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Maré: estudo vê efeitos mentais e físicos da violência em mulheres

Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Agência Brasil teve acesso com exclusividade à pesquisa


Publicado em 14/04/2023 — 09:02 Por Léo Rodrigues — Repórter da Agência Brasil — Rio de Janeiro

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“Sem­ana retrasa­da, começou às 5h30. Começam os tiros, aí você já fica logo ten­sa”, con­ta Ana Lúcia Alves dos San­tos, de 61 anos. Ela foi uma das 30 mul­heres entre­vis­tadas em uma pesquisa que bus­cou com­preen­der os impactos da vio­lên­cia arma­da na vida de mul­heres do Com­plexo da Maré. Nos relatos col­hi­dos, foram obser­va­dos efeitos men­tais e físi­cos e rev­e­ladas estraté­gias de cuida­do e pro­teção que as mul­heres ado­tam.

Ana Lúcia expli­ca à Agên­cia Brasil como a oper­ação poli­cial altera com­ple­ta­mente sua roti­na e seu esta­do de espíri­to. “Eu faço aula lá na Vila Olímpi­ca às 7h. Acor­do cedo e me preparo. Aí começo a escu­tar os tiros, pron­to. Acabou o dia. Você fica ten­sa, pre­ocu­pa­da. Min­ha fil­ha tin­ha que sair para tra­bal­har. Meu mari­do tam­bém. Eu peço cuida­do. Peço para me lig­ar quan­do chegar na Aveni­da Brasil”.

Rio de Janeiro (RJ), 12/04/2023 - A moradora da favela da Maré Ana Lúcia Alves fala sobre os impactos da violência armada em sua vida em pesquisa da Redes da Maré. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro, 12/04/2023 — A morado­ra da favela da Maré Ana Lúcia Alves fala sobre os impactos da vio­lên­cia arma­da em sua vida — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

O estu­do qual­i­ta­ti­vo lançou um olhar cien­tí­fi­co sobre relatos como esse. Real­iza­do como parte do pro­je­to De Olho na Maré, man­ti­do pela orga­ni­za­ção não gov­er­na­men­tal Redes da Maré, ele envolveu pesquisadores da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ) e de duas insti­tu­ições britâni­cas, as uni­ver­si­dades de War­wick e de Cardiff. Além das entre­vis­tas, foram uti­lizadas out­ras fer­ra­men­tas metodológ­i­cas, como rodas de con­ver­sas e ofic­i­nas sem­anais de dança e yoga dance.

Con­sideran­do todas as ativi­dades desen­volvi­das entre setem­bro de 2021 e novem­bro do ano pas­sa­do, mais de 50 par­tic­i­pantes de difer­entes idades foram envolvi­das. A Agên­cia Brasil teve aces­so com exclu­sivi­dade ao estu­do, que será lança­do e apre­sen­ta­do hoje (14), às 15h,na Casa das Mul­heres da Maré, em even­to aber­to os moradores e demais inter­es­sa­dos.

O Com­plexo da Maré com­preende 16 fave­las onde vivem cer­ca de 140 mil pes­soas. Somente em 2022, segun­do mon­i­tora­men­to da Redes da Maré, foram reg­istradas 27 oper­ações poli­ci­ais nesse ter­ritório: uma a cada 13 dias. Home­ns for­mam a maio­r­ia abso­lu­ta das mor­tos quan­do há con­fron­tos. De acor­do com o últi­mo Anuário Brasileiro de Segu­rança Públi­ca, pub­li­ca­do no ano pas­sa­do pela orga­ni­za­ção não gov­er­na­men­tal Fórum Brasileiro de Segu­rança Públi­ca, a maio­r­ia das víti­mas de mortes decor­rentes de inter­venção poli­cial no país é do sexo mas­culi­no (99,2%), de negros (84,1%) e com menos de 29 anos (74%).

