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Morte de Antonio Cicero reacende debate sobre eutanásia

Dogmas religiosos impedem discussão no país, dizem especialistas

Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 27/10/2024 — 10:58
Brasília
Brasília (DF) - 27/10/2024 - Carolina Arruda. Foto: Carolina Arruda/Arquivo Pessoal
Repro­dução: © Car­oli­na Arruda/Arquivo Pes­soal

“Queri­dos ami­gos, encon­tro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que min­ha vida se tornou insu­portáv­el. Estou sofren­do de Alzheimer…”. As palavras do poeta Anto­nio Cicero, de 79 anos, na car­ta que deixou, comover­am o Brasil. “Espero ter vivi­do com dig­nidade e espero mor­rer com dig­nidade”. Ele mor­reu na Suíça, na últi­ma quar­ta-feira (23), onde o suicí­dio assis­ti­do é per­mi­ti­do.

A história do imor­tal da Acad­e­mia Brasileira de Letras, autor de ver­sos como “mel­hor se guar­da o voo de um pás­saro do que pás­saros sem voos”, além de emo­cionar, tam­bém reabriu o debate sobre assun­tos polêmi­cos como eutanásia, suicí­dio assis­ti­do e dig­nidade da morte.

Um imor­tal decid­iu mor­rer, mas pode des­per­tar o debate sobre suicí­dio assis­ti­do no Brasil. Out­ros brasileiros vivem o mes­mo dra­ma, mas, sem din­heiro para bus­car uma solução em out­ros país­es, enfrentam bar­reiras legais no Brasil.

“Dores insuportáveis”

A estu­dante de vet­er­inária Car­oli­na Arru­da, de 27 anos, da cidade de Bam­buí (MG), sofre des­de os 16 anos com neu­ral­gia do trigêmeo, uma doença que afe­ta os ner­vos do ros­to e provo­ca dor inten­sa, descri­ta por profis­sion­ais de saúde como tão forte que é impos­sív­el de ser igno­ra­da. Mes­mo em um cenário dolori­do e com­plexo, ela fez cam­pan­ha para con­seguir recur­sos para realizar o suicí­dio assis­ti­do na Suíça. Con­viven­do com essas “dores insu­portáveis”, Car­oli­na esti­ma que pre­cis­aria mais de R$ 200 mil para via­bi­lizar o pro­ced­i­men­to.

“Meu son­ho é ain­da ver min­ha fil­ha se for­mar. Ela tem 10 anos ain­da”. Por isso, não sabe se será pos­sív­el. “A min­ha roti­na de vida hoje é prati­ca­mente o dia inteiro na cama porque, se eu faço qual­quer esforço físi­co, eu já des­maio de dor”.

Ela expli­ca que foi muito difí­cil pen­sar em um pro­ced­i­men­to que colo­casse fim à vida. “Eu ain­da não tin­ha cor­agem de expres­sar. Min­ha família não acei­ta, mas entende”. Foram os ami­gos e a família que viram os dias se trans­for­marem em exper­iên­cias de dores lanci­nantes para Car­oli­na. Ela sabe que a doc­u­men­tação exigi­da levará bas­tante tem­po para ser acei­ta na Suíça. “Mais de qua­tro anos. Sei que no Brasil esse assun­to nem é dis­cu­ti­do e nem tão cedo será trata­do. Há uma ven­da nos olhos para isso”.

Apenas para ricos

Ouvi­dos pela Agên­cia Brasil, pesquisadores refer­ên­cias em bioéti­ca no país con­sid­er­am o assun­to com­plexo. Mas tam­bém apon­tam que tabus morais e reli­giosos impe­dem um debate mais amp­lo sobre leg­is­lação e até sobre os cuida­dos em um momen­to indis­so­ciáv­el da exper­iên­cia humana, a preparação para a morte.

Autori­dade inter­na­cional nas pesquisas em bioéti­ca, o pro­fes­sor eméri­to Vol­nei Gar­rafa, da Uni­ver­si­dade de Brasília (UnB), avalia que lon­gas inter­nações sem o suporte do Esta­do mostram que a dig­nidade da morte para situ­ações insu­portáveis fica restri­ta a quem tem priv­ilé­gio finan­ceiro. “O país é con­ser­vador e não avança ness­es temas morais, o que é lamen­táv­el, porque isso aí real­mente traz pre­juí­zo para a cidada­nia, prin­ci­pal­mente das pes­soas mais pobres”.

