...
quinta-feira ,18 abril 2024
Home / Educação / Leitura pode reduzir a pena na prisão, mas ainda há desafios

Leitura pode reduzir a pena na prisão, mas ainda há desafios

Rio de Janeiro - Biblioteca Municipal Abgar Renault, no prédio sede da prefeitura do Rio (Thomaz Silva/Agência Brasil)
Repro­du­ção: © Tomaz Silva/Agência Bra­sil

Os presos precisam comprovar que leram os livros


Publi­ca­do em 19/06/2021 — 15:50 Por Mari­a­na Tokar­nia — Repór­ter da Agên­cia Bra­sil — Rio de Janei­ro

Redu­zir qua­tro dias de pena para cada livro lido na pri­são já é pos­sí­vel des­de 2013, por reco­men­da­ção do Con­se­lho Naci­o­nal de Jus­ti­ça (CNJ). Uma pes­qui­sa divul­ga­da esta sema­na, mos­tra, no entan­to, que pou­ca gen­te con­se­gue ter aces­so a esse direi­to. O estu­do mos­tra que as ati­vi­da­des de lei­tu­ra nos pre­sí­di­os enfren­tam uma série de difi­cul­da­des, como a proi­bi­ção de títu­los, exclu­são de pes­so­as pre­sas com bai­xa esco­la­ri­da­de e migran­tes e fal­ta trans­pa­rên­cia em rela­ção à remi­ção da pena.

O que era ape­nas uma reco­men­da­ção do CNJ, tor­nou-se uma reso­lu­ção, o que de for­ma sim­pli­fi­ca­da, sig­ni­fi­ca que tem mai­or peso jurí­di­co. Publi­ca­da no mês pas­sa­do, a reso­lu­ção esta­be­le­ce pro­ce­di­men­tos e dire­tri­zes a serem obser­va­dos pelo Poder Judi­ciá­rio para o reco­nhe­ci­men­to do direi­to à remi­ção de pena por meio de prá­ti­cas soci­ais edu­ca­ti­vas em uni­da­des de pri­va­ção de liber­da­de. Essa medi­da entrou em vigor este mês.

O estu­do, iné­di­to, foi rea­li­za­do pelo Gru­po Edu­ca­ção nas Pri­sões, que reú­ne diver­sas orga­ni­za­ções liga­das ao tema.  A pes­qui­sa, rea­li­za­da entre dezem­bro de 2020 e mar­ço de 2021, iden­ti­fi­cou o per­fil dos pro­je­tos que atu­am no sis­te­ma pri­si­o­nal com o obje­ti­vo de pro­mo­ver a lei­tu­ra e com outras ati­vi­da­des de edu­ca­ção não for­mal e ela­bo­rou um diag­nós­ti­co de suas prá­ti­cas.

Os dados mos­tram que em rela­ção aos últi­mos seis meses, a gran­de mai­o­ria, 53,8%, dos pro­je­tos não tinha infor­ma­ções sobre o total de dias redu­zi­dos na penas dos deten­tos decor­ren­te de suas ações. A mes­ma pro­por­ção, 53,8%, não sabia do tem­po para o Poder Judi­ciá­rio ava­li­ar cada caso de remi­ção e 61,5% não tinham infor­ma­ções sobre se os pedi­dos de remi­ção foram ou não nega­dos.

Segun­do a asses­so­ra da Ação Edu­ca­ti­va, uma das orga­ni­za­ções que inte­gram o Gru­po Edu­ca­ção nas Pri­sões, Clau­dia Ban­dei­ra, não há trans­pa­rên­cia quan­to a essas infor­ma­ções. “As pes­so­as que rea­li­zam os pro­je­tos não sabem se de fato a situ­a­ção está ten­do impac­to na remi­ção da pena. Nem as pes­so­as que coor­de­nam os pro­je­tos, na pon­ta, nem as pró­pri­as pes­so­as pre­sas, que par­ti­ci­pam, têm infor­ma­ção se a par­ti­ci­pa­ção está remin­do ou não, nem seus fami­li­a­res”, diz.

Outro desa­fio encon­tra­do foi a exclu­são de pes­so­as que pode­ri­am se bene­fi­ci­ar com as ati­vi­da­des. A mai­o­ria das res­pos­tas, 28,6%, indi­cou que não havia par­ti­ci­pa­ção de pes­so­as não alfa­be­ti­za­das ou com difi­cul­da­des de lei­tu­ra. O pro­ble­ma dis­so, segun­do Ban­dei­ra, é que a mai­or par­te da popu­la­ção car­ce­rá­ria tem bai­xa esco­la­ri­da­de.