Os pesquisadores, no entan­to, lem­bram que a pre­sença e cir­cu­lação de armas em um ter­ritório provo­cam, além das mortes, diver­sas vio­lações indi­vid­u­ais e cole­ti­vas: invasões de domicílios, agressões físi­cas e ver­bais, restrições de mobil­i­dade e cir­cu­lação e fechamen­to de esco­las e unidades de saúde. Essa real­i­dade é doc­u­men­ta­da pelo pro­je­to De Olho na Maré. Entre 2017 e 2022, foram con­tabi­lizadas 169 oper­ações poli­ci­ais e 122 con­fron­tos entre os gru­pos arma­dos, que resul­taram em 195 mor­tos, 186 feri­dos por arma de fogo, 572 vio­lações de dire­itos indi­vid­u­ais, 93 dias sem aulas e 122 dias com serviços de saúde sus­pen­sos.

Rio de Janeiro (RJ), 12/04/2023 - A pesquisadora da Redes da Maré Isabel Barbosa, mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ, aborda impactos da violência armada na vida das mulheres da Maré. Foto: Fernando Frazão/Agência
Repro­dução: Rio de Janeiro, 12/04/2023 — A pesquisado­ra Isabel Bar­bosa, mestre em Políti­cas Públi­cas em Dire­itos Humanos pela UFRJ, abor­da impactos da vio­lên­cia arma­da na vida das mul­heres da Maré. Foto Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Isabel Bar­bosa, pesquisado­ra envolvi­da no estu­do, afir­ma que as mul­heres são víti­mas majoritárias em algu­mas dessas situ­ações, como invasão a domicílios, vio­lên­cia ver­bal e assé­dio sex­u­al. “São, muitas vezes, cometi­das por agentes do próprio Esta­do encar­rega­dos de garan­tir a segu­rança. E quan­do essa vio­lên­cia é cau­sa­da por mem­bros dos gru­pos arma­dos que atu­am no ter­ritório, há uma sen­sação de silen­ci­a­men­to. Como essas mul­heres podem se pro­te­ger ou até mes­mo bus­car aju­da?”, obser­va.

Ela lem­bra que as mul­heres tam­bém sofrem impacto pela letal­i­dade, pois as víti­mas podem ser seus fil­hos, com­pan­heiros e out­ros famil­iares. “Além da dor da per­da, elas têm que lidar com a exposição da mídia, com o jul­ga­men­to das pes­soas, com a cul­pa diante do que acon­te­ceu como se pudessem faz­er algu­ma coisa para impedir. E é algo que não tem como pre­v­er. Você não sabe quan­do vai ter um tiro atrav­es­san­do a sua casa”.

A Redes da Maré foi for­mal­iza­da em 2007 como um des­do­bra­men­to de mobi­liza­ções comu­nitárias ini­ci­adas na déca­da de 1980 e tem como um de seus propósi­tos a efe­ti­vação dos dire­itos dos moradores em diver­sas esferas: na segu­rança públi­ca, saúde, edu­cação, cul­tura, urban­iza­ção etc. De acor­do com Lil­iane San­tos, coor­de­nado­ra do eixo Dire­ito à Segu­rança Públi­ca e Aces­so à Justiça da orga­ni­za­ção, a elab­o­ração de pesquisas sem­pre foi uma pre­ocu­pação.

Rio de Janeiro (RJ), 12/04/2023 - A assistente social da Redes da Maré Liliane Santos aborda impactos da violência armada na vida das mulheres da Maré. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro, 12/04/2023 — A assis­tente social Lil­iane San­tos abor­da impactos da vio­lên­cia arma­da na vida das mul­heres da Maré. Foto: Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Nós enten­demos que só é pos­sív­el olhar para as grandes deman­das, grandes questões do ter­ritório, a par­tir da pro­dução de con­hec­i­men­to. A par­tir das deman­das iden­ti­fi­cadas nas pesquisas, bus­camos faz­er pro­postas para con­tribuir com a elab­o­ração de políti­cas públi­cas. Não só para a Maré, mas para a cidade e o país como um todo”, disse.

Saúde Mental

Lil­iane expli­ca que os novos estu­dos bus­cam dialog­ar com out­ras pesquisas e lev­an­ta­men­tos sobre a vio­lên­cia arma­da real­iza­dos ante­ri­or­mente. Em 2021, a pesquisa Con­stru­in­do Pontes apon­tou, por meio de abor­dagem amostral, que 55,6% dos moradores da Maré sen­tem medo de que alguém próx­i­mo seja atingi­do por bala per­di­da. Entre aque­les que declararam que já estiver­am expos­tos a tiroteios, 44% relatam danos em sua saúde men­tal, 12% tiver­am pen­sa­men­tos rela­ciona­dos a suicí­dio e 30% à morte.

