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Norma que considerou publicidade infantil abusiva completa 10 anos

Resolução 163 do Conanda limitou propagandas nos meios tradicionais

Ake­mi Nita­hara — Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 31/10/2024 — 08:35
Rio de Janeiro
Brasília-DF, 27/03/2024 - Na semana da Páscoa as lojas oferecem diversas oções de ovos com brinquedos para atrair os clientes. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Repro­dução: © Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

“A gente tin­ha uma cul­tura maior de assi­s­tir tele­visão, tin­ha os pro­gra­mas infan­tis, que tin­ham os desen­hos ani­ma­dos, e os inter­va­l­os eram um tem­po grande e tin­ha bas­tante pub­li­ci­dade. Me lem­bro de ter anún­cio de bonecas e brin­que­dos, e mes­mo nos pro­gra­mas infan­tis havia tam­bém essa pub­li­ci­dade de alguns brin­que­dos, né, de for­ma bem inten­sa. Ain­da lem­bro de alguns jin­gles, Lá lé lí ló Lu Pati­nado­ra, Big Trem, Danon­in­ho dá”. 

“O menin­in­ho do cig­a­r­ro, que tin­ha um choco­late em for­ma de cig­a­r­ro, do com­pre Batom, que era tipo de hip­no­ti­zar a cri­ança. Par­malat, que era a pro­pa­gan­da com as cri­anc­in­has vesti­das de bich­in­hos, eu quero uma Calói. E daque­les jogu­in­hos, cara-a-cara, dos brin­que­dos do Gugu, do Domin­go Legal, dos jogos que ele fazia. Lem­bro de Coman­dos em Ação, era muito pro­pa­gan­da de brin­que­do. E de ali­men­tos proces­sa­dos, Danon­in­ho, Tang”.

Após 10 anos da Res­olução 163 do Con­sel­ho Nacional dos Dire­itos da Cri­ança e do Ado­les­cente (Conan­da), essas cenas descritas pela antropólo­ga Rena­ta de Sá Gonçalves, 47 anos, e pelo pro­fes­sor uni­ver­sitário Thi­a­go Sil­va Fre­itas Oliveira, 42 anos, não são mais vis­tas na tele­visão. Cri­anças nos anos 1980 e começo dos 1990, os dois cresce­r­am em uma época em que era muito comum o que ficou con­heci­do como pub­li­ci­dade infan­til abu­si­va, com os anún­cios que se pro­lif­er­avam espe­cial­mente em out­ubro, mês das cri­anças, e em dezem­bro, antes do Natal.

A nor­ma, que com­ple­tou uma déca­da em março deste ano, “dis­põe sobre a abu­sivi­dade do dire­ciona­men­to de pub­li­ci­dade e de comu­ni­cação mer­cadológ­i­ca à cri­ança e ao ado­les­cente” e, na práti­ca, retirou as pro­pa­gan­das dirigi­das ao públi­co infan­til dos meios de comu­ni­cação tradi­cionais.

Rio de Janeiro (RJ) 30/10/2024 - A antropóloga Renata Gonçalves e sua filha Rosa, de 10 anos. Foto: Renata Gonçalves/Arquivo Pessoal
Repro­dução: A antropólo­ga Rena­ta Gonçalves e a fil­ha Rosa, de 10 anos. Foto: Rena­ta Gonçalves/Arquivo Pes­soal

As cri­anças que nasce­r­am com a Res­olução 163 em vig­or sabem o que são os com­er­ci­ais, mas têm uma lem­brança difer­ente de seus pais, como Rosa, de 10 anos, fil­ha de Rena­ta.

“É assim, quan­do eu tô ven­do uma coisa na TV e aí aparece uma pro­pa­gan­da. É tipo, se você tra­bal­ha em uma far­má­cia e quer mostrar um remé­dio pras pes­soas, aí você colo­ca pras pes­soas saberem e tal, eu acho”.

Théo, 10 anos, fil­ho de Thi­a­go, vê anún­cios nos jogos de celu­lar e nos canais de desen­ho ani­ma­do.

“Pro­pa­gan­da é o negó­cio cha­to que aparece na hora que você está jogan­do no celu­lar. Tem pro­pa­gan­da de com­pra e de out­ros jogos. Na tele­visão, eu vejo Nick­elodeon, Dis­ney e Net­flix, não tem pro­pa­gan­da de jogo, mas tem tipo de far­má­cia, shop­ping, essas coisas”.

