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Medida protetiva parcial pode dificultar quebra de ciclo de violência

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É o que mostra o estudo Visível e invisível — Vitimização da Mulher


Pub­li­ca­do em 04/05/2023 — 06:30 Por Lety­cia Bond — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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Entre 2020 e 2023, a Justiça brasileira emi­tiu 1.443.370 decisões sobre medi­da pro­te­ti­va no con­tex­to da Lei Maria da Pen­ha (Lei nº 11.340/2006), ou seja, que tin­ham como foco a segu­rança de mul­heres víti­mas de vio­lên­cia. De acor­do com o Con­sel­ho Nacional de Justiça (CNJ), a maio­r­ia, ou 71,87%, foi con­ce­di­da inte­gral­mente, mas 8,47% delas (122.192) deixaram de con­tem­plar algum aspec­to que pode­ria garan­tir o bem-estar das mul­heres e con­tribuir para o rompi­men­to do ciclo de agressões. Além dis­so, 6,8% (98.116) foram inde­feri­das.

Pres­i­dente da Comis­são da Mul­her da Ordem dos Advo­ga­dos do Brasil em São Paulo (OAB-SP),  Alessan­dra Caligiuri acred­i­ta que a Justiça, por vezes, “se deixa con­t­a­m­i­nar” pelo machis­mo, deixan­do de con­ced­er medi­das pro­te­ti­vas. Isso expli­caria, por exem­p­lo, a con­cessão de medi­das que asse­gu­ram, por exem­p­lo, o dis­tan­ci­a­men­to do agres­sor em relação à víti­ma e o afas­ta­men­to do lar, mas não agilizam ou con­tem­plam o proces­so de divór­cio do casal.

Na avali­ação de Alessan­dra há, por trás dis­so, uma con­de­scendên­cia dos juízes diante do com­por­ta­men­to abu­si­vo dos home­ns, já que enten­dem que a víti­ma pode per­doar o agres­sor pelo que fez com ela e desi­s­tir de se sep­a­rar, o que com­pli­ca o proces­so de encer­rar o ciclo de vio­lên­cia.

Out­ra situ­ação que acon­tece com fre­quên­cia, segun­do Alessan­dra, é o juiz se abster de decidir sobre a pen­são ali­men­tí­cia que o agres­sor deve pagar aos fil­hos, o que pode faz­er com que a víti­ma reate o rela­ciona­men­to, por não ter condições finan­ceiras de criá-los soz­in­ha. A definição sobre a pen­são, salien­ta, é rara.

Ain­da segun­do a advo­ga­da, ao negar a medi­da pro­te­ti­va de maneira inte­gral, o mag­istra­do tam­bém pas­sa a impressão de que a vio­lên­cia sofri­da não foi tão grave. “Essa vio­lên­cia, entre­tan­to, exige providên­cias urgentes, já que a inten­si­dade das agressões aumen­ta e muitas mul­heres acabam sendo assas­si­nadas pelas mãos dos agres­sores.”

Estu­do real­iza­do por pesquisadores da Uni­ver­si­dade Fed­er­al de Minas Gerais (UFMG) mostrou, com base em um apan­hado de reg­istros de Belo Hor­i­zonte de um perío­do de cin­co anos, que quan­to mais vezes a víti­ma é agre­di­da, menos tem­po se pas­sa entre uma ocor­rên­cia e out­ra. A pesquisa foi con­duzi­da pelo Cen­tro de Estu­dos de Crim­i­nal­i­dade e Segu­rança Públi­ca da UFMG (Crisp).

Do juiz à outra ponta

Os sinais de machis­mo podem começar até mes­mo antes de o pedi­do chegar ao juiz, já que o del­e­ga­do pode faz­er o pedi­do da medi­da pro­te­ti­va e o pro­mo­tor endossá-lo, assim como, ambos podem, tam­bém, se esqui­var de sua respon­s­abil­i­dade e não faz­er nada em favor da víti­ma. “A gente tem um Poder Judi­ciário extrema­mente machista”, avalia a advo­ga­da.

