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O desafio para jovens não adotados que completam 18 anos

São Paulo - Adriana Fernandes, Jessica Dines e Lauana Akutsu desenvolvem a autonomia, dividem as atividades domésticas cotidianas e o gerenciamento de despesas na República Jovem Maria Maria, em Itaquera.
© Rove­na Rosa/Agência Brasil (Repro­dução)

Nessa idade, eles têm que deixar abrigos, e muitos não têm onde ficar


Pub­li­ca­do em 07/03/2021 — 08:00 Por Lud­mil­la Souza – Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

A jovem Laua­na Maria Akut­su, de 18 anos, que está moran­do há 15 dias em uma repúbli­ca jovem no bair­ro Ita­que­ra, em São Paulo, morou em abri­gos des­de os 3 anos.

“Nasci em uma família um pouco prob­lemáti­ca, min­ha mãe me largou na mater­nidade quan­do era bebê. Fiquei com um pouco com a min­ha avó e depois voltei. Des­de os 3 anos mor­ei em abri­gos”, con­ta a moça, que hoje tra­bal­ha na parte admin­is­tra­ti­va do São Paulo Fute­bol Clube.

Lau­na lem­bra que os anos pas­sa­dos nos serviços de acol­hi­men­to não foram fáceis. “Pas­sei por um abri­go em que eu apan­ha­va bas­tante das meni­nas de lá. Depois eu mor­ei num abri­go lá do Paraná, aí voltei para São Paulo para morar com a min­ha avó, mas, ela teve um AVC [aci­dente vas­cu­lar cere­bral] e acabou fale­cen­do. Aí eu fui para um abri­go de novo. Foi difí­cil, porque eu pre­cisa­va do car­in­ho da min­ha mãe, do meu pai, só que eu não tin­ha. Eu cresci revolta­da por con­ta dis­so e sem­pre achei que eu era o prob­le­ma de não ter um pai e mãe per­to de mim.”

Ela diz que sem­pre quis enten­der por que foi aban­don­a­da pela mãe, mas que hoje acei­ta mel­hor o fato. “Que­ria enten­der o moti­vo pelo qual min­ha mãe tin­ha me aban­don­a­do, de não ter se impor­ta­do comi­go, então foi meio difí­cil para mim pas­sar ess­es anos no abri­go, mas eu apren­di que não tem o que faz­er, eu nasci numa família prob­lemáti­ca e aqui estou eu.”

Dese­jo comum das cri­anças dos abri­gos, ela tam­bém que­ria ter sido ado­ta­da. “Nos anos finais no abri­go, eu me sen­ti um pouco deprim­i­da porque esta­va ven­do meus ami­gos indo para adoção e me sen­tia muito triste porque que­ria ter uma família per­to de mim, que­ria poder sen­tir o amor de mãe, de pai, que­ria ter essa sen­sação de alguém para me cuidar e gostar de mim e de me apoiar nos meus son­hos”.

Hoje, ela está esper­ançosa, man­tém os son­hos e pre­tende batal­har ain­da pela guar­da do irmão mais novo. “Ago­ra que eu ten­ho 18 anos plane­jo ter­mi­nar o ensi­no médio, faz­er um cur­so téc­ni­co de moda, tra­bal­har como mod­e­lo fotográ­fi­ca e faz­er uma fac­ul­dade de estil­is­mo, porque são duas coisas de que eu gos­to muito. Tam­bém quero con­seguir faz­er uma cas­in­ha para poder pegar a guar­da do meu irmão que está lá no abri­go.”

República Jovem

Segun­do Laua­na, a Repúbli­ca Jovem Maria Maria é um bom lugar para viv­er. “É bas­tante espaçoso, are­ja­do. Ten­ho muito o que apren­der aqui den­tro, muito o que desen­volver, estou gostan­do de morar na Repúbli­ca Jovem porque dá mais opor­tu­nidade, mais autono­mia. Estou gostan­do”, afir­ma a jovem.