Ele entende que todos os temas que envolvem questões morais no Brasil, incluin­do dog­mas reli­giosos, ger­am resistên­cia no Leg­isla­ti­vo brasileiro para uma even­tu­al for­mu­lação que abar­que o tema da eutanásia ou suicí­dio assis­ti­do.

A difer­ença bási­ca entre eutanásia e suicí­dio assis­ti­do é que, na eutanásia, o médi­co real­iza o ato que vai levar à morte. E no suicí­dio assis­ti­do é o paciente que faz o ato final.

Coor­de­nado­ra do Lab­o­ratório de Estu­dos sobre a Morte do Insti­tu­to de Psi­colo­gia da Uni­ver­si­dade de São Paulo, a pro­fes­so­ra Maria Júlia Kovács con­sid­era que a história de Anto­nio Cicero é comovente tam­bém por causa da sin­ceri­dade. “De con­tar a sua história, e de tomar a decisão por uma morte digna. Hou­ve uma comoção bas­tante impor­tante (para redução dos tabus a respeito do tema)”.

No Brasil, essas práti­cas são proibidas e podem levar profis­sion­ais da saúde à con­de­nação penal.  “O panora­ma leg­isla­ti­vo, no cam­po de reg­u­la­men­tação das ciên­cias rela­cionadas com a vida humana, no amp­lo sen­ti­do, é um ver­dadeiro deser­to”, crit­i­ca Gar­rafa. Ele entende que o tema da “ter­mi­nal­i­dade da vida” tem sido con­stan­te­mente afas­ta­do do debate brasileiro. “Tem sido um tabu no para a sociedade brasileira, para a cidada­nia, tudo o que se ref­ere ao final da vida”.

Pesquisado­ra em dire­ito e docente da pós-grad­u­ação em bioéti­ca da UnB, Aline Albu­querque esclarece que tan­to a eutanásia e suicí­dio assis­ti­dos ain­da são crimes do pon­to de vista do Códi­go Penal. “Nós não temos nen­hu­ma mod­i­fi­cação leg­isla­ti­va nesse sen­ti­do do Brasil. É um tema com­plexo não só no Brasil. Atual­mente há um pro­je­to de novo Códi­go Penal, que está no Sena­do, em relação à eutanásia com a pos­si­bil­i­dade do juiz não aplicar a pena”.

Outros países

Estu­diosos avaliam, no entan­to, que o cresci­men­to do número de idosos (pes­soas aci­ma de 65 anos rep­re­sen­tam 10,9% da pop­u­lação) e a evolução das tec­nolo­gias que man­têm pes­soas vivas em situ­ações irre­ver­síveis devem tornar as dis­cussões sobre o tema mais recor­rentes.

Gar­rafa afir­ma que as ações de cuida­dos palia­tivos para pes­soas com doenças avançadas, com respeito à dig­nidade do paciente, têm sido pos­i­ti­vas. O pro­fes­sor cita que nos estu­dos de mestra­do e doutora­do em bioéti­ca na Uni­ver­si­dade de Brasília, a ter­mi­nal­i­dade da vida tem sido um tema de fun­da­men­tal inter­esse e que tra­bal­ha com clas­si­fi­cações.

“A dis­tanásia, por exem­p­lo, é o pro­longa­men­to arti­fi­cial da vida sem neces­si­dade. É uma vida que vai ter mui­ta dor. O suicí­dio assis­ti­do é uma for­ma que vem sendo dis­cu­ti­da e implan­ta­da em país­es europeus, como Holan­da, Bél­gi­ca e Suíça”. Ele diz que ness­es país­es os casos são cuida­dosa­mente anal­isa­dos.

A pro­fes­so­ra Maria Júlia Kovács acres­cen­ta que país­es da Améri­ca do Norte e tam­bém do Sul têm out­ras res­oluções sobre o assun­to. “Os europeus estão mais avança­dos e a Améri­ca do Norte tam­bém. Seja nos Esta­dos Unidos, com suicí­dio assis­ti­do, seja no Canadá, com morte assis­ti­da. Aqui na Améri­ca Lati­na, a Colôm­bia, Uruguai e Chile estão dis­cutin­do a questão”.

