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Mães lutam por justiça aos filhos soterrados pela mineração

Repro­dução: © Priscila Izabel/Arquivo Pes­soal

Tragédias em Mariana e Brumadinho ainda tramitam em tribunais


Publicado em 12/05/2024 — 10:50 Por Léo Rodrigues — repórter da Agência Brasil — Rio de Janeiro

“Foram 20 mor­tos”, protes­ta Priscila Mon­teiro Izabel. Ela faz refer­ên­cia às vidas per­di­das no rompi­men­to da bar­ragem da min­er­ado­ra Samar­co, em 2015. O colap­so da estru­tu­ra ger­ou uma avalanche de lama que se ini­ciou no municí­pio de Mar­i­ana (MG) e ger­ou danos em dezenas de municí­pios ao lon­go da bacia do Rio Doce. Cor­pos de 18 pes­soas foram res­gata­dos. Con­sideran­do ain­da um desa­pare­ci­do que não foi encon­tra­do, a min­er­ado­ra recon­heceu 19 mor­tos.

Priscila, no entan­to, esta­va grávi­da. Arras­ta­da pela lama, ela perdeu o bebê e briga na Justiça para que ele seja recon­heci­do como víti­ma. Pas­sa­dos mais de oito anos, a dor da per­da ain­da impacta o Dia das Mães. Ela tem a com­pan­hia dos seus out­ros dois fil­hos: Kayque e Arthur que tin­ham na época da tragé­dia respec­ti­va­mente 2 e 8 anos e hoje pos­suem 11 e 17. Mes­mo assim, a lem­brança do episó­dio é inevitáv­el.

“Nes­sas datas, o Kayque sem­pre faz as lem­branc­in­has na esco­la. E quan­do ele chega e me entre­ga essas lem­brac­in­has, essas cart­in­has, eu fico pen­san­do que se meu bebê estivesse vivo, ele estaria com 8 para 9 anin­hos. E eu estaria gan­han­do duas lem­branc­in­has, duas cart­in­has. Me faz mui­ta fal­ta. E tam­bém faz mui­ta fal­ta para o Kayque, porque eles teri­am pou­ca difer­ença de idade”, lamen­ta. Procu­ra­da pela Agên­cia Brasil, a Samar­co infor­mou que não fará comen­tários sobre o assun­to.

A tragé­dia ocor­reu no dia 5 de novem­bro de 2015. Era para ser um dia espe­cial para Priscila: seu aniver­sário. Ela tam­bém vivia a expec­ta­ti­va de uma rev­e­lação impor­tante. “Tin­ha feito uma con­sul­ta de pré-natal uns dias antes e o médi­co falou assim: ‘Vou te dar um pre­sente de aniver­sário. Seu ultra­ssom está mar­ca­do para o dia 6 e provavel­mente vai dar pra ver o sexo do bebê’. Ela já tin­ha nomes em mente: se fos­se meni­na se chamaria Arun­na e se fos­se meni­no Abn­ner. Jun­to com o então mari­do, já tin­ham com­pra­do algu­mas roupin­has unis­sex e estavam bus­can­do o berço.

Memórias vívidas

O ter­ror que viveu naque­le dia é relata­do de for­ma muito vívi­da e emo­ti­va por Priscila. Ela esta­va assistin­do tele­visão em sua casa no dis­tri­to de Ben­to Rodrigues, comu­nidade que foi destruí­da. Pas­sa­va o dia com seu fil­ho Kayque e tam­bém com seu irmão e seus dois sobrin­hos: Nico­las, então com 3 anos, e Emanuele, que perdeu sua vida aos 5 anos.

“A Manu entrou e falou comi­go assim: ‘deixa o Kayque brin­car comi­go e com o Nico­las?’. Eu respon­di: ‘Manu, Kayque está dor­min­do. Vem cá para você ver’. Ela entrou no quar­to, viu ele dor­min­do e saiu. E aí eu falei: ‘Hoje é aniver­sário da titia. Você não vai dar um bei­jo na titia não?’ Ela per­gun­tou: ‘vai ter bolo?’. Eu falei que não, que bolo era só nos aniver­sários dos pequenin­in­hos. Ela me abraçou, me deu um bei­jo e saiu cor­ren­do para brin­car. Pas­sou mais ou menos meia hora, eu escutei um estron­do”, relem­bra com a voz embar­ga­da.

