...
segunda-feira ,9 dezembro 2024
Home / Direitos Humanos / Murais de luta e esperança: a arte que resistiu à ditadura chilena

Murais de luta e esperança: a arte que resistiu à ditadura chilena

Repro­dução: © Bib­liote­ca Nacional de Chile

Pinturas em espaços públicos mobilizaram jovens por igualdade


Pub­li­ca­do em 11/09/2023 — 07:12 Por Rafael Car­doso — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro
Atu­al­iza­do em 11/09/2023 — 07:27

ouvir:

“Pin­cel, tin­ta e gar­ra”. A cam­pan­ha nas redes soci­ais con­vo­ca jovens de todo o país para “sair às ruas e enchê-las de memória e cores”. A mis­são é pin­tar 50 muros no Chile, des­de o extremo-norte da região de Ari­ca até o extremo-sul de Mag­a­l­lanes, para lem­brar os 50 anos do golpe mil­i­tar que encer­rou o gov­er­no do social­ista Sal­vador Allende e ini­ciou a ditadu­ra lid­er­a­da por Augus­to Pinochet. 

Quem está a frente é a estu­dante de artes visuais Javiera Rodriguez-Peña, da Briga­da Ramona Par­ra, um cole­ti­vo de jovens ded­i­ca­dos a espal­har pelo país men­sagens em defe­sa dos dire­itos soci­ais e políti­cos.

“Quer­e­mos através da arte pop­u­lar cap­tar as deman­das que bus­camos des­de a ditadu­ra mil­i­tar: ver­dade, justiça e reparação. Bus­camos nos­sos famil­iares e cole­gas desa­pare­ci­dos, o fim do nega­cionis­mo, e atrair a pop­u­lação com estas impor­tantes reivin­di­cações que não con­seguimos alcançar 50 anos depois da ditadu­ra cívi­co-mil­i­tar”, diz Javiera, em entre­vista à Agên­cia Brasil.

As brigadas mural­is­tas são uma tradição que remete aos anos 1960 e 1970, quan­do era comum ver pare­des pin­tadas por todo o Chile com tex­tos e ima­gens que expres­savam o son­ho de um novo mun­do, sem injustiças e desigual­dades. Tão logo Pinochet tomou o poder, mural­is­tas foram persegui­dos. Em um primeiro momen­to, as pare­des foram man­chadas com o sangue de mural­is­tas fuzi­la­dos em frente a elas. Depois, os desen­hos foram sub­sti­tuí­dos por pare­des bran­cas opacas, pin­tadas por mil­itares. Os que fugi­ram dos ataques tiver­am de escol­her entre a clan­des­tinidade ou o exílio.

Chile-50 anos do Golpe - Murais de luta e esperança: a arte que resistiu à ditadura chilena. Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Repro­dução: Brigadas mural­is­tas bus­cav­am a trans­for­mação social a par­tir da mobi­liza­ção pop­u­lar. Foto: Bib­liote­ca Nacional de Chile

Os jovens mural­is­tas eram parte de uma dinâmi­ca nacional de pro­pa­gan­da políti­ca, que envolvia difer­entes orga­ni­za­ções na dis­pu­ta por influên­cia sobre a pop­u­lação.

“O gov­er­no Allende teve de enfrentar a oposição sem cen­surá-la. Teve o tem­po todo que dis­putar espaço e vis­i­bil­i­dade frente a uma impren­sa muito artic­u­la­da e desleal, muitas vezes anti­democráti­ca, golpista e clas­sista. Além de inve­stir na impren­sa estatal e em órgãos alter­na­tivos, par­tidos da coal­iza­ção e out­ros atores soci­ais inve­sti­ram em mecan­is­mos que envolvi­am cria­tivi­dade e mobi­liza­ção do cenário públi­co. Uma for­ma de se difer­en­ciar dessa impren­sa e pro­pa­gan­da de oposição, que tin­ha mais recur­sos econômi­cos e mais espaço”, expli­ca a his­to­ri­ado­ra Carine Dalmás.

