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Lei Maria da Penha avança, mas não coíbe alta de crimes contra mulher

Repro­dução: © Fabio Rodrigues-Pozze­bom/ Agên­cia Brasil

Em média, quatro mulheres morrem por dia vítimas de feminicídio


Publicado em 07/08/2024 — 09:15 Por Daniella Almeida – Repórter da Agência Brasil — Brasília

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Lei nº 11.340/2006, con­heci­da como Lei Maria da Pen­ha, foi san­ciona­da há exatos 18 anos, pelo então pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va. O nome hom­e­nageia a bio­far­ma­cêu­ti­ca cearense Maria da Pen­ha Maia Fer­nan­des que sofreu duas ten­ta­ti­vas de homicí­dio pelo mari­do, em 1983, e se tornou ativista da causa do com­bate à vio­lên­cia con­tra as mul­heres.

A lei, que atinge ago­ra a maior­i­dade, pre­vê a adoção de medi­das pro­te­ti­vas de urgên­cia para romper o ciclo de vio­lên­cia con­tra a mul­her e impedir que o agres­sor cometa novas for­mas de vio­lên­cia domés­ti­ca, seja ela físi­ca, moral, psi­cológ­i­ca, sex­u­al ou pat­ri­mo­ni­al.

Antes da lei, este tipo de vio­lên­cia era trata­do como crime de menor poten­cial ofen­si­vo. A dire­to­ra de Con­teú­do do Insti­tu­to Patrí­cia Galvão, Marisa Sane­mat­su, apon­ta que muitas mul­heres foram agre­di­das e assas­si­nadas em razão da leniên­cia con­tra ess­es crimes, que ficavam impunes ou sujeitos a penas leves, chamadas de pecu­niárias, como o paga­men­to de mul­tas e de ces­tas bási­cas, suavizadas por argu­men­tos como o da legí­ti­ma defe­sa da hon­ra de home­ns.

“As agressões con­tra mul­heres eram tratadas como uma questão menor, um assun­to pri­va­do, a ser resolvi­do entre qua­tro pare­des. Quan­do a justiça era aciona­da, a vio­lên­cia domés­ti­ca era equipara­da a uma briga entre viz­in­hos a ser resolvi­da com o paga­men­to de mul­ta ou ces­ta bási­ca”, relem­brou Marisa Sane­mat­su.

A min­is­tra das Mul­heres, Cida Gonçalves, avalia que a lei trouxe gan­hos para a sociedade brasileira. “Primeiro, ela tip­i­fi­ca o crime exis­tente: a vio­lên­cia físi­ca, a vio­lên­cia psi­cológ­i­ca, a vio­lên­cia pat­ri­mo­ni­al, a vio­lên­cia moral e a vio­lên­cia sex­u­al. E orga­ni­za o Esta­do brasileiro para garan­tir o atendi­men­to às mul­heres”, disse à Agên­cia Brasil.

Como parte das cel­e­brações do aniver­sário da Lei Maria da Pen­ha, o gov­er­no fed­er­al esta­b­ele­ceu o Agos­to Lilás como mês de con­sci­en­ti­za­ção e com­bate à vio­lên­cia con­tra a mul­her no Brasil.

Avanços

Para espe­cial­is­tas, entre as prin­ci­pais ino­vações trazi­das pela Lei Maria da Pen­ha estão as medi­das pro­te­ti­vas de urgên­cia para as víti­mas da vio­lên­cia domés­ti­ca e famil­iar, como afas­ta­men­to do agres­sor do lar ou local de con­vivên­cia, dis­tan­ci­a­men­to da víti­ma, mon­i­tora­men­to por tornozeleira eletrôni­ca de acu­sa­dos de vio­lên­cia domés­ti­ca, a sus­pen­são do porte de armas do agres­sor, den­tre out­ras.

