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Jornalistas negros desafiam abordagens racistas da mídia tradicional

Repro­dução: © Notí­cia Pre­ta

Plataformas apresentam olhar mais sensível às desigualdades sociais


Pub­li­ca­do em 14/09/2023 — 07:10 Por Rafael Car­doso — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Durante o sécu­lo 19, uma parte da pop­u­lação negra enten­deu que a impren­sa pode­ria ser uma fer­ra­men­ta de luta con­tra a dis­crim­i­nação racial. Foram cri­a­dos canais especí­fi­cos para comu­nicar lutas e deman­das da época. Quase dois sécu­los depois, faz sen­ti­do con­tin­uar existin­do uma impren­sa negra? O número expres­si­vo de veícu­los que atual­mente se iden­ti­fi­cam e se apre­sen­tam a par­tir dessa cat­e­go­ria são respostas con­tun­dentes à per­gun­ta.

Comu­ni­cadores negros têm reivin­di­ca­do cada vez mais um lugar de pro­tag­o­nis­mo e reforça­do a neces­si­dade de abor­dar os prob­le­mas soci­ais do país a par­tir das estru­turas raci­ais que os sus­ten­tam. A impren­sa tradi­cional é crit­i­ca­da por não respon­der sat­isfa­to­ri­a­mente a essas deman­das. Do pon­to de vista do con­teú­do, pes­soas bran­cas e negras são tratadas de for­mas difer­entes nas matérias. Quan­do se anal­isam os sujeitos que pro­duzem as infor­mações, profis­sion­ais negros ain­da são mino­ria nas redações. E, quan­do estão lá, rara­mente ocu­pam pos­tos de decisão.

Exem­p­los da impren­sa negra no sécu­lo 21 não fal­tam, como o Por­tal Geledés, o História Pre­ta, o Afro­press, o Atlân­ti­co Negro, a Revista Afir­ma­ti­va, o Nos­sos pas­sos vêm de longe e a Cultne.TV. Para enten­der um pouco da per­spec­ti­va e dos obje­tivos dessas mídias mais recentes, a Agên­cia Brasil entre­vis­tou os fun­dadores de dois sites, cri­a­dos há menos de dez anos, enga­ja­dos em uma comu­ni­cação antir­racista: o Alma Pre­ta e o Notí­cia Pre­ta.

O primeiro surgiu em 2015, a par­tir de um cole­ti­vo de estu­dantes negros da Uni­ver­si­dade Estad­ual Paulista (Une­sp) e é coman­da­do pelo jor­nal­ista Pedro Borges. O segun­do foi lança­do em 2018 pela jor­nal­ista Thais Bernardes. Ela já tin­ha exper­iên­cia em out­ras empre­sas de mídia tradi­cionais e decid­iu inve­stir em um pro­je­to edi­to­r­i­al de com­bate às desigual­dades.

Nes­ta quin­ta-feira (14), comem­o­ram-se os 190 anos do primeiro jor­nal da impren­sa negra no Brasil: O Mula­to ou O Homem de Côr, cri­a­do no dia 14 de setem­bro de 1833.

Imprensa negra x imprensa branca

Exis­tem difer­enças bem demar­cadas entre a impren­sa negra e as mídias tidas como mais gen­er­al­is­tas? Para o cofun­dador e dire­tor do Alma Pre­ta, Pedro Borges, a dis­cussão parte dos próprios princí­pios de seg­men­tação e uni­ver­sal­i­dade.

190 anos da imprensa negra: luta antirracista liga passado e presente. Foto: Alma Preta
Repro­dução: Pedro Borges (à dire­i­ta), ao lado de parte da equipe do site Alma Pre­ta — Alma Pre­ta

“Quan­do é pre­to, é con­sid­er­a­do seg­men­ta­do. Mas quem disse que a grande mídia é uni­ver­sal e não é seg­men­ta­da? É muito pouco enquadrar veícu­los como o nos­so em uma cat­e­go­ria de jor­nal­is­mo de nicho. Nós uti­lizamos as mes­mas téc­ni­cas jor­nalís­ti­cas que out­ros cole­gas de profis­são. Mas o sujeito bran­co e mas­culi­no se vê no lugar da uni­ver­sal­i­dade. E iden­ti­fi­ca o out­ro com um sujeito racial­iza­do e seg­men­ta­do. Ess­es grandes canais de comu­ni­cação priv­i­le­giam o diál­o­go com uma classe média e com uma elite bran­ca. Então, eles não são seg­men­ta­dos?”, ques­tiona Pedro.

A difer­ença, nesse sen­ti­do, não estaria na escol­ha dos temas e acon­tec­i­men­tos a serem cober­tos pelos jor­nal­is­tas, mas na per­spec­ti­va que se ado­ta em relação a eles. Borges enfa­ti­za que o Alma Pre­ta tem um olhar de destaque para gru­pos de per­ife­rias e o dese­jo de comu­nicar para trans­for­mar a real­i­dade.

