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Memes políticos disputam imaginário com humor, mas podem desinformar

Linguagem foi incluída nas campanhas para transmitir ideologias

Fran­ciel­ly Bar­bosa*
Pub­li­ca­da em 03/10/2024 — 08:02
Rio de Janeiro
Uso de Smartphone e celular
Repro­dução: © Tânia Rêgo/Agência Brasil

“O sen­hor é um padre de fes­ta jun­i­na”, disse a can­di­da­ta a pres­i­dente Soraya Thron­icke (Pode) durante o últi­mo debate do primeiro turno da eleição de 2022. A declar­ação da pres­i­den­ciáv­el con­tra o tam­bém can­dida­to Padre Kel­mon (atual­mente no PL e, na época, no PTB), em 29 de setem­bro, extrapolou o alcance do debate tele­vi­si­vo, foi repeti­da inúmeras vezes na inter­net em tom cômi­co e gan­hou espaço na memória do eleitor até hoje. Virou “meme”.

Definido como uma lin­guagem que viral­iza no uni­ver­so vir­tu­al, “o meme cumpre essa função de entreter e diver­tir, mas tam­bém têm out­ros obje­tivos, espe­cial­mente no ambi­ente políti­co”, expli­ca à Agên­cia Brasil o pro­fes­sor do Depar­ta­men­to de Estu­dos Cul­tur­ais e Mídia da Uni­ver­si­dade Fed­er­al Flu­mi­nense (UFF), Vik­tor Cha­gas.

meme maicon

Autor da pesquisa A políti­ca dos memes e os memes da políti­ca: pro­pos­ta metodológ­i­ca de análise de con­teú­do de memes dos debates eleitorais de 2014, o pesquisador esclarece que o ter­mo não surgiu dire­ta­mente da inter­net. Orig­i­nal­mente, a definição se ref­ere à maneira como as infor­mações cul­tur­ais são trans­mi­ti­das de ger­ação em ger­ação.

“O con­ceito surge na déca­da de 1970, por­tan­to muito antes da pop­u­lar­iza­ção da inter­net. Ele foi cun­hado pelo biól­o­go Richard Dawkins no livro O Gene Egoís­ta (1976) como ter­mo anál­o­go ao gene, só que na cul­tura”, con­ta Cha­gas.

Com o pas­sar do tem­po, a palavra foi usa­da por diver­sos cam­pos do con­hec­i­men­to, até que no final da déca­da de 1990 hou­ve a sua apro­pri­ação defin­i­ti­va pelos usuários da inter­net, que começaram a definir “meme” como o com­par­til­hamen­to de ima­gens, vídeos e piadas virais.

“Podemos falar que há dois memes, um antes da inter­net e out­ro depois dela, porque quan­do pas­samos a nos apro­pri­ar desse con­ceito, ele pas­sou a rep­re­sen­tar algo com­ple­ta­mente difer­ente e, então, nati­vo do ambi­ente dig­i­tal”.

Asso­ci­a­da a nichos cul­tur­ais especí­fi­cos, essa lin­guagem tam­bém se car­ac­ter­i­za por camadas de infor­mação com­bi­nadas ao humor, aten­den­do a uma lóg­i­ca na qual os usuários bus­cam con­strução de iden­ti­dade e per­tenci­men­to.

“Hoje, há toda uma econo­mia desen­volvi­da em torno dos memes. Os grandes respon­sáveis por diminuir a relação de cus­to-bene­fí­cio na pro­dução deles são o que chamamos vul­gar­mente de ‘ger­adores de meme’: pequenos aplica­tivos respon­sáveis por desen­volvê-los a par­tir de alguns mod­e­los”, acres­cen­ta.

Âmbito político

Pesquisado­ra do Lab­o­ratório de Estu­dos de Inter­net e Redes Soci­ais da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (Net­Lab-UFRJ), Déb­o­ra Salles con­sid­era o perío­do de 2008 a 2012 — momen­to em que os can­didatos pas­saram a inve­stir mas­si­va­mente na inter­net — como o mar­co ini­cial da uti­liza­ção de memes nas cam­pan­has políti­cas.

“O Oba­ma (ex-pres­i­dente dos Esta­dos Unidos) foi o grande pon­to de vira­da na cam­pan­ha políti­ca on-line. Com ele começa o uso de memes, ain­da que algo restri­to, mas que vai crescen­do em importân­cia social e cul­tur­al con­forme o aumen­to do uso da inter­net e da pen­e­tração dos aplica­tivos na sociedade”.