 

Rio de Janeiro (RJ) 30/10/2024 - O professor Thiago Oliveira e seu filho Théo, de 10 anos. Foto: Thiago Oliveira/Arquivo pessoal
Repro­dução: O pro­fes­sor Thi­a­go Oliveira e o fil­ho Théo, de 10 anos. Foto: Thi­a­go Oliveira/Arquivo pes­soal

Questão ética

O pro­fes­sor de comu­ni­cação da Uni­ver­si­dade Fed­er­al Flu­mi­nense (UFF), Adil­son Cabral, que min­is­tra a dis­ci­plina de éti­ca e leg­is­lação pub­lic­itária, expli­ca que o tema esta­va em dis­cussão na sociedade no iní­cio da déca­da pas­sa­da. Entre as insti­tu­ições que fiz­er­am cam­pan­has pelo fim da pub­li­ci­dade abu­si­va dirigi­da para cri­anças estão o Insti­tu­to AlanaoCon­sel­ho Fed­er­al de Psi­colo­giae oPle­nar­in­ho, pro­gra­ma educa­ti­vo da Câmara dos Dep­uta­dos.

“O que está por trás da res­olução é jus­ta­mente não com­preen­der a cri­ança como definido­ra da com­pra, né? Então, é muito sedu­tor colo­car uma cri­ança numa pub­li­ci­dade, num filme pub­lic­itário, falan­do, cheio de ener­gia e tal, para que os pais se mobi­lizem e fiquem sen­síveis ao ape­lo da cri­ança e tam­bém as cri­anças pres­sionem, de uma cer­ta for­ma, os pais, para com­prar o que está sendo apre­sen­ta­do no com­er­cial, desta­ca Cabral.

Para a atu­al pres­i­den­ta do Conan­da, Mari­na de Pol Poni­wa, psicólo­ga e tam­bém con­sel­heira do Con­sel­ho Fed­er­al de Psi­colo­gia, a Res­olução 163 foi moti­va­da pelo con­tex­to social históri­co e políti­co daque­le momen­to.

“Imag­i­na que na época eram inten­sas pro­pa­gan­das como ‘com­pre Batom, com­pre Batom, com­pre Batom’. Esse é um dos exem­p­los para citar o quan­to se deter­mi­na­va o con­sumo de deter­mi­na­dos pro­du­tos, e pro­du­tos espe­cial­mente para cri­anças e ado­les­centes. E com o obje­ti­vo mes­mo de per­sua­di-las para que con­sumis­sem deter­mi­nadas coisas”.

Poni­wa desta­ca que as pro­pa­gan­das abu­si­vas podi­am ger­ar prob­le­mas soci­ais e de saúde nas cri­anças e ado­les­centes, como ansiedade, frus­tração, vio­lên­cia e obesi­dade infan­til, pelo incen­ti­vo ao con­sumo de ali­men­tos ultra­proces­sa­dos e super calóri­cos.

“Com toda certeza, ess­es proces­sos, além de enganosos, tam­bém são danosos e colo­cam cri­anças e ado­les­centes em situ­ação de despro­teção social, por tam­bém enganá-las e elas terem difi­cul­dade de se ori­en­tar a par­tir do que é o mel­hor ou não para elas, já que elas não têm uma autono­mia ple­na sobre os proces­sos de decisão”.

Repro­dução: Cam­in­hos da Reportagem | Pub­li­ci­dade Infan­til

A indús­tria dos brin­que­dos admi­tia que a ideia da pub­li­ci­dade infan­til era jus­ta­mente seduzir a cri­ança para que ela fos­se a definido­ra da com­pra. Em um episó­dio do Cam­in­hos da Reportagem de 2011 (vídeo aci­ma) , pro­gra­ma da TV Brasil, o pres­i­dente da Asso­ci­ação Brasileira dos Fab­ri­cantes de Brin­que­dos (Abrinq), Syné­sio Batista, afir­ma que o alvo das pro­pa­gan­das do setor era o públi­co infan­til.

“A cri­ança é o indi­ví­duo que mais nego­cia na família brasileira, é o maior nego­ciante na família brasileira. Nós temos aqui nesse país 57 mil­hões de cri­anças no nos­so tar­get de até 12 anos. Vinte mil­hões de cri­anças, eu não con­si­go vender nada. Mas 30 mil­hões de cri­anças deci­dem o que querem. Nós não faze­mos pro­pa­gan­da para o pai e para a mãe, porque não é ele que resolve. É a cri­ança que diz, eu quero isto”.

