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Intervenções urbanas mostram Brasília além da oficial

Repro­dução: © Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

Capital brasileira completa 64 anos neste domingo


Publicado em 21/04/2024 — 10:25 Por Luiz Claudio Ferreira — Repórter da Agência Brasil — Brasília

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“Vai se amar. Vai se amar. Vai se amar”. “Meu útero é sagra­do. Mas é laico”. “A água toma a for­ma do cor­po”. “Obe­deça às pare­des”. “Paulo, te amo”. “Rebe­ca, saudades”. “Lem­bra do meu bei­jo?”. “Democ­ra­cia já”. “Não deixe o futuro repe­tir o pas­sa­do”. Os pas­sos apres­sa­dos fazem os olhares mis­tu­rarem as palavras, as for­mas e os pen­sa­men­tos no andar de baixo do Eixo Rodoviário de Brasília, a prin­ci­pal aveni­da que interli­ga as asas do Plano Pilo­to.

Além das histórias ofi­ci­ais, que reme­tem a uma pais­agem arquitetôni­ca difer­en­ci­a­da, out­ro olhar pode ser explo­rado a par­tir de um cenário de inter­venções urbanas. Brasília, a jovem que com­ple­ta 64 anos neste domin­go (21), tam­bém pode ser encon­tra­da na mul­ti­pli­ci­dade de expressões que bus­cam definir belezas e desigual­dades sob o mes­mo céu.

O andar de baixo

Sob o mes­mo céu, ou sob o mes­mo teto. As pas­sagens por baixo do Eixão são ver­dadeiras gale­rias artís­ti­cas de grafites, pichações e reca­dos, de amor ou de dor. “Mas, moça, se dores fos­sem flo­res, quão flori­do seria teu coração?”, ques­tiona um ver­so sem assi­natu­ra na pas­sagem próx­i­ma à quadra 207, na Asa Norte. A babá Car­oli­na Sales, de 33 anos, olhou para os ver­sos e teve a certeza de que o coração estaria reple­to de mar­gari­das, rosas e aza­leias. Ela é morado­ra da cidade de San­to Antônio do Descober­to (GO), no Entorno do Dis­tri­to Fed­er­al, a duas horas de ônibus de onde tra­bal­ha.

Na roti­na dela, o cam­in­har apres­sa­do pelas pas­sagens sub­ter­râneas é ape­nas uma parte do per­cur­so. Pre­cisa cor­rer para pegar o ônibus. No cam­in­ho, pen­sa nos qua­tro fil­hos que deixou em casa para poder tra­bal­har e cuidar de out­ras duas cri­anças na casa de uma família que não é a sua. “Fico com o coração aper­ta­do sim.  Faço esse mes­mo cam­in­ho há cin­co anos e sem­pre pas­so por aqui. Não con­si­go ler ou ver tudo. Mas acho bom. Além dis­so, não vou me arriscar a atrav­es­sar aqui por cima, pelo Eixão”

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Na foto: Carolina Sales, 33 anos, babá. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução: Brasília — A babá Car­oli­na Sales, ao lado de ver­sos picha­dos em muro da cap­i­tal — Foto Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

Ela tem razão de ter o receio. Segun­do o Detran-DF, de 2020 a 2023, oito pedestres e um ciclista mor­reram ao ten­tar atrav­es­sar a aveni­da, que tem veloci­dade máx­i­ma de 80 quilômet­ros por hora. Porém, de acor­do com lev­an­ta­men­to do Insti­tu­to de Pesquisa e Estatís­ti­ca do Dis­tri­to Fed­er­al, mais de 45% dos entre­vis­ta­dos que moram nas redondezas da aveni­da, têm medo de inse­gu­rança. “Por isso que sem­pre ando rápi­do”, diz a babá, que son­ha ter uma clíni­ca de mas­sag­ista. Ela acha triste, à noite, haver pes­soas em situ­ação de rua que escol­hem as pas­sagens como teto e dor­mitório.