Rio de Janeiro (RJ) 11/05/2024 - Priscila e seu filho Kayque em foto tirada após terem alta do hospital - Tragédias da mineração: perdas impulsionam mães em luta por justiçaFoto: Priscila Izabel/Arquivo Pessoal
Repro­dução: Priscila e seu fil­ho Kayque em foto tira­da após terem alta do hos­pi­tal Foto: Priscila Izabel/Arquivo Pes­soal

Ao ouvir seu irmão gri­tar que a bar­ragem tin­ha estoura­do, ela pegou Kayque e saiu para fora, mas não hou­ve tem­po sufi­ciente para que eles alcançassem um lugar seguro. Arras­ta­da, Priscila seria pos­te­ri­or­mente sal­va por um motorista de ônibus, que a avis­tou e arriscou a própria vida para tirá-la de den­tro da lama. Seu fil­ho, que havia sido lev­a­do para longe dela, foi res­gata­do por meio de uma cor­rente humana real­iza­da por moradores de Ben­to Rodrigues.

“Quan­do saí, vi uma imen­sa poeira. Meu irmão esta­va na por­ta da casa da frente, com Nico­las no colo e segu­ran­do a mão da Manu. Eu fui até lá e nós entramos. Quan­do eu olhei para baixo, a lama já esta­va chegan­do no joel­ho do meu irmão e as pare­des da casa estavam tomban­do em cima da gente. Eu falei para Manu: ‘segu­ra na roupa de titia’. E aí a onda de lama veio. E eu fiquei soz­in­ha no meio do nada, sendo lev­a­da e toman­do pan­cadas. Sen­ti uma forte dor pélvi­ca e veio um calafrio. Doía muito. Eu pedia a Deus para sal­var o meu fil­ho”, rela­ta.

Priscila pre­cisou ser lev­a­da de helicóptero para o Hos­pi­tal João XXIII, em Belo Hor­i­zonte. O diag­nós­ti­co do abor­to foi con­fir­ma­do no dia seguinte. Lev­ou sem­anas para ter alta e ficou com uma cica­triz no ros­to que hoje lhe causa con­strang­i­men­to. Ela con­ta que evi­ta tirar fotos em que a mar­ca apareça. Res­gata­dos, seu irmão, seu sobrin­ho Nico­las e seu fil­ho Kayque tam­bém foram hos­pi­tal­iza­dos. O cor­po de Emanuele foi acha­do cin­co dias depois. Inter­na­da, Priscila rece­beu a notí­cia em uma lig­ação tele­fôni­ca com o irmão. “Eu só joguei o tele­fone no chão, come­cei a gri­tar e os médi­cos vier­am e me sedaram”.

‘Eles não têm amor’

A Samar­co recon­heceu Priscila como víti­ma, mas não o bebê que ela ger­a­va na bar­ri­ga. A min­er­ado­ra ofer­e­ceu um acor­do sem margem para nego­ci­ação. Ela avalia que os val­ores não reparam os danos sofri­dos, mas se viu sem saí­da e acabou acei­tan­do. Antes de ingres­sar com ação judi­cial em bus­ca de reparação para seu fil­ho, ela apre­sen­tou lau­dos médi­cos e exam­es à Samar­co. Segun­do con­ta, ouviu que o bebê não pode­ria ser recon­heci­do como víti­ma porque não havia uma Declar­ação de Nasci­do Vivo, doc­u­men­to que a mater­nidade deve emi­tir após o nasci­men­to para que os pais pos­sam efe­t­u­ar o reg­is­trar em cartório. “Eles não sabem o que é amor. Eles não têm amor. Só tem amor ao din­heiro”, se revol­ta.