De acor­do com dados de 2020 do Depar­ta­men­to Peni­ten­ciá­rio Naci­o­nal, o Bra­sil tem hoje uma popu­la­ção pri­va­da de liber­da­de de mais de 670 mil pes­so­as, o que extra­po­la as qua­se 450 mil vagas em pre­sí­di­os, o que indi­ca uma super­lo­ta­ção. Dados de 2017 mos­tram que 75% da popu­la­ção pri­si­o­nal bra­si­lei­ra não che­gou sequer ao ensi­no médio e que menos de 1% dos pre­sos pos­sui gra­du­a­ção.

Ape­sar dis­so, ape­nas cer­ca de 92 mil pre­sos têm aces­so a estu­dos nas pri­sões, o que equi­va­le a apro­xi­ma­da­men­te 12% do total. Des­ses, 23 mil têm aces­so a remi­ção da pena por estu­do ou espor­te. Ape­nas 9 mil, cer­ca de 1% do total, têm aces­so a ati­vi­da­des com­ple­men­ta­res, como a lei­tu­ra.

Resolução do CNJ

Mui­tos dos desa­fi­os apon­ta­dos no estu­do, de acor­do com Clau­dia, estão con­tem­pla­dos na recen­te reso­lu­ção do CNJ, que entre outras coi­sas, per­mi­te a ado­ção de estra­té­gi­as espe­cí­fi­cas de lei­tu­ra entre pares, lei­tu­ra de audi­o­bo­oks, rela­tó­rio de lei­tu­ra oral de pes­so­as não-alfa­be­ti­za­das ou, ain­da, regis­tro do con­teú­do lido por meio de outras for­mas de expres­são, como o dese­nho.

Os pre­sos pre­ci­sam com­pro­var que leram os livros. Antes da reso­lu­ção isso era fei­to por meio de uma rese­nha. Ago­ra, a reso­lu­ção per­mi­te que isso seja fei­to por meio de dese­nhos, por exem­plo. “A gen­te sabe que exis­tem esses desa­fi­os para garan­tir o direi­to à remi­ção pela edu­ca­ção não for­mal, pela lei­tu­ra. Ago­ra, a gen­te, enquan­to gru­po, vai moni­to­rar os esta­dos para que se ade­quem à reso­lu­ção”, diz.

Em nota, o CNJ diz que embo­ra o estu­do mos­tre ques­tões que vêm sen­do obje­to de aten­ção do con­se­lho, a reso­lu­ção publi­ca­da recen­te­men­te não se base­ou nes­se diag­nós­ti­co. As dis­cus­sões que resul­ta­ram na nor­ma­ti­va come­ça­ram em 2019 e envol­ve­ram diver­sas ins­ti­tui­ções e orga­ni­za­ções liga­das ao tema.

“A reso­lu­ção muda total­men­te a for­ma de orga­ni­zar o aces­so ao livro e à lei­tu­ra nas uni­da­des pri­si­o­nais”, diz o con­se­lho. “O pri­mei­ro impac­to será que as uni­da­des pri­si­o­nais terão que implan­tar estra­té­gi­as para aces­so uni­ver­sal, para que todas as pes­so­as tenham direi­to ao livro e, ao lerem o livro, apre­sen­ta­rem um rela­tó­rio de lei­tu­ra para soli­ci­tar a remi­ção de pena. A redu­ção de pena dei­xa de ser um pri­vi­lé­gio e pas­sa a ser um direi­to de todas essas pes­so­as que são pri­va­das de liber­da­de”, acres­cen­ta.

O CNJ infor­ma tam­bém que atua para garan­tir for­ma­ção de magis­tra­dos, ges­to­res e dos demais envol­vi­dos para garan­tir o con­tro­le e fis­ca­li­za­ção para que de fato a nor­ma seja imple­men­ta­da. O Con­se­lho está ini­ci­an­do a con­tra­ta­ção de orga­ni­za­ções que irão rea­li­zar duas gran­des pes­qui­sas de abran­gên­cia naci­o­nal: um Cen­so Naci­o­nal de Espor­tes nas Pri­sões e um Cen­so Naci­o­nal de Lei­tu­ra em espa­ços de pri­va­ção de liber­da­de, esse abran­gen­do, tam­bém, o sis­te­ma soci­o­e­du­ca­ti­vo. Essas ações devem resul­tar na apre­sen­ta­ção, em coo­pe­ra­ção com o Depar­ta­men­to Peni­ten­ciá­rio Naci­o­nal, de dois pla­nos naci­o­nais des­ti­na­dos ao for­ta­le­ci­men­to das prá­ti­cas soci­ais edu­ca­ti­vas nos espa­ços de pri­va­ção e res­tri­ção de liber­da­de.