As repúbli­cas jovens são um serviço admin­istra­do pela Sec­re­taria Munic­i­pal de Assistên­cia e Desen­volvi­men­to Social, por meio de parce­rias com orga­ni­za­ções da sociedade civ­il (OSCs). A repúbli­ca em que Laua­na mora tem capaci­dade para acol­her até seis jovens mul­heres, que poderão ser encam­in­hadas a out­ros serviços, pro­gra­mas e bene­fí­cios da rede socioas­sis­ten­cial e demais políti­cas públi­cas.

A unidade é des­ti­na­da a aten­der jovens com idade aci­ma de 18 anos que foram aban­don­adas por suas famílias ou que têm vín­cu­los frag­iliza­dos, estão em situ­ação de vul­ner­a­bil­i­dade social e sem condições de mora­dia. As acol­hi­das devem ter autono­mia finan­ceira para con­tribuir com as despe­sas da casa, onde podem per­manecer até os 21 anos.

Na repúbli­ca, Laua­na e as out­ras morado­ras têm acom­pan­hamen­to de um profis­sion­al para gestão cole­ti­va da mora­dia, apoio na con­strução de regras de con­vívio, definição da for­ma de par­tic­i­pação nas ativi­dades domés­ti­cas cotid­i­anas e geren­ci­a­men­to de despe­sas.

São Paulo - Lauana Akutsu, Adriana Fernandes e Jessica Dines desenvolvem a autonomia, dividem as atividades domésticas cotidianas e o gerenciamento de despesas na República Jovem Maria Maria, em Itaquera.
Laua­na, Adri­ana e Jes­si­ca bus­cam autono­mia, divi­dem serviços domés­ti­cas e geren­ci­am despe­sas — Rove­na Rosa/Agência Brasil  (Repro­dução)

“Serviços como ess­es são impor­tantes para que os jovens ten­ham autono­mia e sejam pro­tag­o­nistas de sua história, pois a repúbli­ca tem out­ra dinâmi­ca de acol­hi­men­to, com mais liber­dade e respon­s­abil­i­dade, para que se tornem vence­dores”, desta­ca a secretária munic­i­pal de Assistên­cia e Desen­volvi­men­to Social, Berenice Gian­nel­la.

Exis­tem sete repúbli­cas jovens em São Paulo, local­izadas em Ermeli­no Mataraz­zo, Casa Verde, Ari­can­du­va, Lapa, Pir­i­tu­ba, Pen­ha e Ita­que­ra, as duas últi­mas inau­gu­radas em fevereiro deste ano. No total, são disponi­bi­lizadas 90 vagas.

Apadrinhamento afetivo

Matheus Gomes, de 20 anos, tam­bém pas­sou por vários serviços de acol­hi­men­to des­de os 2 anos de idade, jun­to com os irmãos. Até que em 2012, já com 12 anos, ele con­heceu o edu­cador social André Luis Oliveira da Sil­va, que mais tarde se tornou padrin­ho dele. “Quan­do con­heci o André, ele era edu­cador do abri­go e assim que a gente se mudou de lá o André acom­pan­hou a gente, aju­dou nas lições de esco­la e algu­mas out­ras coisas”, lem­bra o rapaz.

“Eu tra­bal­ha­va em um serviço de acol­hi­men­to, e ele chegou lá com os irmãos mais novos. Fomos nos con­hecen­do e, depois de uns dois anos, eles foram trans­feri­dos de abri­go. Eu e mais três vol­un­tárias que fre­quen­tavam o abri­go decidi­mos que iríamos acom­pan­há-los. As três con­seguiram for­malizar um pedi­do no Judi­ciário e tornaram-se madrin­has afe­ti­vas. Ape­sar de não ter par­tic­i­pa­do dessa ação no Judi­ciário, con­tin­uei acom­pan­han­do os meni­nos. Tornei-me um padrin­ho afe­ti­vo tam­bém, par­tic­i­pan­do de momen­tos úni­cos com eles, como aniver­sários, fes­tas de final de ano e pas­seios”, detal­ha André.