O cam­in­ho judi­cial foi acon­sel­ha­do por um pro­mo­tor do Min­istério Públi­co de Minas Gerais (MPMG). Foi então que ela procurou um advo­ga­do. “Enquan­to eu res­pi­rar nes­sa Ter­ra, eu vou lutar por justiça. Creio que ela vai chegar. Aqui­lo que entreg­amos nas mãos de Deus, a gente pode con­fi­ar. Eu ten­ho fé que Deus vai faz­er justiça”, acre­cen­ta. Ela lamen­ta que ninguém ten­ha sido pre­so. Em 2016, o Min­istério Públi­co Fed­er­al (MPF) denun­ciou 22 pes­soas por diver­sos crimes. Para 21 delas, foi imputa­do o crime de homicí­dio qual­i­fi­ca­do. Além de inte­grantes da alta cúpu­la da Samar­co, foram incluí­dos mem­bros do Con­sel­ho de Admin­is­tração da min­er­ado­ra que foram nomea­d­os pelas duas acionistas: Vale e BHP Bil­li­ton.

No entan­to, em 2019, uma decisão da Justiça Fed­er­al ben­efi­ciou os réus. Foi deter­mi­na­do o tran­ca­men­to da ação penal para o crime de homicí­dio. Prevale­ceu a tese de que os indí­cios incluí­dos na denún­cia apon­tavam as mortes como con­se­quên­cias do crime de inun­dação. Além dis­so, ao lon­go do tem­po, foram con­ce­di­dos habeas cor­pus a alguns acu­sa­dos. Os sete que per­manecem como réus no proces­so respon­dem ape­nas por crimes ambi­en­tais. Priscila crit­i­ca o anda­men­to do proces­so crim­i­nal: con­sid­era que a impunidade tem relação com o poder econômi­co dos acu­sa­dos. “Falar­ia isso na frente dos juízes”, afir­ma.

Brincalhão aos 33

É tam­bém a dor da per­da que impul­siona a luta de Jaci­ra Fran­cis­ca Cos­ta. Seu fil­ho perdeu a vida em out­ra tragé­dia envol­ven­do rompi­men­to de bar­ragem. Ele tra­bal­ha­va na Vale em Bru­mad­in­ho (MG) e foi soter­ra­do pela avalanche de rejeitos que se for­mou após a rup­tura que ocor­reu no dia 25 de janeiro de 2019. Thi­a­go Matheus Cos­ta foi um dos 272 mor­tos no episó­dio, segun­do a con­ta da Asso­ci­ação dos Famil­iares das Víti­mas e Atingi­dos pelo Rompi­men­to da Bar­ragem em Bru­mad­in­ho (Avabrum), que inclui os bebês de duas mul­heres que mor­reram grávi­das.

“Ele era um meni­no muito amáv­el. Eu sin­to mui­ta fal­ta dele porque todos os domin­gos ele vin­ha aqui em casa. Já tin­ha 33 anos, mas não deix­a­va de ser um meni­no brin­cal­hão, sor­ri­dente, nada esta­va ruim para ele. Ele tin­ha uma defi­ciên­cia na per­na e no braço e isso não era empecil­ho para ele. Ele limpa­va o car­ro do pai dele, cor­ta­va o cabe­lo do pai dele. Ele era muito presta­ti­vo, um meni­no muito bom de coração”, con­ta Jaci­ra.

O cor­po de Thi­a­go foi encon­tra­do qua­tro dias após a tragé­dia. Ele era o mais vel­ho dos seis fil­hos de Jaci­ra. Ela diz que sua ausên­cia abala a todos. “O sor­riso dele, as brin­cadeiras dele enchi­am a casa. Era muito amáv­el com todo mun­do. A gente passea­va, ia para a casa dos tios, almoça­va, brin­ca­va, joga­va pete­ca, joga­va bola. É mui­ta tris­teza porque o Thi­a­go sem­pre trazia uma lem­branc­in­ha. Hoje em dia, o Dia das Mães virou um dia mais monótono, um dia sem aque­la ale­gria, sem aque­le almoço grande com as brin­cadeiras que ele fazia. Ness­es dias, a gente lem­bra o quan­to ele faz fal­ta”.