Para Alessan­dra, porém, há um meio para se mel­ho­rar o trata­men­to dado às víti­mas, uma vez que de uma série de val­ores, que podem ser sub­je­tivos, depende o rumo de suas vidas, a edu­cação. “Eu acho que só a edu­cação trans­for­ma. Quem não é capac­i­ta­do, não tem noção de jul­gar, de nada”, defende.

A advo­ga­da ressalta que sem­pre recomen­da às clientes que rep­re­sen­ta que pre­fi­ram o atendi­men­to na Casa da Mul­her Brasileira, por acred­i­tar que lá a chance de ter um encam­in­hamen­to apro­pri­a­do é maior, jus­ta­mente por causa da qual­i­fi­cação da equipe que socorre as víti­mas. Entre­tan­to, a ida ao local nem sem­pre ter­mi­na bem, o que pode ter relação com o machis­mo que tam­bém mar­ca a pos­tu­ra do sis­tema judi­ciário.

Alessan­dra con­tou que, cer­ta vez, uma mul­her entrou em con­ta­to com ela para pedir aju­da, após assi­s­tir a uma live sobre vio­lên­cia con­tra mul­heres, da qual par­ticipou e divul­gou em seu per­fil no Insta­gram. A víti­ma mora­va em Itaquaque­ce­tu­ba, municí­pio que não dis­põe de uma unidade da Casa da Mul­her Brasileira, e, por isso, não teve opção senão recor­rer à Polí­cia Mil­i­tar, após ser ameaça­da pelo com­pan­heiro com uma faca. Os agentes sug­eri­ram à víti­ma que fos­se emb­o­ra de casa e, sem ver saí­da, ela ligou dizen­do que iria se sui­ci­dar.

“Ela me ligou choran­do, dizen­do que ia se matar, se jog­ar na frente do trem. Fiquei com essa mul­her ao tele­fone, pedin­do pelo amor de Deus. Falei: ‘cal­ma, não faz isso, eu vou te aju­dar’. Ela não tin­ha din­heiro para pegar o trem, ir à Casa da Mul­her Brasileira [na cap­i­tal paulista]”, rela­ta.

O que veio depois da chega­da à Casa da Mul­her Brasileira, via­bi­liza­da com o apoio de uma autori­dade que fazia parte da rede de Alessan­dra, foi exata­mente o que a advo­ga­da temia. A del­e­ga­da de plan­tão recu­sou-se a atendê-la, dizen­do que ela dev­e­ria ter ido à del­e­ga­cia mais próx­i­ma de sua residên­cia. “O que não é ver­dade, porque a del­e­ga­cia tem que aten­der, não impor­ta onde você mora. Isso aí não existe”, con­tes­ta a advo­ga­da.

A víti­ma con­seguiu ir para um abri­go da prefeitu­ra, mas as condições da estru­tu­ra eram precárias, fator que pesou e fez com que voltasse para casa. “Tin­ha até perceve­jo. Ela ligou para a gente, do abri­go. Voltou. Disse que tin­ha uma mãe com três fil­hos, que foi víti­ma de ten­ta­ti­va de fem­i­nicí­dio. O cara não esta­va pre­so. Ela voltou para a casa do agres­sor, porque não con­seguiram citar o agres­sor [encon­trá-lo para entre­gar o comu­ni­ca­do], para tirar ele de casa”, lem­bra Alessan­dra.

O que se vê é out­ro prob­le­ma, com a comu­ni­cação ofi­cial ao agres­sor, quan­to ao que é imputa­do a ele e o que é obri­ga­do a faz­er, por deter­mi­nação judi­cial, de acor­do com a advo­ga­da. Ela cita o caso de uma cliente com maior ren­da, que tam­bém pas­sou por situ­ação de difi­cul­dade por causa da fal­ta do informe ao agres­sor, que garan­tiria que ele dev­e­ria deixar a casa dos dois, para que a mul­her agre­di­da pudesse voltar com o fil­ho.

“Ela teve que ficar uma sem­ana no hotel, porque eles não con­seguiam citar o mari­do. Para mim, a medi­da pro­te­ti­va não tem eficá­cia. Não adi­anta você ficar crian­do lei, lei, lei, e não ter aplic­a­bil­i­dade. Acho que a gente tem que capac­i­tar des­de a saúde, o del­e­ga­do de polí­cia, o escrivão que vai te aten­der, o inves­ti­gador, o juiz que vai jul­gar. Eles têm que saber o que é Lei Maria da Pen­ha, porque, muitas vezes, dizem que é cív­el, não é crim­i­nal a vio­lên­cia pat­ri­mo­ni­al. Quan­tas vezes eu dis­cu­ti na del­e­ga­cia por causa dis­so?”, afir­ma.