Origem dos movimentos

As brigadas mural­is­tas sur­gi­ram na déca­da de 1960. As pio­neiras e mais con­heci­das foram a Briga­da Ramona Par­ra (BRP), cri­a­da por inte­grantes das Juven­tudes Comu­nistas do Chile (JJCC), e a Briga­da Elmo Catalán (BEC), lig­a­da à Fed­er­ação da Juven­tude Social­ista (FJS). Entre 1970 e 1973, ess­es gru­pos viver­am o auge no Chile, quan­do o país era gov­er­na­do pela col­i­gação de esquer­da “Unidade Pop­u­lar”, do pres­i­dente Sal­vador Allende.

O nome “briga­da” era inspi­ra­do em orga­ni­za­ções cole­ti­vas da União Soviéti­ca, que ado­tavam o ter­mo nos anos pos­te­ri­ores à Rev­olução de 1917. Havia “brigadas” de músi­cos, de escritores, de artis­tas, entre out­ros, no sen­ti­do de pen­sar os tra­bal­hadores como com­bat­entes mil­itares. Já o mural­is­mo tin­ha como refer­ên­cia o movi­men­to mural­ista mex­i­cano, que prop­un­ha uma social­iza­ção da arte, em oposição ao indi­vid­u­al­is­mo bur­guês e às pin­turas tidas como elit­is­tas. Não pre­tendia ter a mes­ma sofisti­cação estéti­ca mex­i­cana, mas defendia igual­mente a artic­u­lação entre o lúdi­co e o políti­co.

A BRP surgiu nas cam­pan­has pres­i­den­ci­ais de 1963–1964 e hom­e­nagea­va Ramona Par­ra, a primeira “már­tir” das JJCC. A jovem de 19 anos mor­reu em 1946, durante con­fron­to com poli­ci­ais em uma man­i­fes­tação da Con­fed­er­ação de Tra­bal­hadores do Chile (CTCH). Agiam sob o lema “Pintare­mos até o céu, até vencer­mos!”. Enten­di­am que devi­am edu­car o povo por meio de uma arte de mas­sa e mobi­lizar a sociedade em nome de um ide­al social­ista. As pin­turas cos­tu­mavam ter, em destaque, sím­bo­los do Par­tido Comu­nista (a foice e o marte­lo) e out­ras que rep­re­sen­tavam a paz, como pom­bas, flo­res e mãos aber­tas. Eram indica­tivos da pro­pos­ta chile­na de alcançar o social­is­mo por uma tran­sição democráti­ca e pací­fi­ca.

A BEC surgiu em 1969 como Briga­da Cen­tral, mas um ano depois mudou o nome para hom­e­nagear o guer­ril­heiro chileno Elmo Catalán, que foi assas­si­na­do na Bolívia depois de lutar ao lado de Che Gue­vara. A briga­da foi dire­ta­mente influ­en­ci­a­da pelo mod­e­lo social­ista de Cuba e ado­ta­va, com fre­quên­cia, ima­gens a favor de uma rev­olução arma­da. Eram val­ores, por­tan­to, difer­entes dos pro­pos­tos pelo gov­er­no Allende.

Ape­sar das difer­enças, as brigadas tin­ham em comum a bus­ca pela trans­for­mação social a par­tir da mobi­liza­ção pop­u­lar.

“Era comum que os mem­bros dessas brigadas fos­sem pin­tar vesti­dos de operários, porque se diziam operários da cul­tura. Na hora de pin­tar, ain­da que ten­ham desen­volvi­do as próprias téc­ni­cas, se pre­ocu­pavam em aplicá-las com a par­tic­i­pação de transe­untes. As pes­soas nas ruas pode­ri­am opinar e até pin­tar jun­tos se quisessem. Havia esse lado da inte­gração. As brigadas geral­mente iam para lugares de mui­ta vis­i­bil­i­dade ou para bair­ros onde se bus­ca­va uma maior adesão da pop­u­lação ao pro­je­to políti­co”, expli­ca Carine Dalmás.

Golpe, resistência e exílio

De for­ma quase ime­di­a­ta, logo depois do golpe mil­i­tar de 1973, o gov­er­no dita­to­r­i­al mobi­li­zou agentes para aniquilar o movi­men­to mural­ista. Durante muitos anos, ess­es gru­pos tiver­am de se escon­der e inter­romper as pin­turas. Recor­reram a meios alter­na­tivos de comu­ni­cação como pan­fle­tos, ban­ners e posters, que eram pro­duzi­dos e veic­u­la­dos de for­ma clan­des­ti­na pelo país. Aque­les que con­seguiram fugir para o exte­ri­or, levaram com eles a tradição dos murais. A Briga­da Ramona Par­ra foi uma das que teve mem­bros atuan­do em cidades da Europa. De longe, denun­ci­avam a vio­lên­cia e o autori­taris­mo do novo gov­er­no chileno.