A reportagem procurou a Abrinq, que não pôde gravar entre­vista, mas se man­i­festou por meio da asses­so­ria de impren­sa. Em nota, infor­mou que “a posição da Abrinq é respeitar o que foi deter­mi­na­do e zelar pelas cri­anças”.

O pres­i­dente do Con­sel­ho daAsso­ci­ação Brasileira de Licen­ci­a­men­to de Mar­cas e Per­son­agensLicens­ing Inter­na­tion­al (Abral), Rodri­go Pai­va, disse que a asso­ci­ação não foi con­vi­da­da a par­tic­i­par das dis­cussões em 2014, que levaram ao fim da pub­li­ci­dade dirigi­da para as cri­anças, e foi sur­preen­di­da com a nor­ma.

“A Abral é total­mente con­tra qual­quer tipo de pro­pa­gan­da enganosa e abu­si­va. O que nós não con­cor­damos na Res­olução 163 é a ten­ta­ti­va de tip­i­ficar a mera pre­sença de exces­so de cores, tril­ha sono­ra infan­til, a sim­ples pre­sença de cri­anças, per­son­al­i­dades recon­heci­das pelo uni­ver­so infan­til e a própria pre­sença de per­son­agens como um ato de abu­sivi­dade”.

De acor­do com ele, o setor tem suas próprias reg­u­la­men­tações para coibir a abu­sivi­dade nos com­er­ci­ais.

“O próprio mer­ca­do, seguin­do as ori­en­tações do Códi­go de Autor­reg­u­la­men­tação Pub­lic­itária, cri­a­do na déca­da de 1970, já preser­va o cuida­do de não estim­u­lar o con­sumo exces­si­vo, o coman­do de com­pra, ver­bos no imper­a­ti­vo são proibidos, não vin­cu­lar o con­sumo de qual­quer pro­du­to a algum tipo de supe­ri­or­i­dade, o respeito aos pais e a clara iden­ti­fi­cação do con­teú­do pub­lic­itário”.

Mudanças

Movimento de vendas de brinquedos para o Dia das Crianças, comércio varejista nas ruas do Polo Saara, centro do Rio de Janeiro.
Repro­dução: Movi­men­to de ven­das de brin­que­dos para o Dia das Cri­anças, comér­cio vare­jista nas ruas do Polo Saara, cen­tro do Rio de Janeiro. — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

A pres­i­dente do Conan­da, Mari­na de Pol Poni­wa, desta­ca que a Res­olução 163 foi um mar­co históri­co e, mes­mo sem poder de lei para proibir as pro­pa­gan­das, tem sido usa­da pelo poder públi­co para coibir a abu­sivi­dade.

“Todas as res­oluções do Conan­da são vin­cu­lantes, não têm o poder de lei, mas ori­en­tam e dão dire­trizes para decisões, por exem­p­lo, do Poder Judi­ciário, para a atu­ação do Min­istério Públi­co e dos defen­sores públi­cos. Então, essa res­olução é uti­liza­da até hoje nas decisões judi­ci­ais ou para ori­en­tar mes­mo o sis­tema de garan­tia de dire­itos e na pro­teção das cri­anças e ado­les­centes nos ter­ritórios reais e nos ter­ritórios vir­tu­ais”.

Para Rena­ta, o mod­e­lo de tele­visão tam­bém mudou, reduzin­do a exposição das cri­anças aos inter­va­l­os com­er­ci­ais. “A Rosa, por exem­p­lo, já não assiste pro­gra­ma infan­til com pro­pa­gan­da, já vai dirigi­do para os episó­dios em especí­fi­co, então ela não fica nesse ciclo de, obri­ga­to­ri­a­mente, ter que aces­sar uma pub­li­ci­dade na TV”.

Porém, ela desta­ca que o mer­ca­do de pro­du­tos infan­tis se adap­tou aos novos tem­pos. “Mas eu acho que essa ger­ação é mais asso­la­da por pro­pa­gan­da do que é nos­sa. Porque tudo no mun­do, de algu­ma for­ma, tá volta­do para isso, né? Você vai ao cin­e­ma, tem o copo da pipoca do tema do cin­e­ma, aí tem um brin­qued­in­ho que vai ser ven­di­do não sei onde, aí o chinelin­ho vem com o tema do filme. Então tem um out­ro cir­cuito de pub­li­ci­dade que é tão inten­so quan­to, talvez até mais, né? Porque é muito mais capi­lar­iza­do”.