Out­ros dados chamam a atenção: 26% dos moradores men­cionaram episó­dios depres­sivos e 25,5% con­taram ter tido ansiedade nos três meses ante­ri­ores dev­i­do à vio­lên­cia arma­da. Segun­do os pesquisadores, os relatos col­hi­dos no estu­do com as mul­heres per­mi­ti­ram obter infor­mações mais especí­fi­cas da pop­u­lação fem­i­ni­na e apro­fun­dar o con­hec­i­men­to acer­ca dess­es impactos já rev­e­la­dos nos lev­an­ta­men­tos quan­ti­ta­tivos.

“É um con­stante esta­do de aler­ta. Qual­quer helicóptero que a gente escu­ta, já vem à cabeça uma oper­ação poli­cial. Então, há sem­pre uma pre­ocu­pação com seus famil­iares que saíram para tra­bal­har ou para estu­dar. E aí, será que eles vão voltar bem? Há essa ten­são, que pode agravar ou causar quadro de ansiedade e depressão”, afir­ma Isabel.

Para a pesquisado­ra, a iminên­cia do con­fron­to a qual­quer hora causa sen­sação fre­quente de medo e ten­são. Nos relatos col­hi­dos, há menção ao temor pela vida de fil­hos e netos, à aflição envol­ven­do o barul­ho de helicóptero, à sen­sação de impotên­cia e de silen­ci­a­men­to diante de uma per­da, além de out­ros impactos psi­cológi­cos e emo­cionais. Algu­mas mul­heres comen­taram sobre danos físi­cos e men­tais envol­ven­do mar­cas de tiros em suas residên­cias.

Joseli­ta Pereira da Sil­va, de 63 anos, que tam­bém foi ouvi­da no estu­do con­ta à Agên­cia Brasil que, em dia de oper­ação poli­cial, não con­segue relaxar. “Já acor­do com o meu coração muito agi­ta­do. É muito difí­cil. Eles entram nas nos­sas casas, revi­ram tudo. Tratam como se todos fos­sem ban­di­dos. E não é assim não. Eu sou nasci­da e cri­a­da aqui. Ten­ho três fil­hos biológi­cos e três de cri­ação. Ninguém é ban­di­do, todo mun­do é for­ma­do, graças a Deus. Cada um tem a sua profis­são”.

Rio de Janeiro (RJ), 12/04/2023 - A moradora da favela da Maré Jorgelita Pereira fala sobre os impactos da violência armada em sua vida em pesquisa da Redes da Maré. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro, 12/04/2023 — A morado­ra da favela da Maré Jorgeli­ta Pereira fala sobre os impactos da vio­lên­cia arma­da em sua vida — Foto Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

A morado­ra rela­ta seu temores. “Fico com medo de o meu esposo sair do tra­bal­ho. Fico com medo de meus fil­hos saírem do tra­bal­ho. As cri­anças não podem ir para a esco­la. O pos­to de saúde não fun­ciona. É uma agres­sivi­dade tão grande. Quan­do dá 5h da tarde, a gente per­gun­ta para os viz­in­hos: ‘Já acabou? Já foram emb­o­ra?’. É muito triste”, acres­cen­ta.

Por meio dos depoi­men­tos das mul­heres, os pesquisadores bus­caram iden­ti­ficar tam­bém com­por­ta­men­tos diante da morte de um fil­ho ou de um ente queri­do. Eles indicam que a exposição na mídia, muitas vezes de for­ma depre­cia­ti­va, pode ger­ar rai­va e indig­nação. Com o tem­po, as mul­heres bus­cam lidar com a per­da de out­ras for­mas: algu­mas, por exem­p­lo, se enga­jam em orga­ni­za­ções de base comu­nitária ou de luta políti­ca e out­ras ten­tam ocu­par seu tem­po com o tra­bal­ho.

O estu­do tam­bém asso­cia a vio­lên­cia arma­da a quadros de sín­drome do pâni­co e de transtornos ali­menta­res. Apon­ta ain­da que a pio­ra da saúde men­tal pode estar vin­cu­la­da ao desen­volvi­men­to ou agrava­men­to de doenças como hiperten­são e dia­betes. Além dis­so, os con­fron­tos ger­am impactos neg­a­tivos para o enfrenta­men­to de casos de vio­lên­cia domés­ti­ca: alguns serviços respon­sáveis por pro­te­ger as mul­heres víti­mas dess­es crimes se recusam a entrar no ter­ritório.