Entre 2012 e 2018, Matheus e os irmãos moraram em qua­tro abri­gos difer­entes, sendo o últi­mo o SOS Aldeias Infan­tis, onde ele pas­sou cer­ca de dois anos. Quan­do fez 17, começou um tra­bal­ho de for­t­alecê-lo para a saí­da, descreve o edu­cador social. “Mas acabou que não foi muito efi­ciente, porque ele esta­va bem atrasa­do na esco­la e não con­seguia tra­bal­ho, além de não demon­strar amadurec­i­men­to sobre a ideia de que sairia do abri­go. Foi um ano bem angus­tiante”, relem­bra o edu­cador.

Quan­do Matheus fez 18 anos, André, as madrin­has e o abri­go fiz­er­am um acor­do. “Alug­amos uma casa para que morasse soz­in­ho, mas ele fica­va mais na min­ha casa e com um ami­go do que na própria casa. Em agos­to de 2018, ele con­seguiu um tra­bal­ho de jovem apren­diz em uma loja de calça­dos. Ficou evi­dente que não con­seguiria se orga­ni­zar para dar con­ta da casa, do tra­bal­ho e da esco­la, mes­mo com nos­so suporte remo­to. Decidi­mos, eu e ele, que o mel­hor seria ele morar comi­go. Des­de então, moramos nós dois jun­tos.”

Matheus perdeu o tra­bal­ho no fim de 2019, porque o con­tra­to venceu e, com a pan­demia no ano seguinte, ele con­tin­ua desem­pre­ga­do. “A boa notí­cia é que ele con­seguiu finalizar o ensi­no médio, o que foi uma super­con­quista, mas pre­cisou que eu ficas­se mon­i­toran­do todas as ativi­dades e incen­ti­van­do inin­ter­rup­ta­mente, o que, de cer­ta for­ma, foi meio cansati­vo tam­bém”, desabafa o padrin­ho do jovem.

No momen­to, Matheus está plane­jan­do o que faz­er da vida. “É legal viv­er com o meu padrin­ho, ele me aju­da para caram­ba, e ago­ra esta­mos plane­jan­do o que quero faz­er daqui para a frente: estou fazen­do um pro­je­to de vida, mas os meus planos não estão cer­tos ain­da, mas son­ho ter min­ha casa, faz­er fac­ul­dade e viv­er via­jan­do!”

Legal­mente, Matheus não tem nen­hum vín­cu­lo com André, mas a con­vivên­cia é a mes­ma de uma família. “Mes­mo com quase 21 anos, ele pre­cisa de mui­ta ori­en­tação e incen­ti­vo, pois a vivên­cia tão lon­ga em insti­tu­ições deixou algu­mas mar­cas e ‘inabil­i­dades soci­ais’. É óbvio que nos­sa relação pre­cisa ser cuida­da todos os dias e nem sem­pre é fácil, mas, é pos­sív­el ver que ele fez muitos avanços, além de me respeitar bas­tante e procu­rar sem­pre ouvir o que ten­ho pra diz­er — mes­mo que no final ele faça cer­tas coisas do jeito dele.”

André diz que con­hece muitos jovens que não tiver­am a mes­ma opor­tu­nidade que Matheus ou que não con­seguiram sus­ten­tar esse tipo de relação. “Os irmãos dele são um exem­p­lo dis­so, pois hoje um tem 18 e out­ro tem 19, mas acabaram por tril­har out­ros cam­in­hos.”