Há ain­da armadil­has no cam­po das medi­das pro­te­ti­vas, aler­ta Alessan­dra. Segun­do ela, a par­tir do momen­to em que a víti­ma responde men­sagens do agres­sor, em um con­tex­to no qual ele fica­va, por decisão da Justiça, impe­di­do de con­tac­tá-la, a medi­da pro­te­ti­va cai.

“O que o agres­sor faz? Tro­ca men­sagens, pelo celu­lar, com a víti­ma, geral­mente quem tem fil­hos, e elare­sponde. Aí, ele jun­ta ao proces­so que ela está man­ten­do con­ta­to com ele. O juiz vai e der­ru­ba a medi­da pro­te­ti­va, porque os dois estão se falan­do”, disse.

No perío­do anal­isa­do pelo CNJ, só de revo­gações de medi­das pro­te­ti­vas foram 183.741. Esse total equiv­ale a 12,73%.

“A nos­sa Justiça não favorece mães e fil­hos. A nos­sa Justiça favorece home­ns”, resume Alessan­dra.

A advo­ga­da disse que muitos cole­gas de profis­são têm medo de denun­ciar a con­du­ta dos mag­istra­dos ao CNJ, porque temem ser prej­u­di­ca­dos ao ter seus proces­sos jul­ga­dos por ess­es mes­mos juízes.

Violência de gênero na periferia

Morado­ra de Par­que San­to Antônio, bair­ro da zona sul com grande con­cen­tração de fave­las, Maria Alves é mãe de uma víti­ma de fem­i­nicí­dio, que jamais chegou a reg­is­trar bole­tim de ocor­rên­cia con­tra o autor, porque o com­pan­heiro exer­cia con­t­role e influên­cia sobre ela, fazen­do com que desis­tisse de romper o namoro e sus­ten­tan­do uma atmos­fera de pâni­co. Sua fil­ha, Miri­am da Sil­va, de 27 anos de idade, que tra­bal­ha­va na infor­mal­i­dade, aux­il­ian­do pro­fes­so­ras em uma esco­la, foi mor­ta em jun­ho de 2022, pelo mecâni­co com quem man­tinha um rela­ciona­men­to há dez anos. O que acon­te­cia, em ger­al, era que o homem pas­sa­va na casa das duas para bus­car Miri­am, às sex­tas-feiras, e retor­na­va com ela, machu­ca­da, aos domin­gos.

Miri­am demon­stra­va ner­vo­sis­mo, na man­hã de seu assas­si­na­to, lem­bra sua mãe, de quem ten­ta­va escon­der hematomas com maquiagem e que sus­peita­va que a ansiedade da fil­ha se dava por causa de uma tro­ca de men­sagens com o agres­sor. Provavel­mente por causa de seu esta­do emo­cional ou por medo de encon­trar o namora­do no cam­in­ho, a jovem se atra­sou para o tra­bal­ho. O autor do homicí­dio esper­ou por ela a noite toda, em um beco próx­i­mo à casa da jovem, e, quan­do ela saiu para tra­bal­har, ele acer­tou sua nuca com qua­tro tiros, dis­para­dos por uma arma que man­tinha em casa. “Ela já esta­va indo tra­bal­har de Uber, por causa dele”, disse Maria, acres­cen­tan­do que “ela bateu o portão, foi coisa de segun­dos. Só escutei tiro e sabia que era ela já. Eu cor­ri, fui de roupão, e ela esta­va mor­ta já.”

Na época do assas­si­na­to, Miri­am era manip­u­la­da pelo namora­do, que ameaça­va tirar o que ela tin­ha de maior val­or, o fil­ho que tiver­am jun­tos, con­ta Maria. “A vida deles sem­pre foi assim, sep­a­rar, voltar. Porque ele sem­pre foi agres­si­vo”, acres­cen­ta. “A gente sem­pre chama­va a polí­cia, que sem­pre vem depois. Nun­ca vem na hora que a gente quer.”