Implementação

Segun­do o coor­de­na­dor do Núcleo Espe­ci­a­li­za­do de Situ­a­ção Car­ce­rá­ria da Defen­so­ria Públi­ca do Esta­do de São Pau­lo, o defen­sor públi­co Mateus Oli­vei­ra Moro,  para que a reso­lu­ção seja de fato imple­men­ta­da é pre­ci­so que o poder exe­cu­ti­vo crie con­vê­ni­os com as Secre­ta­ri­as Esta­du­ais de Edu­ca­ção e que haja um “inves­ti­men­to nos direi­tos de pes­so­as pre­sas. O Judi­ciá­rio pre­ci­sa ser mais sen­sí­vel em rela­ção a essas ques­tões. Mui­tas vezes, [juí­zes] pega­vam mui­tas rese­nhas que com­pro­va­ri­am a remi­ção e, por uma série de ques­tões, não a con­ce­di­am”, diz.

Moro inte­grou o gru­po de tra­ba­lho que deu ori­gem à reso­lu­ção do CNJ. Pela reso­lu­ção, os pre­sos podem usar até 12 lei­tu­ras por ano para soli­ci­tar a redu­ção da pena em até 48 dias. Uma Comis­são de Vali­da­ção for­ma­da por volun­tá­ri­os liga­dos à edu­ca­ção públi­ca, docen­tes, bibli­o­te­cá­ri­os, mem­bros de orga­ni­za­ções da soci­e­da­de civil entre outros, deve­rá ana­li­sar os rela­tó­ri­os de lei­tu­ra pro­du­zi­dos para cada obra. Eles terão 30 dias para veri­fi­car se a pes­soa pri­va­da de liber­da­de leu ou não o livro. A comis­são será esta­be­le­ci­da pelo Juí­zo com­pe­ten­te, que ao final deli­be­ra­rá sobre a redu­ção da pena.

“Para ler um livro tem que ser um herói e na pan­de­mia, um herói ao qua­dra­do, por­que o aces­so a esses livros é bem limi­ta­do, o aces­so à edu­ca­ção é limi­ta­do”, diz Moro, res­sal­tan­do que os pre­sí­di­os estão super­lo­ta­dos e não ofe­re­cem qua­li­da­de de vida para os deten­tos. “Se está fecha­do em uma cela sem jane­la, sem ilu­mi­na­ção arti­fi­ci­al e com 40 pes­so­as em um espa­ço com 12 camas, como vai estu­dar e ler?”, ques­ti­o­na.

Leitura para a vida

Mes­mo com todas as difi­cul­da­des, foi a lei­tu­ra que mudou a vida da far­ma­cêu­ti­ca Sir­le­ne Domin­gues, 45 anos. Em 2011, quan­do esta­va pre­sa, ela par­ti­ci­pou do pro­gra­ma Remi­ção em Rede, um das orga­ni­za­ções que tam­bém faz par­te do Gru­po Edu­ca­ção nas Pri­sões, e que pro­mo­ve gru­pos de lei­tu­ra nas peni­ten­ciá­ri­as do esta­do de São Pau­lo.

“Era o aces­so que tinha à edu­ca­ção, à lite­ra­tu­ra e ao mun­do aqui fora. Que­ren­do ou não, no bate papo aca­ba­vam falan­do coi­sas do mun­do de fora, coi­sas que não tinham a ver com o lugar que esta­va”, diz e acres­cen­ta que foi ali que come­çou a valo­ri­zar a edu­ca­ção. “Pas­sei a ser mais aten­ta à edu­ca­ção. Eu tinha só a noção de que era algo que pre­ci­sa­va para a for­ma­ção, só para ter um diplo­ma. No clu­be de lei­tu­ra, eu tive aces­so a esse conhe­ci­men­to de que a edu­ca­ção é mais pro­fun­da. Foi o que me liber­tou”.

Por con­ta dos livros, ela tirou uma boa nota no Exa­me Naci­o­nal do Ensi­no Médio (Enem) e obte­ve uma bol­sa inte­gral pelo Pro­gra­ma Uni­ver­si­da­de para Todos (ProU­ni). For­mou-se em far­má­cia. Hoje, em liber­da­de, é pós-gra­du­a­da e atua como volun­tá­ria no Remi­ção em Rede. Na épo­ca, ela não pode usar os livros para redu­zir a pena. “É pre­ci­so fazer algum tipo de tra­ba­lho com as pes­so­as que estão lá den­tro para poder cons­ci­en­ti­zar sobre o poder da edu­ca­ção e sobre os cami­nhos que ela pode tra­zer. As pes­so­as não têm noção, aca­bam sen­do mais infe­ri­o­ri­za­das e mar­gi­na­li­za­das”.

