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Mostra reúne obras da carreira de Maria Lira Marques

Repro­dução: © Ricar­do Miya­da

Exposição vai até 26 de maio, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo


Pub­li­ca­do em 02/03/2024 — 17:07 Por Cami­la Boehm — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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A exposição Roda dos Bichos, que reúne tra­bal­hos de toda a car­reira da artista Maria Lira Mar­ques, de 79 anos, estreia neste sába­do (2), no Insti­tu­to Tomie Ohtake, na cap­i­tal paulista. Entre pin­turas e escul­turas estão peças nas quais uti­li­zou bar­ro extraí­do das encostas mineiras para pro­duzir cerâmi­cas e pig­men­tos nat­u­rais. A mostra vai até 26 de maio.

A mostra é divi­di­da entre as três salas à esquer­da do grande hall. Na primeira, redon­da, estão as pin­turas em seixos de rio e out­ros tra­bal­hos em papel. A segun­da traz difer­entes gru­pos de obras e famílias de bichos, reunin­do grande parte dos tra­bal­hos apre­sen­ta­dos na exposição.

Já a ter­ceira sala, além de apre­sen­tar obras do iní­cio da car­reira de Maria Lira, é ded­i­ca­da a con­tex­tu­alizar seu tra­bal­ho e lig­ação com o Vale do Jequit­in­hon­ha, com doc­u­men­tos, obje­tos, can­tos e fotografias. Há ain­da a apre­sen­tação de um cur­ta-metragem pro­duzi­do espe­cial­mente para a exposição, exibindo seus can­tos, tra­jetória e obra.

Os curadores Paulo Miya­da e Sab­ri­na Fontenele ressaltam que a pro­dução é pro­fun­da­mente mar­ca­da pelo imag­inário do semi­ári­do mineiro e que a artista se desta­ca por desen­volver uma lin­guagem sin­gu­lar, pin­tan­do em pedras ou sobre o papel seres que habitam seu uni­ver­so. “Os bichos do sertão de Lira vivem na pais­agem imag­i­nante que se for­ma na ressonân­cia entre a artista e o ter­ritório. Tomam assen­to na super­fí­cie arredonda­da de seixos de rio, delineiam-se entre man­chas feitas de água, cola e pig­men­tos min­erais”, afir­mou Miya­da.

“Rea­pare­cem enquadra­dos em planos de tons de ver­mel­ho, ocre, bran­co e amare­lo, soz­in­hos ou em grupo, muitas vezes jun­to a sím­bo­los-runas que traduzem ele­men­tos mais-que-humanos. São bichos de ter­ra, mar­cam-se na ter­ra, e estão sem­pre grávi­dos de movi­men­to”, disse o curador.

Nasci­da no municí­pio de Araçuaí (MG), no Vale do Jequit­in­hon­ha, Maria Lira é ceramista, pin­to­ra e pesquisado­ra auto­di­da­ta. O inter­esse por escul­turas surgiu por vol­ta dos cin­co anos, obser­van­do a mãe cri­ar peças em bar­ro para pre­sen­tear viz­in­hos. Com cera de abel­ha, que o pai usa­va na sap­ataria, a artista moldou suas primeiras peças. Ain­da na infân­cia, na bus­ca por desen­volver suas habil­i­dades, apren­deu a lidar com o bar­ro jun­to a uma viz­in­ha, uma artesã e ceramista da região con­heci­da por “Dona Joana”.

“Ela já era bas­tante vel­ha, e com ela eu apren­di mui­ta coisa. Ela me lev­ou no lugar onde tira­va o bar­ro, foi me expli­can­do como tirar a ter­ra, olhar a ocasião de lua para tirar a ter­ra, para não que­brar, não rachar, os tipos de madeira­men­to e os tipos de fol­hagem para queimar, para a peça obter um cer­to bril­ho. Eu apren­di mui­ta coisa para mel­ho­rar o meu tra­bal­ho em questão de téc­ni­cas per­gun­tan­do às pes­soas”, con­tou Maria Lira.

Na déca­da de 1970, con­heceu Frei Chico, mis­sionário holandês, ami­go e par­ceiro profis­sion­al, com quem tra­bal­hou para doc­u­men­tar a cul­tura pop­u­lar do Vale do Jequit­in­hon­ha, gra­van­do can­tos e rezas tradi­cionais. Resul­ta­do dessa parce­ria, a cidade gan­hou tam­bém um museu ded­i­ca­do à história e cul­tura pop­u­lar da região.