Adi­cional­mente, a lei esta­b­ele­ceu mecan­is­mos mais rig­orosos para coibir este tipo de vio­lên­cia con­tra a mul­her e tam­bém pre­viu a cri­ação de equipa­men­tos públi­cos que per­mi­tam dar efe­tivi­dade à lei, como del­e­ga­cias espe­cial­izadas de atendi­men­to à mul­her, casas-abri­go, cen­tros de refer­ên­cia mul­ti­dis­ci­pli­nares da mul­her e juiza­dos espe­ci­ais de vio­lên­cia domés­ti­ca e famil­iar con­tra a mul­her, com com­petên­cia cív­el e crim­i­nal, entre out­ros equipa­men­tos.

A advo­ga­da espe­cial­ista na defe­sa de mul­heres, con­sel­heira do Cen­tro Fem­i­nista de Estu­dos e Asses­so­ria (CFe­mea) e rep­re­sen­tante dessa orga­ni­za­ção no Con­sór­cio de Mon­i­tora­men­to da Lei Maria da Pen­ha, Lisan­dra Arantes, con­sid­era a Lei 11.340 como o prin­ci­pal avanço na leg­is­lação brasileira para a pro­teção das mul­heres da sociedade brasileira e pela primeira vez, recon­hece que a vio­lên­cia moti­va­da pela mis­oginia, pelo ódio às mul­heres, pelas questões de gênero.

“A lei Maria da Pen­ha foi o prin­ci­pal avanço que nós tive­mos em ter­mos de pro­teção à mul­her con­tra a vio­lên­cia. O que não sig­nifi­ca que ain­da não ten­hamos muito pra avançar.”

Números

O avanço na leg­is­lação não tem evi­ta­do, no entan­to, a alta de números de vio­lên­cia con­tra a mul­her. Dados do Con­sel­ho Nacional de Justiça sobre a atu­ação do poder judi­ciário na apli­cação da Lei Maria da Pen­ha rev­e­lam que 640.867 mil proces­sos de vio­lên­cia domés­ti­ca e famil­iar e/ou fem­i­nicí­dio ingres­saram nos tri­bunais brasileiros em 2022.

Dados do últi­mo Anuário Brasileiro de Segu­rança Públi­ca mostram que todos os reg­istros de crimes com víti­mas mul­heres cresce­r­am em 2023 na com­para­ção com 2022: homicí­dio e fem­i­nicí­dio (ten­ta­dos e con­suma­dos), agressões em con­tex­to de vio­lên­cia domés­ti­ca, ameaças, perseguição (stalk­ing), vio­lên­cia psi­cológ­i­ca e estupro.

Ao lon­go do ano pas­sa­do, 258.941 mul­heres foram agre­di­das, o que indi­ca alta de 9,8% em relação a 2022. Já o número de mul­heres que sofr­eram ameaça subiu 16,5% (para 778.921 casos), e os reg­istros de vio­lên­cia psi­cológ­i­ca aumen­taram 33,8%, total­izan­do 38.507.

Os dados do anuário são extraí­dos dos boletins de ocor­rên­cia poli­ci­ais, com­pi­la­dos pelo Fórum Brasileiro de Segu­rança Públi­ca (FBSP). Out­ro lev­an­ta­men­to de fórum apon­ta que ao menos 10.655 mul­heres foram víti­mas de fem­i­nicí­dio no Brasil de 2015 a 2023.

De acor­do com o relatório, o número de fem­i­nicí­dios cresceu 1,4% em 2023 na com­para­ção com o ano ante­ri­or e atingiu a mar­ca de 1.463 víti­mas no ano pas­sa­do, indi­can­do que mais de qua­tro mul­heres foram mor­tas por dia.

O número é o maior número da série históri­ca ini­ci­a­da pelo FBSP em 2015, quan­do entrou em vig­or a Lei 3.104/2015 , que pre­vê o fem­i­nicí­dio como cir­cun­stân­cia qual­i­fi­cado­ra do crime de homicí­dio e inclui o fem­i­nicí­dio no rol dos crimes hedion­dos.