Proteção

O estu­do bus­cou enten­der tam­bém as estraté­gias ado­tadas pelas mul­heres diante da vio­lên­cia arma­da. Foram iden­ti­fi­cadas medi­das vari­adas. O uso de roupas bran­cas ou claras foi cita­do e jus­ti­fi­ca­do pela per­cepção de que a polí­cia inter­pre­ta o uso do pre­to como adesão aos gru­pos arma­dos. Out­ra estraté­gia é o acom­pan­hamen­to de redes soci­ais e serviços de men­sagem, por onde se infor­mam sobre a dinâmi­ca do ter­ritório, incluin­do a ocor­rên­cia de con­fron­tos.

Mul­heres dis­ser­am ain­da que tran­cam a por­ta e se escon­dem em locais mais afas­ta­dos e pro­te­gi­dos da casa quan­do as oper­ações poli­ci­ais estão em cur­so. Uma entre­vis­ta­da negra rela­tou ter o hábito de guardar os com­pro­vantes de com­pra dos bens que tem em casa, para provar que seu patrimônio é legal.

Entre aque­las que moram soz­in­ha, tam­bém foi men­ciona­da a prefer­ên­cia de ir para as ruas, onde se sen­tem menos expostas ao risco de assé­dio sex­u­al pelos agentes de segu­rança públi­ca, caso eles invadam suas residên­cias. Em algu­mas das 16 fave­las do Com­plexo da Maré, a reunião de mul­heres em espaço públi­co para se pro­te­gerem cole­ti­va­mente é comum. Os pesquisadores tam­bém obser­varam a existên­cia de esforços volta­dos para a cri­ação cole­ti­va de redes de cuida­do, que pro­por­cionam mel­hor qual­i­dade de vida e ofer­e­cem ambi­ente de amparo e reflexão.

Isabel Bar­bosa afir­mou que o estu­do reúne infor­mações úteis para a elab­o­ração de políti­cas públi­cas. Os próprios pesquisadores fazem recomen­dações que envolvem, por exem­p­lo, mudanças no mod­e­lo de segu­rança públi­ca, implan­tação de equipa­men­tos de saúde e de aces­so à Justiça volta­do para mul­heres, capac­i­tação de profis­sion­ais que atu­am no ter­ritórios e elab­o­ração de pro­gra­mas de reparação para mães e famil­iares de víti­mas de vio­lên­cia arma­da.

Tam­bém são sug­eri­das políti­cas de imple­men­tação de ativi­dades artís­ti­cas e cor­po­rais como estraté­gia de pro­moção de saúde físi­ca e men­tal, como a real­iza­da no âmbito da pesquisa. “A fal­ta de alter­na­ti­vas ou a existên­cia de alter­na­ti­vas precárias de cuida­do faz com que a mul­her se veja muitas vezes iso­la­da. Um acol­hi­men­to é muito impor­tante diante de todo esse sofri­men­to que elas pas­sam. E nes­sas ativi­dades artís­ti­cas, con­seguem olhar para si, se cuidar. E, muitas vezes, isso abre espaço para out­ros tipos de expressão. Quan­do você sofre uma vio­lên­cia, a tendên­cia é se iso­lar e se silen­ciar. Então, ess­es espaços de expressão são impor­tantes”, acres­cen­ta Isabel.

Aman­da Jerôn­i­mo da Sil­va, 29 anos, apro­va. “As mul­heres dão um bom apoio. Cada uma con­ta seus prob­le­mas. Às vezes, é uma choran­do daqui, out­ra de lá. Mel­horou a min­ha sabedo­ria, meu jeito de agir com todo mun­do. A gente ri, brin­ca, a gente entende o sen­ti­men­to da out­ra. Às vezes, uma não quer ir porque está angus­ti­a­da com algu­ma coisa. A gente vai à casa dela e bus­ca, con­ver­sa. Aca­ba crian­do aque­le afe­to de mul­her para mul­her”.

Edição: Graça Adju­to

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