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“Mulher, negra, mãe e cria da favela”: a trajetória de Marielle Franco

Repro­dução: © Câmara Munic­i­pal do RJ

Vereadora morta há cinco anos era líder ativa na defesa de minorias


Pub­li­ca­do em 14/03/2023 — 06:32 Por Rafael Car­doso – Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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“Não sou livre enquan­to out­ra mul­her for pri­sioneira, mes­mo que as cor­rentes dela sejam difer­entes das min­has”, disse Marielle Fran­co, trin­ta min­u­tos antes de ser assas­si­na­da, no dia 14 de março de 2018. As palavras eram emprestadas da norte-amer­i­cana Audre Lorde, ativista pelos dire­itos das mul­heres, negros e homos­sex­u­ais. Na sequên­cia, se des­pediu com a frase “Vamo jun­to ocu­par tudo”, ao encer­rar o even­to Jovens Negras Moven­do as Estru­turas.

Tan­to a citação quan­to o con­vite para a luta políti­ca aju­dam a dimen­sion­ar o per­fil da vereado­ra. Ao falar de si, fre­quente­mente se descrevia como “mul­her, negra, mãe e cria da favela”. Iden­ti­dades expres­sas com orgul­ho e que mar­caram a tra­jetória de 38 anos de vida, ded­i­ca­dos à defe­sa de mino­rias e de gru­pos social­mente oprim­i­dos.

Marielle nasceu em 27 de jul­ho de 1979, fil­ha de Marinete da Sil­va e de Antônio Fran­cis­co da Sil­va Neto. Mul­her negra, que cresceu no Con­jun­to Esper­ança, no Com­plexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro. Na ado­lescên­cia, alternou momen­tos em que tra­bal­hou com o pai, fre­quen­tou grupo jovem da Igre­ja Católi­ca e até foi dança­ri­na da equipe de funk Furacão 2000. Com 19 anos, tornou-se mãe de uma meni­na, Luyara San­tos. Em 2005, perdeu uma ami­ga, balea­da durante tiroteio na favela. A exper­iên­cia acir­rou o dese­jo de mil­i­tar em defe­sa dos dire­itos humanos.

“Ela ficou muito comovi­da e pas­sou muitos dias após esse assas­si­na­to falan­do que voltaria à Maré e mudaria aque­le lugar”, recor­da Anielle Fran­co, irmã de Marielle e min­is­tra da Igual­dade Racial. “Meus pais tra­bal­havam muito fora, então esse sen­so de respon­s­abil­i­dade chegou muito cedo. Ela era ami­ga de muitas pes­soas e, às vezes, vira­va a noite no tele­fone, ou fica­va pen­dura­da na grade de casa para con­ver­sar. Eu ten­ho essa lem­brança dela muito viva, do sor­risão, da brin­cadeira, do chegar com a voz alta”, acres­cen­ta.

“Esse foco nas mino­rias, de ter essa coisa social des­de nova, foi sem­pre pre­sente na vida dela. Por con­ta até da história da gente, né? Marielle assum­iu com­pro­mis­sos muito cedo. Em 1990, eu fiquei tra­bal­han­do fora do Rio de Janeiro e ela assum­iu total­mente a vida da Anielle e a casa”, lem­bra a mãe, Marinete Sil­va.

Vida acadêmica

Marielle viu o cam­in­ho int­elec­tu­al como uma pos­si­bil­i­dade para lutar con­tra as desigual­dades soci­ais. Tra­bal­hou como edu­cado­ra infan­til na Creche Albano Rosa, na Maré. Foi alu­na do Pré-Vestibu­lar Comu­nitário local. Ingres­sou e se for­mou em Ciên­cias Soci­ais, com bol­sa inte­gral, pela Pon­tif­í­cia Uni­ver­si­dade Católi­ca do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Em 2014, fez mestra­do em Admin­is­tração Públi­ca pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al Flu­mi­nense (UFF), com a dis­ser­tação “UPP: a redução da favela a três letras”. O tex­to trazia críti­cas à atu­ação das unidades de polí­cia na segu­rança públi­ca. Tra­bal­hou ain­da nas orga­ni­za­ções Brasil Foun­da­tion e no Cen­tro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm). Além dis­so, par­ticipou ati­va­mente de cole­tivos e movi­men­tos fem­i­nistas, negros e de fave­las.

“Con­heci a Marielle no pré-vestibu­lar comu­nitário da Maré. Nós duas está­va­mos ten­tan­do entrar na uni­ver­si­dade e a Marielle sem­pre foi muito estu­diosa. Ela que­ria, de fato, chegar à uni­ver­si­dade e con­stru­ir a vida. Tin­ha acaba­do de ter a Luyara. Então eu con­heci essa Marielle brin­cal­hona, a Marielle das fes­tas. E a gente começou a mil­i­tar jun­tas na Maré em defe­sa dos dire­itos humanos, jus­ta­mente numa época que a gente esta­va se enten­den­do como sujeitas políti­cas. Então, diante da políti­ca de segu­rança públi­ca, em que oper­ações poli­ci­ais deix­avam cor­pos de jovens pre­tos no chão, a gente pas­sa a mil­i­tar jun­tas”, con­ta Rena­ta Souza, dep­uta­da estad­ual no Rio de Janeiro (PSOL).