Rio de Janeiro (RJ) 11/05/2024 - Jacira e seu filho Thiago quando ele tinha 10 anos de idade - Tragédias da mineração: perdas impulsionam mães em luta por justiça Foto: Jacira Costa/Arquivo Pessoal
Repro­dução: Jaci­ra e seu fil­ho Thi­a­go quan­do ele tin­ha 10 anos de idade Foto: Jaci­ra Costa/Arquivo Pes­soal

Mulheres na linha de frente

Morado­ra de Betim (MG), há 25 quilômet­ros de Bru­mad­in­ho, Jaci­ra inte­gra hoje a direção da Avabrum. Dos 11 inte­grantes da enti­dade e do seu con­sel­ho fis­cal, nove são mul­heres. Elas estão na lin­ha de frente da luta para faz­er justiça às mortes de mari­dos, pais, irmãos e out­ros entes queri­dos. Além de Jaci­ra, out­ras duas choram pela saudade de um fil­ho.

“Eu pas­sei a bus­car forças quan­do eu desco­bri que era um crime, que eles sabi­am e não tiraram os meni­nos de lá. Foi uma morte cru­el, ninguém merece mor­rer daque­le jeito. Mas aqui em Betim, eu perce­bia que ninguém sen­tia o mes­mo que eu. Então deci­di ir para Bru­mad­in­ho, me unir às meni­nas, e achei tam­bém um pouquin­ho de força lá. Esta­va no meio de quem esta­va sentin­do o mes­mo que eu”.

No proces­so crim­i­nal, foram denun­ci­adas 16 pes­soas. O MPF sus­ten­ta que hou­ve um con­luio entre a Vale e Tüv Süd, con­sul­to­ria alemã que assi­nou o lau­do de esta­bil­i­dade da bar­ragem. Con­forme a acusação, ambas as empre­sas tin­ham con­hec­i­men­to da situ­ação críti­ca da estru­tu­ra, mas não com­par­til­haram as infor­mações com o poder públi­co e com a sociedade e assumi­ram os riscos. A denún­cia tam­bém chama atenção que, em uma even­tu­al tragé­dia, o tem­po disponív­el para a evac­uação de insta­lações admin­is­tra­ti­vas e do refeitório da mina de Vale era de ape­nas um min­u­to. A rup­tura ocor­reu no horário de almoço, às 12h28.

Jaci­ra afir­ma que a Avabrum está deter­mi­na­da a preser­var a memória dos que se foram, e não deixará que o episó­dio caia no esquec­i­men­to. Um memo­r­i­al, que será geri­do por famil­iares das víti­mas, foi ergui­do em um ter­reno de nove hectares. A enti­dade tam­bém vem se mobi­lizan­do para cobrar pela respon­s­abi­liza­ção crim­i­nal. Man­i­fes­tações foram real­izadas nos últi­mos meses con­tra a con­cessão de um habeas cor­pus que excluiu do proces­so o ex-pres­i­dente da Vale, Fábio Schvarts­man. A Justiça Fed­er­al enten­deu que a denún­cia não reu­nia indí­cios de atos ou omis­sões dele que ten­ham lev­a­do ao colap­so da bar­ragem. O MPF recorre da decisão e con­sid­era que há provas sufi­cientes de que ele sabia dos riscos de rompi­men­to.

“Enquan­to a gente tiv­er força, enquan­to a gente tiv­er vida, nós vamos lutar. Quan­to mais saudade, mais a gente a gente luta. Não é fácil. Nada repara uma vida. Nada repara o que a gente pas­sa nada. Nada repara tudo que nós perdemos. A gente não tem uma vida tran­quila como tín­hamos. Eu estou ten­do força para lutar, mas tem mãe que não con­segue ficar de pé, que está na cama. Tem mãe que teve AVC, tem mãe que já até mor­reu”, lamen­ta Jaci­ra.

Edição: Vini­cius Lis­boa

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