Na mes­ma cam­in­ha­da por essa pas­sarela de inter­venções urbanas, a aux­il­iar de limpeza Jane Sil­va, de 54 anos, diz que faz o mes­mo cam­in­ho des­de 2019. Ficou pen­sati­va diante do grafite de um ani­mal do cer­ra­do. “Eu já ten­tei decifrar. Ain­da não con­segui enten­der que bicho é esse. Mas, como é na pon­ta da esca­da, con­forme vou chegan­do per­to do desen­ho sig­nifi­ca que estou per­to do meu pon­to de ônibus”. Ela mora na região admin­is­tra­ti­va de Samam­ba­ia, a uma hora do tra­bal­ho.

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Na foto: Jane Silva, 54 anos, auxiliar de serviçõs gerais. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução: Brasília —  A aux­il­iar de serviços gerais, Jane Sil­va, diz que fica pen­sati­va diante de pichações — Foto Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

Olhares para cima

Sob a luz do céu de Brasília, parte do cen­tro com­er­cial pode ser admi­ra­do, como os dor­mentes do viadu­to da Gale­ria dos Esta­dos que são como molduras de telas. Grafites de difer­entes autores e temáti­cas emoldu­ram tam­bém o son­ho da desem­pre­ga­da Cristi­na Car­val­ho, de 41 anos de idade.

Com uma pla­ca que ergue com uma das mãos, pede qual­quer aju­da. Com a out­ra mão, segu­ra a vasil­ha para que alguém com­pre um docin­ho. Ela dese­ja con­seguir algum dia adquirir um car­rin­ho para vender açaí. Atual­mente, mora de favor com dois fil­hos na casa de um par­ente em uma quitinete na Asa Sul. O viadu­to da Gale­ria dos Esta­dos foi pin­ta­do por mais de 100 artis­tas em 2021, durante even­to de grafite. As pin­turas deslum­bram quem pas­sa pelo local.

Cristi­na é mãe solo e pen­sa que pre­cisa soz­in­ha con­stru­ir sua própria pais­agem. “Fico aqui em pé por três horas. Essas obras me fazem com­pan­hia. Me fazem refle­tir sobre a min­ha vida”. Ima­gens de ani­mais do cer­ra­do, grafites, ver­sos de amor… “Eu tam­bém que­ria escr­ev­er um livro. Já son­hei ser ped­a­goga. Hoje, que­ria ter um tra­bal­ho fixo como domés­ti­ca. Mes­mo assim, eu amo Brasília. É a min­ha cidade. Mes­mo quan­do estou com prob­le­mas, ess­es desen­hos me fazem bem”.

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução: Brasília — Pichações são vis­tas em viadu­tos e pas­sare­las de Brasília — Foto Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

Envolvimento

Uma das artis­tas grafiteiras que tra­bal­ha com cenários de pais­agem é Brixx Fur­ta­do. Ela começou a pin­tar com 13 anos de idade. “Eu sem­pre fui muito tími­da. Eu vi no grafite uma pos­si­bil­i­dade de poder me aprox­i­mar de out­ras pes­soas”. Diz que, ao pin­tar na rua, se envolver com as pes­soas é inevitáv­el. Ela começou com a práti­ca em 2010. “Pas­sei a con­hecer out­ros artis­tas. O grafite acabou abrindo por­tas para que eu pudesse estar em out­ros espaços. Fui con­vi­da­da para par­tic­i­par de exposições e entrei no cenário da arte de out­ra for­ma”, afir­ma.

Brixx entende que a cidade pode ser uma grande tela, já que as gale­rias de artes plás­ti­cas nem sem­pre são acessíveis. “A arte urbana é muito democráti­ca. Como sem­pre fui uma mul­her per­iféri­ca, a rua é onde me recon­heço”. Um dos lugares para recon­hecer o tra­bal­ho da artista é a W3 Sul, uma aveni­da que, antes dos shop­ping cen­ters da cidade,  fun­ciona­va como um dos mais impor­tantes pon­tos com­er­ci­ais da cap­i­tal. “Era um lugar muito fácil para eu poder estar. E a W3 tem mui­ta por­ta de comér­cio. Hoje, quase todas as por­tas são grafi­tadas. Mas era um espaço muito tran­qui­lo para pin­tar”.