“Enten­do que a mídia negra hoje tam­bém tem reivin­di­ca­do um lugar de uni­ver­sal­i­dade. A nos­sa cober­tu­ra está longe de ser recor­ta­da em casos de dis­crim­i­nação racial. Faze­mos uma cober­tu­ra de agen­das que são cen­trais do Brasil. E o racis­mo é um ele­men­to que estru­tu­ra a sociedade brasileira. Desigual­dade de mora­dia, saúde, segu­rança públi­ca, ali­men­tação, ambi­en­tal: todas elas têm como pano de fun­do a desigual­dade racial. Logo, cabe à impren­sa negra cobrir todos ess­es assun­tos”, diz Pedro Borges.

A notícia e o negro

Segun­do Thais Bernardes, dire­to­ra e fun­dado­ra do Notí­cia Pre­ta, a mídia tradi­cional sem­pre esteve alin­ha­da aos inter­ess­es de uma elite políti­ca e econômi­ca bran­ca. Por isso, reforça e dis­sem­i­na o racis­mo ao cobrir os fatos do dia a dia, prin­ci­pal­mente quan­do sujeitos negros estão no foco da notí­cia.

“His­tori­ca­mente, em que lugar apare­cia o negro no jor­nal do sécu­lo 19? Ele esta­va no lugar do ‘procu­ra-se negro fujão’ ou ‘vende-se uma escra­va’. Hoje esse lugar é o da edi­to­ria ger­al. O que mudou sobre os nos­sos cor­pos sendo ven­di­dos no iní­cio do sécu­lo 19 e os nos­sos cor­pos desuman­iza­dos nos anos atu­ais? Se você aces­sar os jor­nais, as pes­soas estão ali como pes­soas à margem da sociedade. Existe capa de jor­nal nos anos 2000 com pes­soas negras amar­radas em poste”, diz Thais Bernardes.

190 anos da imprensa negra: luta antirracista liga passado e presente. Foto: Notícia Preta
Repro­dução:  Para Thais Bernardes, a mídia tradi­cional reforça o racis­mo na cober­tu­ra de fatos do dia a dia — Notí­cia Pre­ta

“Quan­do há uma oper­ação den­tro de uma favela, a mídia tradi­cional sem­pre vai começar com ‘segun­do a polí­cia, essa oper­ação foi fei­ta para com­bat­er tal coisa’. Ela vai par­tir sem­pre do lado insti­tu­cional. Nós par­ti­mos do lado do morador. De quem é atingi­do por aqui­lo. Podemos falar das con­se­quên­cias da oper­ação poli­cial: das cri­anças que ficaram sem aula e dos pos­tos de saúde fecha­dos. Faz­er um jor­nal­is­mo antir­racista é enten­der para quem esta­mos falan­do, é faz­er uma comu­ni­cação não vio­len­ta. Isso é que define o lead, a parte prin­ci­pal da notí­cia”, com­ple­men­ta Thais.

Mercado de trabalho

Movi­men­tos recentes pas­sam a impressão de que mais empre­sas de comu­ni­cação têm se pre­ocu­pa­do em respon­der às deman­das soci­ais por maior diver­si­dade racial em seus quadros. Seja por meio de proces­sos sele­tivos para a con­tratação de pes­soas negras ou, no caso de meios que tra­bal­ham com vídeo, colo­car mais ros­tos negros nas telas. Mas, para Thais e Pedro, essas ações ain­da são insu­fi­cientes.

“Eu não quero rep­re­sen­ta­tivi­dade. Eu quero equidade. Porque a rep­re­sen­ta­tivi­dade sig­nifi­ca ter uma pes­soa ali e, pron­to, o grupo todo está rep­re­sen­ta­do? Será que há pes­soas negras entre dire­tores e edi­tores? Ou elas ficam ape­nas na reportagem e na frente da tele­visão? O que mudamos na estru­tu­ra se não ocu­par­mos lugares de poder e toma­da de decisão? Enquan­to isso não acon­te­cer, a gente tem aí a sín­drome do pre­to úni­co, que jus­ti­fi­ca um dis­cur­so de que a empre­sa é diver­sa”, anal­isa Thais.

Canais de impren­sa volta­dos para a pro­dução de con­teú­dos antir­racis­tas acabam sendo espaços mais recep­tivos para os profis­sion­ais negros e per­mitem que eles ocu­pem out­ras posições para além da sub­al­ternidade.