Quan­do Miri­am con­seguia escapar, cor­ria para a casa da mãe, mas logo volta­va à casa dos dois, após a arti­man­ha do com­pan­heiro, que acaba­va ven­cen­do as batal­has. As agressões foram tan­to psi­cológ­i­cas, que se car­ac­ter­i­zavam por ameaças e gestos como socos nas por­tas de casa, quan­to morais, na for­ma de xinga­men­tos, além de físi­cas e pat­ri­mo­ni­ais.

Maria lem­bra ain­da que as ameaças do rapaz se esten­di­am a ela e que esse era um dos motivos para que não o denun­ci­asse à polí­cia. “Ela foi fican­do maior [de idade] e a gente enten­dia que devia dar um bas­ta. Eu fiz o que eu pude. Fui ameaça­da tam­bém, várias vezes, por ele, porque eu fica­va do lado dela, claro, eu sou mãe. Na min­ha frente, ele não batia, porque eu ia em cima, mas eu tam­bém cor­ria risco. Quan­tas vezes ele falou que ia meter bala na min­ha cara? Ele tin­ha um pouco mais de receio porque eu já ten­ho uma história tam­bém, com o pai do meu fil­ho. Ele viu que eu vou adi­ante. Eu pos­so até mor­rer, mas vou adi­ante”, disse.

Ao con­trário da fil­ha, Maria bus­cou out­ro final para o capí­tu­lo de vio­lên­cia domés­ti­ca que com­põe o históri­co de sua vida. Como Miri­am e out­ras mil­hares de brasileiras, ela era agre­di­da por seu com­pan­heiro, mas encon­trou forças para dis­tin­guir os dois lados dele, o do homem por quem se apaixo­nou e por quem talvez pudesse ain­da sen­tir afe­to e o do que a agre­dia con­stan­te­mente, e prestar queixa.

Há seis anos, quan­do seu fil­ho tin­ha qua­tro anos de idade, o com­pan­heiro ten­tou matá-la. O homem cumpriu pena pelo crime e deixou o sis­tema pri­sion­al. Quan­do soube de sua saí­da, Maria pas­sou a temer por sua vida nova­mente. “Jamais vou tirar a medi­da pro­te­ti­va”, garante. “Ven­do toda a situ­ação que pas­sei e min­ha fil­ha tam­bém. No meu caso, con­segui dar um bas­ta, mas ela não con­seguiu, infe­liz­mente.”

Retrato da violência

De acor­do com a quar­ta edição do lev­an­ta­men­to Visív­el e invisív­el — a vitimiza­ção de mul­heres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segu­rança Públi­ca (FBSP), 50.962 mul­heres sofr­eram vio­lên­cia diari­a­mente em 2022. Ao todo, 18,6 mil­hões de mul­heres foram víti­mas de agressões, ao lon­go de todo o ano anal­isa­do.

A maio­r­ia das víti­mas (65,6%) era negra, com idade entre 16 e 24 anos (30,3%) e residia em cidades do inte­ri­or (51,9%). No que diz respeito às cir­cun­stân­cias dos crimes, a maior parte ocor­reu na casa da víti­ma (53,8%) e foi prat­i­ca­da pelo ex-com­pan­heiro (31,3%) ou com­pan­heiro (26,7%).

O relatório tam­bém dá pis­tas sobre as razões que lev­am as víti­mas a não denun­ciar o agres­sor. São cita­dos os seguintes fatores: acred­i­tam que resolvem o prob­le­ma soz­in­has (38%), não acred­i­tam que a polí­cia solu­cione a questão (21,3%) e não acham que têm provas sufi­cientes para incrim­i­nar o autor do crime (14,4%). Diante do episó­dio mais grave de vio­lên­cia, quase metade das víti­mas (45%) afir­mou não ter toma­do nen­hu­ma providên­cia, enquan­to a família foi a primeira opção para 17,3% delas. Quem pediu socor­ro tam­bém recor­reu a ami­gos 15,6%) e a uma del­e­ga­cia espe­cial­iza­da no atendi­men­to a mul­heres (14%).

Edição: Fer­nan­do Fra­ga

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