A dire­to­ra do Insti­tu­to Patrí­cia Galvão sug­ere ações de enfrenta­men­to mais con­tun­dentes. “Os números alar­mantes de agressões e fem­i­nicí­dios com­pro­vam a urgên­cia de um pacto de tol­erân­cia zero con­tra a vio­lên­cia domés­ti­ca”, diz Marisa Sane­mat­su.

“Todo fem­i­nicí­dio é uma morte evitáv­el, se o Esta­do e a sociedade se unirem para enfrentar e denun­ciar todas as for­mas de vio­lên­cia que vêm sendo prat­i­cadas con­tra as mul­heres.”

Desafios

Ape­sar de recon­hecer os avanços da leg­is­lação nestes 18 anos, a min­is­tra das Mul­heres, Cida Gonçalves, anal­isa que entre as difi­cul­dades enfrentadas para imple­men­tação efe­ti­va da lei estão a ofer­ta de serviços espe­cial­iza­dos e profis­sion­ais prepara­dos para lidar com novos méto­dos de vio­lên­cia con­tra as mul­heres.

“Para garan­tir que ela saia do papel e de fato acon­teça, pre­cisamos ter serviços espe­cial­iza­dos e que o todo do sis­tema – com­pos­to pelo judi­ciário brasileiro, pela OAB, etc – dê con­ta de avançar na análise das vio­lên­cias para dar­mos a garan­tia do com­bate à impunidade de agres­sores, porque isso tem feito com que muitos casos [de vio­lên­cia] retornem.”

Casa da Mulher Brasileira, arquivo
Repro­dução: Atual­mente, país tem dez casas da Mul­her Brasileira em oper­ação — Divulgação/Presidência da Repúbli­ca

Em atendi­men­to à lei Maria da Pen­ha, o Min­istério das Mul­heres plane­ja colo­car em fun­ciona­men­to 40 casas da Mul­her Brasileira, em todos os esta­dos e no Dis­tri­to Fed­er­al. As unidades ofer­e­cem atendi­men­to human­iza­do e mul­ti­dis­ci­pli­nar às mul­heres em situ­ação de vio­lên­cia. Atual­mente, dez casas estão em oper­ação.

O Con­sel­ho Nacional de Justiça (CNJ) apon­ta no Painel de Mon­i­tora­men­to da Políti­ca de Enfrenta­men­to à Vio­lên­cia con­tra as Mul­heres que, em todo o Brasil, exis­tem ape­nas 171 varas espe­cial­izadas e exclu­si­vas para atendi­men­to de mul­heres víti­ma de vio­lên­cia domés­ti­ca e famil­iar.

A con­sel­heira do CFe­mea Lisan­dra Arantes apon­ta que muitos casos de vio­lên­cia domés­ti­ca sequer são denun­ci­a­dos e, por isso, a pos­si­bil­i­dade de pro­teção não con­segue alcançar as mul­heres que não romper­am ain­da o ciclo de vio­lên­cia.

“Muitas vezes, [a vio­lên­cia] ocorre porque elas têm uma dependên­cia finan­ceira do seu agres­sor ou estão em uma situ­ação de sub­mis­são, não nec­es­sari­a­mente rela­ciona­da à questão finan­ceira, mas por con­ta dessa con­strução patri­ar­cal da sociedade que a gente vive. E elas voltam a viv­er com seus agres­sores, nes­sas situ­ações em que não há medi­da pro­te­ti­va, porque não hou­ve uma denún­cia, não se bus­cou a pro­teção, infe­liz­mente”, lamen­tou.