Militância

Em 2006, Marielle fez parte da equipe de cam­pan­ha na Maré que elegeu Marce­lo Freixo (PSOL) como dep­uta­do estad­ual. Na sequên­cia, foi nomea­da asses­so­ra par­la­men­tar dele. Depois, assum­iu a coor­de­nação da Comis­são de Defe­sa dos Dire­itos Humanos e Cidada­nia da Assem­bleia Leg­isla­ti­va do Rio de Janeiro (Alerj). A exper­iên­cia a enco­ra­jou a dar pas­sos maiores.

Em 2016, foi elei­ta vereado­ra da Câmara dos Dep­uta­dos do Rio pelo Psol, com 46.502 votos, para o manda­to 2017–2020. Na época, foi a quin­ta mais vota­da. Durante o manda­to, pre­sid­iu a Comis­são da Mul­her da Câmara. Em fevereiro de 2018 foi escol­hi­da como rela­to­ra de uma comis­são na Câmara que iria acom­pan­har a atu­ação das tropas na inter­venção fed­er­al no Rio.

“A Marielle rep­re­sen­ta­va uma sociedade que não que­ria mais ver a repetição da lóg­i­ca do machis­mo, do patri­ar­ca­do, da LGBT­fo­bia, do racis­mo estru­tur­al. Então, a eleição da Marielle é uma respos­ta social para um anseio cole­ti­vo”, afir­ma a viú­va, Môni­ca Bení­cio, com quem Marielle teve um rela­ciona­men­to de quase 10 anos.

“Eu me lem­bro da mudança que a Mari teve que faz­er na vida dela para essa eleição. Porque tudo que ela gosta­va de faz­er, ela deixou de faz­er para se can­di­datar. Foram muitos finais de sem­anas, muitos dias e noites que a gente fez cam­pan­ha em vários lugares, com várias pes­soas”, diz Anielle. “Mas ela esta­va cer­ta daqui­lo, e ela teria ido muito mais além. Ela tin­ha son­hos de ir muito mais além”, com­ple­ta.

Legado político

O assas­si­na­to inter­rompeu um tra­bal­ho ati­vo como vereado­ra. Segun­do a Câmara Munic­i­pal do Rio, em 13 meses de manda­to, Marielle se envolveu ofi­cial­mente em 118 proposições na casa, entre pro­je­tos, moções, requer­i­men­tos, ofí­cios e emen­das. Em destaque estão os pro­je­tos de lei: foram 17 ordinários – oito deles ini­ci­a­dos ape­nas por ela e oito em con­jun­to com out­ros vereadores – e um pela Comis­são de Defe­sa da Mul­her, da qual era pres­i­dente. Tam­bém hou­ve a apre­sen­tação de um pro­je­to de lei com­ple­men­tar.

Dos 19 pro­je­tos, três foram aprova­dos e viraram lei quan­do a vereado­ra ain­da esta­va vida: uma lei ordinária que esta­b­ele­ceu lim­ites nos con­tratos de gestão entre o municí­pio do Rio e as orga­ni­za­ções soci­ais da área de saúde; uma lei ordinária, em nome da Comis­são de Defe­sa da Mul­her, que esta­b­ele­ceu dire­trizes para cri­ar casas de par­to e atendi­men­to às grávi­das e puér­peras; e uma lei com­ple­men­tar que autor­i­zou o serviço de mototáx­is na cidade.

Out­ras nove leis foram aprovadas depois da morte da vereado­ra. Entre os temas, pre­dom­i­naram: dire­itos humanos, cidada­nia, saúde, edu­cação e dire­itos das mul­heres. A con­tinuidade dos pro­je­tos políti­cos con­fir­ma as palavras da própria Marielle, ditas em tom exal­ta­do durante sessão na Câmara poucos dias antes de ser assas­si­na­da, em 8 de março de 2018: “Não serei inter­romp­i­da”.

“O ativis­mo dela como mul­her, o ativis­mo dela como coor­de­nado­ra dos dire­itos humanos por mais de 10 anos, já dizia o quan­to ela era impor­tante na vida de cada um e ela pas­sou a ser um ícone da história”, enfa­ti­za a mãe, Marinete. “Marielle vai ser sim um ícone além do tem­po. E vamos resi­s­tir. A família resiste, o Insti­tu­to Marielle resiste, as mul­heres negras resistem”, diz.

Edição: Heloisa Cristal­do

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