga enx­er­gou a opor­tu­nidade de faz­er as rodas de histórias, com mitos e fatos pas­sa­dos da comu­nidade, pre­sentes nova­mente. “Com a chega­da da tec­nolo­gia, quan­do a gente teve o aces­so às câmeras de fil­mar, fomos apren­den­do que poderíamos usar essas tec­nolo­gias para res­gatar histórias anti­gas, mitolo­gias, con­ver­san­do e reg­is­tran­do essas falas dos mais vel­hos”, con­ta.

No iní­cio hou­ve descon­fi­ança, e o cineas­ta pre­cisou con­vencer aos poucos a comu­nidade. “No começo, os mais vel­hos prin­ci­pal­mente tin­ham cer­to cuida­do para não falar muito. Muitos não que­ri­am ser grava­dos”, lem­bra. Mas Orte­ga insis­tiu na neces­si­dade de que os con­hec­i­men­tos ances­trais fos­sem reg­istra­dos. “Fui expli­can­do muito bem a importân­cia desse reg­istro. Falei que muito dos nos­sos saberes e con­hec­i­men­tos foram se per­den­do porque a gente não tin­ha aces­so a essas tec­nolo­gias”.

Des­de então, Orte­ga já pro­duz­iu cin­co filmes, mes­mo com difi­cul­dades, como a fal­ta de recur­sos. “A gente faz sem grana mes­mo”, diz o artista que teve as pro­duções exibidas em diver­sos fes­ti­vais no Brasil e no exte­ri­or.

Mes­mo sendo um defen­sor do uso da tec­nolo­gia, Orte­ga diz que ten­ta aler­tar os mais jovens para os peri­gos dos novos apar­el­hos que chegam com força às aldeias. “A tec­nolo­gia de celu­lar tem muitas coisas boas. Mas ele tira uma coisa mui­ta sagra­da: a conexão com o que é real, com a natureza. Você ir pescar no rio, ver as estre­las à noite. Você não está mais ouvin­do os pás­saros cantarem. Você para de ir à casa de reza, para de med­i­tar, porque foca horas no Youtube, nas redes soci­ais”.

Edição: Graça Adju­to

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