Out­ro fator neg­a­ti­vo é a desin­for­mação. Ape­nas duas, em cada dez mul­heres, se sen­tem bem infor­madas em relação à Lei Maria da Pen­ha. Os dados são da 10ª edição da Pesquisa Nacional de Vio­lên­cia Con­tra a Mul­her, real­iza­da pelo Obser­vatório da Mul­her Con­tra a Vio­lên­cia (OMV) e o Insti­tu­to DataSe­na­do, ambos do Sena­do.

Brasília/DF, 12/07/2023, A jornalista Mara Régia di Perna, da Rádio Nacional, emissora da Empresa Brasil de Comunicação - EBC. Foto: Arquivo Pessoal
Repro­dução: Jor­nal­ista Mara Régia no estú­dio da Rádio Nacional da Amazô­nia — Arqui­vo pes­soal

A radi­al­ista Mara Régia, que apre­sen­ta o pro­gra­ma Viva Maria, na Rádio Nacional da EBC des­de 1981, cel­e­bra a luta de Maria da Pen­ha e recon­hece os desafios em torno da lei.

“A Lei Maria da Pen­ha é especí­fi­ca para o âmbito domés­ti­co, aque­la vio­lên­cia que acon­tece, em ger­al, do mari­do con­tra a mul­her. Sabe­mos que as resistên­cias à lei são muitas e que, ape­sar de ter chega­do à maior­i­dade, a própria Maria da Pen­ha tem sido muito ata­ca­da [nas redes soci­ais]. Hoje, é um dia de sol­i­dariedade a essa mul­her que pagou com mui­ta dor e vio­lên­cia sofri­da domes­ti­ca­mente. E lem­bro que uma grande parte das mul­heres do Brasil sofre essa vio­lên­cia em casa, todos os dias.”

Futuro

Dezoito anos após a sanção da lei Maria da Pen­ha, orga­ni­za­ções fem­i­nistas, ativis­tas, par­la­mentares e pen­sado­ras desta­cam a importân­cia de uma lei inte­gral de pro­teção às mul­heres em situ­ação de vio­lên­cia de gênero, que inclua novos crimes con­tra a mul­her que surgem, por exem­p­lo, com ino­vações tec­nológ­i­cas, como crimes no ambi­ente vir­tu­al.

Des­de 2022, o Con­sór­cio Lei Maria da Pen­ha, em parce­ria com várias orga­ni­za­ções de mul­heres e fem­i­nistas, tem debati­do a cri­ação de uma lei ger­al que recon­heça e respon­da a todas as for­mas de vio­lên­cia con­tra mul­her. Sobre o tema, o con­sór­cio lançou o livro A Importân­cia de uma Lei Inte­gral de Pro­teção às Mul­heres em Situ­ação de Vio­lên­cia de Gênerodisponív­el na ver­são online.

A coau­to­ra é a advo­ga­da fem­i­nista Myl­lena Calasans de Matos, inte­grante do con­sór­cio e do Comitê Lati­no Amer­i­cano e do Caribe para Defe­sa dos Dire­itos da Mul­her (Cla­dem) do Brasil. Em entre­vista à Agên­cia Brasil, ela disse que o con­sór­cio tem debati­do com orga­ni­za­ções de mul­heres mecan­is­mos mais efi­cazes de pre­venção e de mel­hor aces­so à justiça para as mul­heres.

“Tem sido fei­ta uma reflexão a respeito de uma lei mais ampla, que abar­que todas as for­mas de vio­lên­cia que exis­ti­am e out­ras que têm surgi­do e, por isso, neces­si­tam tam­bém de uma reg­u­lação. Uma lei inte­gral de enfrenta­men­to à vio­lên­cia de gênero con­tra as mul­heres, onde vamos bus­car dire­trizes, obje­tivos, as respon­s­abil­i­dades dos esta­dos, dos municí­pios, dos poderes judi­ciário e leg­isla­ti­vo, pen­sar tam­bém em um apara­to de mecan­is­mos no âmbito da justiça.”

Matéria ampli­a­da às 10h25

Edição: Denise Griesinger

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