No Brasil, a intro­dução dos memes nos perío­dos eleitorais ocor­reu logo depois, com as eleições gerais de 2014, quan­do Dil­ma Rouss­eff foi reelei­ta ao car­go de pres­i­dente do país.

“As eleições de 2014 foram talvez o primeiro momen­to em que vimos efe­ti­va­mente os memes entrarem na cena públi­ca, com um caráter, inclu­sive, ofi­cial”, desta­ca o pro­fes­sor da UFF. “A Dil­ma, na ocasião, foi víti­ma de muitos memes mis­ógi­nos, assim como a Mari­na Sil­va”, relem­bra.

Para Cha­gas, no cenário políti­co os memes podem ser uti­liza­dos como estraté­gia para per­suadir difer­entes gru­pos e chamar a atenção para uma posição ide­ológ­i­ca.

“Eles podem con­tribuir para a con­strução de uma deter­mi­na­da leitu­ra sobre um per­son­agem da políti­ca, poden­do atacar ou difamar. Nesse sen­ti­do, eles estão ali ten­tan­do con­vencer o eleitor de uma cer­ta visão de mun­do. Não à toa, muitas cam­pan­has têm investi­do larga­mente na pro­dução de memes ou no incen­ti­vo à comu­nidade de pro­du­tores e influ­en­ci­adores dig­i­tais”, desta­ca.

Tam­bém é comum os memes serem pro­duzi­dos por apoiadores e movi­men­tos orga­ni­za­dos da sociedade com a intenção de criticar opos­i­tores e desle­git­i­mar adver­sários. “Eles aju­dam a deixar claro val­ores e con­ceitos, desar­mar os críti­cos e aliviar a ten­são. São uma tradução da cria­tivi­dade das comu­nidades”, resume a pesquisado­ra do Net­Lab.

Desinformação

“É impor­tante diz­er que na maio­r­ia das vezes em que os memes são pro­duzi­dos e divul­ga­dos, eles não têm nec­es­sari­a­mente um con­teú­do mali­cioso ou prob­lemáti­co”, ressalta Salles.

“A questão é que eles têm sido cada vez mais uti­liza­dos por gru­pos extrem­is­tas, que se apro­pri­am de cer­tas ima­gens, piadas e acon­tec­i­men­tos para propa­gar desin­for­mação e pro­mover dis­cur­sos de ódio”.

À Agên­cia Brasil, a pesquisado­ra traz que existe uma difer­ença entre infor­mação fal­sa e a desin­for­mação. No ger­al, a primeira é algo que pode ser des­men­ti­do, enquan­to a segun­da é um con­ceito além, que tam­bém englo­ba a infor­mação fal­sa.

“Muitas vezes, a desin­for­mação está lidan­do com infor­mações ver­dadeiras, mas tiradas de con­tex­to e dis­tor­ci­das. Já a infor­mação fal­sa está inseri­da na desin­for­mação, que inclui out­ras questões que não podem ser ver­i­fi­cadas”.

Para ela, os memes estão rela­ciona­dos à desin­for­mação na medi­da em que o humor é uti­liza­do para cri­ar uma “zona cinzen­ta” entre o “prob­lemáti­co e aqui­lo que é social­mente aceitáv­el”, sendo usa­do para escapar desse tipo de mod­er­ação.

Segun­do Déb­o­ra Salles, um dos grandes prob­le­mas no com­bate à desin­for­mação ger­a­da pelos memes é a difi­cul­dade de mod­er­ação das platafor­mas dig­i­tais. “É difí­cil iden­ti­ficá-los e tirá-los do ar, porque as platafor­mas têm difi­cul­dades em recon­hecer os memes. Com isso, espe­cial­mente quan­do os memes são prob­lemáti­cos ou divul­ga­dos por gru­pos extrem­is­tas, o prin­ci­pal desafio para com­batê-los é que não sabe­mos muito bem como isso é admin­istra­do pelas platafor­mas que não lib­er­am infor­mações sobre os seus con­teú­dos para a sociedade, para os pesquisadores ou mes­mo para o Esta­do”.

A estu­diosa aler­ta que os eleitores em ger­al “pre­cisam lem­brar que o humor pode ser sem­pre usa­do como estraté­gia para falar aqui­lo que você não falar­ia nor­mal­mente”.

Assim, reforça haver uma neces­si­dade de se inve­stir em inter­pre­tação para que as pes­soas pos­sam iden­ti­ficar se aque­la imagem, áudio ou vídeo se tra­ta ape­nas de uma pia­da ou de uma estraté­gia para os apoiadores espal­harem men­sagens que não con­seguiri­am com­par­til­har dire­ta­mente.

*Estag­iária sob super­visão de Viní­cius Lis­boa

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