Em 1979, com os primeiros sinais de con­tes­tação mais dire­ta ao regime mil­i­tar por meio de greves e protestos, alguns murais voltaram a ser pin­ta­dos. No iní­cio da déca­da de 1980, com a recessão econômi­ca e taxas altas de desem­prego, gru­pos orga­ni­za­dos de oposição usaram os muros para apre­sen­tar deman­das por mel­ho­rias e para criticar o gov­er­no. Não eram nec­es­sari­a­mente lig­a­dos às brigadas, mas se inspi­ravam no lega­do deix­a­do por elas.

Renascimento muralista

Com o fim da ditadu­ra mil­i­tar em 1990, tan­to a Briga­da Ramona Par­ra quan­to a Briga­da Elmo Catalán deixaram a clan­des­tinidade e voltaram a pin­tar, sem o risco de serem mor­tos, muros pelas ruas do Chile. Líderes anti­gos, que sobre­viver­am ao perío­do de perseguições e assas­si­natos, par­tic­i­pam até hoje de pro­je­tos lig­a­dos ao res­gate da memória do perío­do. O que inclui reg­is­trar em livros ou acer­vos dig­i­tais fotografias dos murais apa­ga­dos.

Para a his­to­ri­ado­ra Carine Dalmás, Pinochet foi muito estratégi­co ao destru­ir essa “estéti­ca da ale­gria” no pas­sa­do. Mas exem­p­los recentes, como as man­i­fes­tações de 2019, mostraram um renasci­men­to do mural­is­mo como instru­men­to de luta políti­ca.

“O que me chamou a atenção ago­ra foi a neces­si­dade de res­gatar uma memória e uma utopia. Tan­to que o Sal­vador Allende aparece nas ima­gens com uma fre­quên­cia talvez até maior do que acon­te­cia naque­la pro­pa­gan­da dos anos 1970. E a repro­dução dessas práti­cas e téc­ni­cas mostra que foram exper­iên­cias mar­cantes no pas­sa­do. Mes­mo com toda a vio­lên­cia do golpe e com 17 anos de ditadu­ra ten­tan­do apa­gar qual­quer vestí­gio desse perío­do sis­tem­ati­ca­mente, elas per­si­s­ti­ram”.

Chile-50 anos do Golpe - Murais de luta e esperança: a arte que resistiu à ditadura chilena. Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Jovens de hoje se inspiram nas brigadas muralistas que resistiram à ditadura chilena. Foto: Biblioteca Nacional de Chile

Nas últi­mas décadas, as fileiras das brigadas foram ren­o­vadas com a adesão de out­ros jovens. Nos muros, pre­dom­i­nam ago­ra men­sagens em defe­sa tan­to dos dire­itos dos tra­bal­hadores, como de gru­pos soci­ais especí­fi­cos, como os indí­ge­nas e as mul­heres. Em comum com o pas­sa­do, a utopia de uma sociedade livre de hier­ar­quias, desigual­dades e explo­rações.

“Nos­so foco é imprim­ir nas ruas as expressões, a cul­tura e a pro­pa­gan­da políti­ca. As temáti­cas que dis­cu­ti­mos nos muros vêm das deman­das da classe pop­u­lar e da lin­ha políti­ca que seguem as Juven­tudes Comu­nistas do Chile. Em ger­al, aque­las que defen­d­em mel­hor qual­i­dade de vida para os mais pobres, como uma infân­cia digna, luta por mora­dia, edu­cação gra­tui­ta e de qual­i­dade, aces­so uni­ver­sal à saúde e os dire­itos tra­bal­his­tas”, expli­ca a mural­ista Javiera Rodriguez-Peña.

Edição: Car­oli­na Pimentel

LOGO AG BRASIL

Você pode Gostar de:

Museu Histórico Nacional fecha para modernização do sistema elétrico

Obras devem ser concluídas em outubro de 2025 Dou­glas Cor­rêa – Repórter da Agên­cia Brasil …