Thi­a­go admite que, influ­en­ci­a­do pelas pro­pa­gan­das, sen­tiu fal­ta de mui­ta coisa na infân­cia. “Tem uma difer­ença hoje que, finan­ceira­mente, eu con­si­go dar mais coisas para os meus fil­hos, do que na época do meu pai. Eu acho que de cer­ta maneira, isso ger­ou algum trau­ma em mim, de não ter con­segui­do mui­ta coisa que eu quis quan­do era cri­ança, mas eu sei que a pro­pa­gan­da tin­ha muito desse tra­bal­ho”.

Atual­mente, ele percebe a difer­ença nos dese­jos e pedi­dos infan­tis. “Chega fim de ano, a difer­ença do meu Natal para o Natal deles, a quan­ti­dade de pro­pa­gan­da que tin­ha, e aí você fica­va queren­do um, out­ro, três, qua­tro, cin­co, vários brin­que­dos ao mes­mo tem­po. Ago­ra, meus fil­hos têm uma coisa só que eles pen­sam que querem, só. Tem essa difer­ença, real­mente. Óbvio que eu estou falan­do de uma bol­ha social econômi­ca especí­fi­ca, né?”

O pres­i­dente do Con­sel­ho da Abral, Rodri­go Pai­va, expli­ca que a enti­dade tra­bal­ha com a con­sci­en­ti­za­ção dos asso­ci­a­dos e divul­gacar­til­has sobre as mel­hores práti­cas de pub­li­ci­dade para o públi­co infan­til, inclu­sive na inter­net e com a con­tratação de influ­en­ci­adores dig­i­tais.

“De maneira proa­t­i­va, capaci­ta­mos a con­hecerem todas as for­mas cor­re­tas de se comu­nicar com a cri­ança de for­ma respon­sáv­el. A Abral criou, inclu­sive, mil­hares de exem­plares de car­til­has, de for­ma físi­ca e dig­i­tal, reforçan­do as ori­en­tações sobre a neces­si­dade éti­ca e respon­sáv­el na comu­ni­cação, inclu­sive no ambi­ente dig­i­tal. Desen­volve­mos, em datas como o Dia das Cri­anças e Natal, cam­pan­has de con­sci­en­ti­za­ção com o apoio de mais de 30 enti­dades do mer­ca­do, visan­do uma comu­ni­cação ade­qua­da”.

Para o pro­fes­sor de éti­ca pub­lic­itária Adil­son Cabral, ain­da é pre­ciso avançar para faz­er do ambi­ente pub­lic­itário um local mais éti­co, não só nos pro­du­tos volta­dos para as cri­anças.

“O pon­to de par­ti­da que eu tra­bal­ho na dis­ci­plina é com­preen­der que existe uma cria­tivi­dade respon­sáv­el pos­sív­el para se lidar com a inevitabil­i­dade da pub­li­ci­dade. Ou seja, em qual­quer con­tex­to, con­sideran­do que exis­tem pro­du­tos difer­entes e vari­a­dos, é necessário ter uma pub­li­ci­dade que esta­beleça difer­enças em relação ao que é a qual­i­dade, ao que é a car­ac­terís­ti­ca de um em relação ao out­ro pro­du­to. Então, a pub­li­ci­dade não deixaria de exi­s­tir, mas ela pre­cisa se assumir numa per­spec­ti­va de respon­s­abil­i­dade social que a fal­ta de freio do mer­ca­do não vem pro­por­cio­nan­do”.

Podcast

Brasília (DF), 21.08.2024 - Arte para a matéria Crianças Sabidas - Eleições 2024. Arte/Agência Brasil
Repro­dução: Radioagên­cia Nacional lança pod­cast Cri­anças Sabidas sobre pub­li­ci­dade infan­til — Arte/Agência Brasil

Con­fi­ra na Radioagên­cia Nacional o pod­cast Cri­anças Sabidas sobre pub­li­ci­dade infan­til. De for­ma lúdi­ca, os con­teú­dos trazem infor­mações para o públi­co infan­til com trata­men­to jor­nalís­ti­co.

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