Após diag­nós­ti­co de uma ten­di­nite, Maria Lira pre­cisou tro­car a pro­dução de escul­turas pela pin­tu­ra, usan­do o bar­ro em difer­entes tonal­i­dades como pig­men­to para desen­har. Em via­gens jun­to a Frei Chico, eles recol­hi­am porções de ter­ra para que a artista uti­lizasse em suas peças. A Agên­cia Brasil entre­vis­tou a artista, que con­tou pas­sagens de sua tra­jetória.

Mostra em São Paulo reúne obras da carreira de Maria Lira Marques. Exposição vai até 26 de maio, no Instituto Tomie Ohtake. Foto: Divulgação
Repro­dução: Mostra em São Paulo reúne obras da car­reira de Maria Lira Mar­ques. Foto: Divul­gação — Divul­gação

Confira os principais trechos:

Agên­cia Brasil: Como surgiu o inter­esse em escul­turas a par­tir do bar­ro?
Maria Lira Mar­ques: Tudo começou ven­do min­ha mãe tra­bal­har. Ela, todo ano, fazia os presé­pios de Natal e doa­va pros viz­in­hos lá da min­ha rua. Todo mun­do fica­va atrás dela para faz­er os pre­sepin­hos. E eu, peque­na, a via tra­bal­har e logo me inter­es­sei em quer­er apren­der. Fica­va ao lado dela, vendo‑a manuse­ar o bar­ro. Só que as primeiras pecin­has que fiz foi com cera de abel­ha. Meu pai era sap­ateiro e tin­ha bas­tante cera de abel­ha em casa. E eu acha­va inter­es­sante pegar o bolo de cera e chegar na brasa, der­reter a cera e manuse­ar, faz­er as pecin­has. Depois eu come­cei a usar mes­mo o próprio bar­ro. Porque aqui­lo eu já gosta­va, de lidar com bar­ro. E, já com aque­la intenção, eu pen­sa­va assim: eu quero ser o que min­ha mãe é.

Agên­cia: Qual era sua inspi­ração para pro­duzir as escul­turas?
Maria Lira: Eu gos­to muito de expressão de ros­to e de obser­var o ros­to das pes­soas. E min­ha mãe fala­va muito de assun­to do negro, con­ta­va muito caso de escravidão, casos muito tristes. Eu ten­ho descendên­cia de negro e de índio na família, eu sou negra. Eu gos­to de expres­sar ros­to do negro. Quan­do não é do negro, é do índio. Mas não é só más­cara que eu faço, faço tam­bém fig­uras.

Quan­do eu quero mostrar, por exem­p­lo, um caso de explo­ração, de um prob­le­ma social, eu pos­so mostrar isso no bar­ro. Se eu soubesse faz­er poe­sia, se eu quisesse mostrar isso na músi­ca, pode mostrar no teatro, mas eu mostro essa leitu­ra no bar­ro. Eu ten­ho a peça do par­to, e esse par­to que eu fiz não é sim­ples­mente uma mul­her ter o fil­ho, mas é a luta de todas as mul­heres, não só do Vale do Jequit­in­hon­ha, mas de todo o mun­do. É uma pes­soa que está lutan­do, que está pele­jan­do para sobre­viv­er.

Agên­cia: Qual foi a importân­cia do encon­tro com o Frei Chico?
Maria Lira: Uma vez, perceben­do o meu tra­bal­ho como artesã, ele me aju­dou muito a ir pra frente, a crescer, a dar val­or, a falar comi­go da importân­cia daqui­lo que eu fazia, para a gente não aban­donar. O tra­bal­ho jun­to com ele foi mar­avil­hoso, porque com ele tam­bém eu apren­di a val­orizar a min­ha própria cul­tura, fazen­do os tra­bal­hos de pesquisa sobre a cul­tura pop­u­lar no Vale, de gravar os can­tos de roda, os can­tos de tra­bal­ho, os can­tos de canoeiro, de tropeiro, os acalan­tos, can­tos para pedir esmo­la.