“Temos uma neces­si­dade obje­ti­va e cotid­i­ana no Brasil de a pop­u­lação negra se orga­ni­zar para ter um espaço em que pos­sa falar e ser ouvi­da. Até os dias de hoje, a gente pode iden­ti­ficar uma gigan­tesca dis­crepân­cia racial nas redações brasileiras. Ain­da temos uma impren­sa brasileira que, no cor­po ger­al, é majori­tari­a­mente bran­ca. E na direção, é mais raro ain­da encon­trar alguém negro. Isso acon­tece em casos excep­cionais. Os úni­cos locais onde isso acon­tece com fre­quên­cia são os canais da mídia negra”, diz Pedro Borges.

Manual de jornalismo antirracista

No iní­cio de agos­to, o Alma Pre­ta lançou um man­u­al de redação antir­racista. Ele traz um con­jun­to de princí­pios que devem nortear o tra­bal­ho jor­nalís­ti­co, a par­tir das exper­iên­cias edi­to­rias do por­tal. A ideia é que ele seja lido e sir­va de reflexão para comu­ni­cadores em ger­al, inde­pen­den­te­mente de estarem lig­a­dos aos veícu­los da impren­sa negra.

190 anos da imprensa negra: luta antirracista liga passado e presente. Foto: Alma Preta
Repro­dução: Pedro Borges diz que a mídia negra cobre agen­das que são cen­trais para o país  — Alma Pre­ta

“Em uma cober­tu­ra, você tem uma diver­si­dade de pon­tos, de olhares, de pal­cos. É pre­ciso respeitar as pes­soas que foram viti­madas em deter­mi­na­dos proces­sos. Seja des­de uma pes­soa que foi alvo de uma ação poli­cial, alguém despacha­do por uma rein­te­gração de posse, ou víti­ma de gri­lagem e vio­lên­cia. Muitas vezes o jor­nal­is­mo se limi­ta a ouvir a fonte ofi­cial e, quan­do escu­ta out­ras pes­soas, vira uma nota de rodapé. Nos­so tra­bal­ho não pode ser um release de segu­rança públi­ca. Pre­cisamos ouvir e checar todos os lados da história”, diz Pedro Borges.

Escola de Comunicação Antirracista

No fim de agos­to, o Notí­cia Pre­ta lançou a Esco­la de Comu­ni­cação Antir­racista, com o obje­ti­vo de ir além da divul­gação de notí­cias. A pro­pos­ta é com­bat­er o racis­mo tam­bém por meio da edu­cação. O públi­co-alvo são os comu­ni­cadores que dese­jam con­hecer ou apro­fun­dar um tra­bal­ho antir­racista. Entre os cur­sos ofer­e­ci­dos, destaque para Asses­so­ria de Impren­sa, Semi­óti­ca e Racis­mo, e História da Impren­sa Negra no Brasil. A esco­la ofer­ece cur­sos no for­ma­to online, mas tam­bém tem opções profis­sion­al­izantes pres­en­ci­ais, por meio de uma parce­ria com o Senac Rio.

“Não tem out­ra for­ma de você ser uma pes­soa antir­racista que não seja apren­den­do e estu­dan­do. Cri­amos essa esco­la para que todos pos­sam ter aces­so a esse con­hec­i­men­to. Sejam jor­nal­is­tas ou out­ras pes­soas inter­es­sadas em apren­der”, disse Thais.

“O jor­nal­is­mo é uma fer­ra­men­ta de edu­cação e de trans­for­mação social. Quan­do uma pes­soa lê uma matéria, está apren­den­do algo. E ser um jor­nal­ista antir­racista não é só ser negro. Todo mun­do deve ser antir­racista.”

Legados e continuidades

Durante os estu­dos no Brasil e na Europa, Thais não teve aulas sobre impren­sa negra nos cur­sos de jor­nal­is­mo. Ela defende que é fun­da­men­tal res­gatar essa história e apre­sen­tá-la para os que tra­bal­ham hoje com comu­ni­cação. Nesse sen­ti­do, con­hecer mais dos 190 anos de lutas e ini­cia­ti­vas da impren­sa negra aju­da a situ­ar o próprio pre­sente. A profis­são gan­ha con­tornos e mis­sões ain­da maiores.

“É fun­da­men­tal para o comu­ni­cador enten­der que os nos­sos pas­sos vêm de longe. Às vezes, as pes­soas me dizem que o meu tra­bal­ho é pio­neiro. Não! O jor­nal­is­mo que eu faço é o jor­nal­is­mo do Homem de Cor, do Mula­to, do Abdias Nasci­men­to, que fez comu­ni­cação antir­racista há muito tem­po. O que eu faço é uma con­tinuidade do que os meus antepas­sa­dos fiz­er­am. E espero hon­rar min­i­ma­mente esse cam­in­ho que eles traçaram para gente poder estar aqui”, reflete Thais Bernardes.

Edição: Juliana Andrade

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