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução: Brasília — Inter­venções urbanas no DF — Foto Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

Ela recor­da que a aveni­da era pon­to onde muitos grafiteiros gostavam de ir pin­tar em dia de domin­go de man­hã. “Um lugar com baixo poli­ci­a­men­to. Então, a W3 fica­va bem deser­ta”. Mas apon­ta que, nos últi­mos anos, os grafiteiros pas­saram a ser mais hos­tiliza­dos pela polí­cia. “Eu já tive situ­ações onde chegaram apon­tan­do a arma. E fui lev­a­da no cam­burão. Ape­sar de o grafite ter se pop­u­lar­iza­do e pas­sa­do a ser vis­to como menos mar­gin­al, ape­sar de ser com­ple­ta­mente ile­gal, exis­tem muitas pes­soas com o pen­sa­men­to rea­cionário”.

Multiplicidade

Foi um pen­sa­men­to da grafiteira que deu títu­lo à pesquisa de doutora­do da pro­fes­so­ra, his­to­ri­ado­ra e museólo­ga Rena­ta Almen­dra: “A cidade toda é min­ha”. “Eu chamo de grafite todo tipo de inter­venção visu­al, escri­ta, desen­ha­da, rabis­ca­da, cola­da, na cidade. Então entra aí real­mente essa arte urbana, mas tam­bém entra a pichação, os car­tazes cola­dos, nesse intu­ito artís­ti­co”, afir­mou a pro­fes­so­ra.

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução: Brasília -. Viadu­tos e pas­sare­las de Brasília com grafites e pichações — Foto Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

A pesquisado­ra entende que Brasília é uma cidade muito difer­ente das demais, que têm con­fig­u­ração urbana mais tradi­cional, como São Paulo e o Rio de Janeiro. “Essas cidades têm ruas, esquinas, praças, e, por­tan­to, mais pare­des e muros para grafi­tar”.

Rena­ta entende que é impos­sív­el demar­car per­fis especí­fi­cos para as artes e os artis­tas. “São vários tipos e esti­los con­viven­do ao mes­mo tem­po. É uma lou­cu­ra, é um bara­to. A gente vê a W3 Sul, que é con­sid­er­a­da a grande aveni­da de Brasília. A dinâmi­ca da W3 em relação a essas inter­venções urbanas é muito inter­es­sante”. Ela lem­bra que há pro­pri­etários de casas e de comér­cios que pedem a grafiteiros para pin­tar, a fim de coibir pichações.

A “galeria” W3

Via­jar pela aveni­da W3 seria, então, uma exper­iên­cia difer­ente, já que, em alguns tre­chos da via, tornou-se um corre­dor artís­ti­co nas pare­des. “Há uma mul­ti­pli­ci­dade de esti­los tam­bém, tan­to do lado das casas quan­to do lado das lojas”, disse a pesquisado­ra que, para o tra­bal­ho, entre­vis­tou 23 grafiteiros. Ela con­ta que os artis­tas dizem que pref­er­em ir para o Plano Pilo­to, a fim de apre­sen­tar seus tra­bal­hos porque têm mais vis­i­bil­i­dade, como ocorre na W3.

É na aveni­da que árvores são cober­tas por crochês e, na altura da quadra 707, da Asa Sul, uma série de obras fig­u­ra­ti­vas nos muros, de col­ori­do que aju­dam a ilu­mi­nar a noite, deixa os moradores curiosos.

No pon­to de ônibus, a estu­dante Rilei Sil­va, de 18 anos, espera o trans­porte para Samam­ba­ia e admi­ra as obras. Ela lamen­ta que está desem­pre­ga­da, mas que­ria arru­mar logo uma chance para alcançar o dese­jo de cur­sar fisioter­apia. “Às vezes, espero o ônibus por 50 min­u­tos. Vejo ess­es desen­hos de [Rober­to] Burle Marx (1909 — 1954), ou o [Oscar] Niemey­er (1907 — 1912). Que­ria saber mais sobre eles”.