Tudo isso nós grava­mos. Depois, entramos na parte da reli­giosi­dade pop­u­lar, os can­tos de pen­itên­cia, os ben­di­tos, os lou­vores de anjos. Você não acha em nen­hum livro escrito essa cul­tura dos pobres. E a intenção dele era ter um coral, em Araçuaí, que can­tasse todo esse tipo de músi­ca.

Grava­mos 250 fitas cas­sete [com can­tos da pop­u­lação local], depois peg­amos, fita por fita, para faz­er índices. Depois copi­ar tudo que esta­va nes­sa fita sem alter­ar nada. Ele fala­va comi­go “Lira, o que você não enten­der, no copi­ar das fitas, você põe inter­ro­gação para depois a gente escu­tar dire­it­in­ho ou per­gun­tar à própria pes­soa”.

Todo esse tra­bal­ho de pesquisa, nós dois fize­mos. O Coral Trovadores do Vale, faz 50 anos, ele criou para a gente can­tar tudo o que fos­se do povo, jus­ta­mente para val­orizar essa cul­tura que não está escri­ta em livros, a tradição oral dos pobres. Eu estou com 79 anos e ain­da par­ticipo do coral. Cheguei logo assim que ele fun­dou o coral.

Agên­cia: Como foi o iní­cio do Museu de Araçuaí, jun­to ao Frei Chico?
Maria Lira: Depois do coral, ele falou pra mim “Lira, você me aju­da a gente faz­er um museu?”. Eu falei “eu aju­do”. Quan­do ele falou, eu me entu­si­as­mei. Quan­do ele falou para mim que ele que­ria um museu com as coisas de uso que as pes­soas tin­ham em casa, e eu con­hecia bem as pes­soas onde tin­ha o mate­r­i­al, então, não foi difí­cil para a gente. Ele me ensi­nou a faz­er o fichário, me ensi­na­va tudo.

Então, quan­do se gan­ha uma peça ou, se alguém não quis­er doar, explicar a final­i­dade do museu, aqui em Araçuaí, pras pes­soas. Ele que­ria esse museu, onde tudo que tivesse no museu era de uso do pes­soal mais sim­ples. E eu con­segui, quan­do eu fala­va, as pes­soas doavam, rara­mente a gente com­pra­va algu­ma coisa. Ele me ensi­nou a faz­er o fichário, o nome da peça, como usa­va aqui­lo que tin­ha gan­hado, a data, o nome da pes­soa, em que lugar eu peguei aque­la peça, se foi em Araçuaí ou se foi na zona rur­al, na casa de out­ra pes­soa.

Agên­cia: Sobre as suas pin­turas, me con­ta um pouco das cole­tas de ter­ras col­ori­das que a sen­ho­ra fazia em das via­gens?
Maria Lira: Depois que Frei Chico mudou de Araçuaí para Belo Hor­i­zonte, todo ano ele ia lá no mês de out­ubro para faz­er a fes­ta do Rosário. Na vol­ta, eu ia jun­to com ele e ele fala­va, “Lira, no cam­in­ho, todas as ter­ras que você ver, você fala comi­go que eu paro o car­ro para a gente cole­tar essas ter­ras pr’ocê”. E foi dessa maneira, com as idas dele, porque ele se inter­es­sa­va muito pelo meu tra­bal­ho, muito pelo meu cresci­men­to, pela min­ha arte. Ali em Dia­man­ti­na nós cole­ta­mos mui­ta ter­ra, tem mui­ta ter­ra col­ori­da ali na Cha­pa­da.

Ess­es pig­men­tos não é assim em qual­quer ter­ra não, é ter­ra mes­mo min­er­al. Em Belo Hor­i­zonte tam­bém nós coletá­va­mos mui­ta ter­ra, ali na [região da] Man­nes­mann [siderúr­gi­ca], em lugares que a gente via que tin­ha veia de ter­ra, mais é ness­es lugares que a gente encon­tra, onde mexe com lavra­do, que às vezes tem ouro, é que dá esse tipo de ter­ra, às vezes uma margem de rio. Eu ten­ho mui­ta ter­ra col­ori­da lá colo­ca­da em vidros, trans­par­ente, que você pode ver a cor dos bar­ros, das ter­ras. Tem ter­ra amarela de várias tonal­i­dades, o bran­co, o roxo e out­ras cores. É um encan­to a ter­ra, viu? É saber olhar a ter­ra para você encon­trar essa grandiosi­dade de cores.

Edição: Maria Clau­dia

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