“A medi­da que [as pes­so­as pri­va­das de liber­da­de] se apro­fun­dam nas lei­tu­ras, podem olhar para o mun­do que as cer­ca e fazer uma lei­tu­ra crí­ti­ca des­se mun­do”, diz a edu­ca­do­ra e ide­a­li­za­do­ra e arti­cu­la­do­ra do Remi­ção em Rede, Jani­ne Durand. Segun­do ela, a orga­ni­za­ção pre­pa­ra-se para reto­mar o pro­gra­ma de lei­tu­ra, que foi sus­pen­so por con­ta da pan­de­mia. Muda­ram a meto­do­lo­gia e pre­ten­dem usar víde­os para fazer as ofi­ci­nas de lei­tu­ra.

Diag­nós­ti­co de prá­ti­cas de edu­ca­ção não for­mal no sis­te­ma pri­si­o­nal do Bra­sil, está dis­po­ní­vel na ínte­gra, na inter­net. Cri­a­do em 2006, o Gru­po Edu­ca­ção nas Pri­sões reú­ne Ação Edu­ca­ti­va, Uni­ver­si­da­de Fede­ral de São Pau­lo (Uni­fesp), Conec­tas Direi­tos Huma­nos, Ins­ti­tu­to Ter­ra, Tra­ba­lho e Cida­da­nia, Remi­ção em Rede, Núcleo Espe­ci­a­li­za­do de Situ­a­ção Car­ce­rá­ria, da Defen­so­ria Públi­ca do Esta­do de São Pau­lo e Gru­po de Atu­a­ção Espe­ci­al de Edu­ca­ção, do Minis­té­rio Públi­co do Esta­do de São Pau­lo.

Ministério da Justiça

Em nota, o Depar­ta­men­to Peni­ten­ciá­rio Naci­o­nal (Depen), liga­do ao Minis­té­rio da Jus­ti­ça, infor­ma que doou 267.352 livros às admi­nis­tra­ções peni­ten­ciá­ri­as das Uni­da­des Fede­ra­ti­vas e às peni­ten­ciá­ri­as fede­rais, inves­tin­do mais de R$ 4,5 milhões. Segun­do o Depar­ta­men­to, a ação tem como obje­ti­vo con­tem­plar o Pro­gra­ma Naci­o­nal de Remi­ção de Pena pela Lei­tu­ra no Bra­sil. “A aqui­si­ção das obras ser­vi­rá para o incre­men­to do acer­vo de livros nas uni­da­des pri­si­o­nais, fomen­to aos clu­bes de lei­tu­ras, ampli­a­ção das ações de remi­ção de pena pela lei­tu­ra, e ati­vi­da­des de lei­tu­ra, em geral”, diz.

Em mar­ço de 2020, o Depen publi­cou a Nota Téc­ni­ca Remi­ção de Pena pela Lei­tu­ra, com a fina­li­da­de de apre­sen­tar ori­en­ta­ção naci­o­nal para fins da ins­ti­tu­ci­o­na­li­za­ção e padro­ni­za­ção das ati­vi­da­des de remi­ção de pena pela lei­tu­ra e rese­nhas de livros no sis­te­ma pri­si­o­nal bra­si­lei­ro. O Depen acres­cen­ta que no Sis­te­ma Peni­ten­ciá­rio Fede­ral, sob res­pon­sa­bi­li­da­de dire­ta do Depen, a remi­ção pela lei­tu­ra foi ins­ti­tuí­da em 2009 na Peni­ten­ciá­ria Fede­ral em Catan­du­vas (PR). O pro­je­to foi imple­men­ta­do pela equi­pe de Espe­ci­a­lis­tas e Téc­ni­cos em exe­cu­ção penal, como uma das pri­mei­ras ini­ci­a­ti­vas que se tem regis­tro no país.

Edi­ção: Valé­ria Agui­ar

 LOGO AG BRASIL

Você pode Gostar de:

Envio de informações para Pé-de-Meia termina nesta sexta

Repro­du­ção: © Stu­dio Formatura/Galois Dados devem ser enviados via Sistema Gestão Presente Publi­ca­do em 08/03/2024 …