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução: Brasília — Inter­venções urbanas no DF — Foto Valter Campanato/ Agên­cia Brasil

Aula na rua

Entre os artis­tas mais con­heci­dos no grafite da cap­i­tal, Daniel Moraes, o Daniel Toys, de 33 anos, expõe suas obras há mais de 20 anos. Graças ao seu tra­bal­ho, já foi con­vi­da­do para estar em mais de 11 país­es.

“A arte mudou a min­ha vida. Eu pin­tei nas ruas aos 13 anos de idade. Eu gos­to de levar meu tra­bal­ho para lugares que sejam car­entes de arte, par­tic­u­lar­mente nas per­ife­rias. Quero espel­har son­hos”. O artista gos­ta de ressig­nificar lugares e pro­por­cionar moti­vações, até em espaços de lixo. “As ruas são min­ha prin­ci­pal esco­la”, diz o artista.

Ain­da na W3, a desem­pre­ga­da Ana Mar­ques, de 35 anos, con­cor­da com o artista, e diz que a arte a estim­u­la a con­tin­uar na luta por um emprego. Ela recla­ma que os grafites dev­e­ri­am ter mais espaço e que pode­ria haver mais fis­cal­iza­ção para não haver pix­ação. “Ago­ra de noite, pode­ria ter mais luz para a gente saber mais”, disse.

Tensões

Para a pro­fes­so­ra de arquite­tu­ra Maria Fer­nan­da Derntl, da Uni­ver­si­dade de Brasília (UnB), as inter­venções urbanas expres­sam o modo como diver­sos gru­pos soci­ais expres­sam os fatos do Brasil. “Essa cidade preser­va­da, tal como ela foi pen­sa­da, tam­bém tem prob­le­mas. As grandes dis­tân­cias entre o Plano Pilo­to e as out­ras regiões são parte deles”.

Ela con­sid­era que as man­i­fes­tações do grafite e de out­ras artes são elo­quentes ao traduzir ten­sões na cidade. “Uma das questões é a gente ver o quan­to está dis­pos­to a enten­der que o espaço públi­co é lugar prob­lemáti­co e de con­fli­tos. E podem ser expressão da diver­si­dade”, afir­mou.

Mãos dadas

Um dess­es con­fli­tos ocor­reu na Vila do IAPI, em 1971, onde residi­am tra­bal­hadores da con­strução civ­il da cap­i­tal. Eles foram removi­dos para aque­la área que se tornou a maior região do  Dis­tri­to Fed­er­al, a Ceilân­dia. Inspi­ra­do nes­sa história, um artista da região, Gus­ta­vo San­tos, o Gu da Cei, de 27 anos, tem, entre suas obras, uma escul­tura no local inti­t­u­la­da “Son­ho de Morar”, que está no meio do mato, já cresci­do. A for­ma é de uma mãe de mãos dadas com o fil­ho. “A mis­são  da arte é inco­modar e pro­por reflexões. As inter­venções servem para isso mes­mo”, afir­ma.

Brasília (DF), 19/04/2024, Aniversário de brasília: intervenções urbanas no DF. Viadutos e passarelas de Brasília com grafites e pichações. Geiciane dos Santos, 29 anos. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Repro­dução:  Brasília — A vende­do­ra Gei­ciane dos San­tos na região do IAPI, onde mora — Foto Val­ter Campanato/ Agên­cia Brasil

Segun­do a vende­do­ra Gei­ciane dos San­tos, de 29 anos, que é mãe solo de duas cri­anças e mora com famil­iares na região do IAPI, a escul­tura faz com que refli­ta sobre a própria vida. Ela recebe um salário mín­i­mo e tem esper­ança de um dia ter a própria casa. Com um dos seus meni­nos no colo, olhou para a imagem e se recon­heceu. “Essa sou eu, né?”.

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Edição: Graça Adju­to

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