Ela iden­ti­fi­ca que uma even­tu­al leg­is­lação pode­ria abor­dar a morte assis­ti­da, como no caso do Anto­nio Cicero. “Eu acho que o primeiro pas­so que o Brasil dev­e­ria dar seria dis­cu­tir o tema”.

Para ela, os cuida­dos palia­tivos favore­cem uma morte digna. “Out­ra pos­si­bil­i­dade de morte digna no nos­so país são as dire­ti­vas ante­ci­padas de von­tade em que a pes­soa expres­sa aque­les trata­men­tos que ela gostaria que tivesse no final da vida e prin­ci­pal­mente os que ela não gostaria”. Ela expli­ca que essas dire­ti­vas são chance­ladas como res­olução pelo Con­sel­ho Fed­er­al de Med­i­c­i­na.

Brasília (DF) 23/10/2024 - Poeta e letrista Antonio Cícero morre na Suíça, aos 79 anos. Foto: ABL/Divulgação
Repro­dução: O poeta e letrista Anto­nio Cicero decid­iu pela eutanásia após se deparar com o avanço do Alzheimer. “Espero ter vivi­do com dig­nidade e espero mor­rer com dig­nidade”. Foto: ABL/Divulgação

Além das questões morais

Os pesquisadores enten­dem que se tra­ta de tema que pre­cisa ser abor­da­do des­de a esco­la de algu­ma for­ma, incluin­do mais atenção por parte da impren­sa. Aline Albu­querque expli­ca que a uni­ver­si­dade tem lev­a­do o tema para o cam­po da edu­cação e pon­dera que se tra­ta de assun­to com­plexo e que requer olhar amp­lo. Segun­do ela, a inclusão do Sis­tema Úni­co de Saúde (SUS) no debate é impor­tante.

“As pes­soas podem falar em descrim­i­nalizar (a práti­ca da eutanásia), mas deve-se obser­var que seria necessário, por exem­p­lo, estru­tu­rar o sis­tema de saúde públi­ca para isso”. Para ela, há tam­bém um imag­inário infun­da­do que uma even­tu­al aprovação da eutanásia pos­si­bil­i­taria que o pro­ced­i­men­to fos­se real­iza­do em casa. “Isso não existe. Elas têm que ser assis­ti­das por profis­sion­ais de saúde”.

Vol­nei Gar­rafa, que foi o del­e­ga­do brasileiro em 2005 para a Declar­ação Uni­ver­sal sobre Bioéti­ca e Dire­itos Humanos, elab­o­ra­da pela Unesco e aprova­da por 191 país­es, diz que o doc­u­men­to enfa­ti­za o respeito à dig­nidade humana e aos dire­itos humanos. “É difí­cil, porque muitas vezes as decisões a serem tomadas são duras, como é o caso de inter­romper uma vida”. Ele lamen­ta que o Brasil até hoje não tem um Con­sel­ho Nacional de Bioéti­ca que pode­ria colab­o­rar para o asses­so­ra­men­to e for­mu­lações de um regra­men­to sobre o tema.

Sociedade plural

O tabu da morte está lig­a­do ain­da ao fato que os últi­mos momen­tos da vida pas­saram, em ger­al, a ser uma exper­iên­cia em hos­pi­tais. Antes, as pes­soas mor­ri­am mais em casa e as cri­anças viam as des­pe­di­das.

A pro­fes­so­ra de dire­ito avalia que o tema da morte não está enfa­ti­za­do nem na for­mação dos profis­sion­ais de saúde. “Em razão dis­so, muitos pro­ced­i­men­tos que são infrutífer­os ocor­rem porque os profis­sion­ais não sabem lidar com a morte e com a per­da dos pacientes”, expli­ca.

Aline Albu­querque con­tex­tu­al­iza que o Brasil vive hoje uma sociedade plur­al, tam­bém do pon­to de vista moral. Uma sociedade que tornou a morte um tabu, inde­pen­dente de religião, e que traz uma for­mação de pen­sa­men­to na sacral­i­dade da vida porque seria con­ce­bi­da por Deus. Por out­ro lado, há out­ro sen­so de que a vida é de autono­mia do indi­ví­duo. “É muito difí­cil o Esta­do tomar uma posição diante de um desacor­do moral tão com­plexo”.

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