O que diz o ECA

Ape­sar da ini­cia­ti­va paulista de insta­lar repúbli­cas e de histórias como a de Matheus, a real­i­dade não é igual no restante do país, isto porque o próprio Estatu­to da Juven­tude não pre­vê essas repúbli­cas como obri­gatórias, desta­ca o advo­ga­do Ariel de Cas­tro Alves, espe­cial­ista em dire­itos da infân­cia e juven­tude, mem­bro do Insti­tu­to Nacional do Dire­ito da Cri­ança e do Ado­les­cente.

“A leg­is­lação é fal­ha ao não obri­gar os municí­pios a man­terem repúbli­cas para jovens. Eles têm dire­ito pre­vis­to no Estatu­to da Cri­ança e do Ado­les­cente (ECA) de ficar nos abri­gos até com­ple­tar 18 anos. Depois acabam sendo excluí­dos dos serviços de acol­hi­men­to e ficam sem qual­quer apoio. Todo inves­ti­men­to feito para man­ter essas cri­anças e ado­les­centes dig­na­mente e pro­te­gi­das nos serviços de acol­hi­men­to cai por ter­ra quan­do são expul­sos aos 18 anos dos abri­gos. Muitos vão morar nas ruas, out­ros se envolvem com dro­gas e crimes e acabam no sis­tema pri­sion­al,”

Para o advo­ga­do, são necessárias inter­venções e pro­gra­mas soci­ais que pre­parem os ado­les­centes para a eman­ci­pação econômi­ca e social e para a autono­mia enquan­to ain­da estão nos abri­gos. “Por meio da esco­lar­iza­ção, profis­sion­al­iza­ção, ensi­no téc­ni­co, for­mação profis­sion­al, bol­sas de estu­dos, pro­gra­mas de está­gio e apren­diza­gem. Há tam­bém neces­si­dade de tra­bal­hos de reaprox­i­mação deles com suas famílias de origem ou com famílias exten­sas, como avós e tios, ou a inclusão deles em pro­gra­mas de apadrin­hamen­to.”

Na opinião do espe­cial­ista, o auxílio emer­gen­cial ado­ta­do na pan­demia dev­e­ria ser uma políti­ca públi­ca per­ma­nente de ren­da bási­ca para jovens egres­sos de serviços de acol­hi­men­to. “Ess­es jovens dev­e­ri­am ser incluí­dos como pri­or­itários para rece­ber o auxílio, isso aju­daria a diminuir a pop­u­lação de rua e do sis­tema pri­sion­al.”

Direito à moradia

Um pro­je­to de lei do Sena­do, o PL 507/2018, cria a Políti­ca de Atendi­men­to ao Jovem Desli­ga­do de Insti­tu­ições de Acol­hi­men­to, um serviço de apoio para orga­ni­zar mora­dias, nos moldes das repúbli­cas de estu­dantes uni­ver­sitários, des­ti­nadas a jovens de 18 a 21 anos que pre­cis­aram deixar o serviço de acol­hi­men­to de ado­les­centes e que este­jam em situ­ação de vul­ner­a­bil­i­dade.

De acor­do com o pro­je­to, elab­o­ra­do pela Comis­são Par­la­men­tar de Inquéri­to (CPI) dos Maus-Tratos, encer­ra­da em 2018, essas repúbli­cas dev­erão acol­her, sep­a­rada­mente, os jovens do sexo mas­culi­no e fem­i­ni­no aci­ma de 18 anos impos­si­bil­i­ta­dos de retornar à família de origem ou de ser acol­hi­dos por família sub­sti­tu­ta. Tam­bém vão abri­gar aque­les sem condições de prover o próprio sus­ten­to.

As repúbli­cas serão local­izadas em áreas res­i­den­ci­ais, seguin­do o padrão socioe­conômi­co da comu­nidade em que estiverem inseri­das. O esque­ma de fun­ciona­men­to da casa dev­erá bus­car a con­strução da autono­mia pes­soal dos jovens, com desen­volvi­men­to da auto­gestão, autossus­ten­tação e inde­pendên­cia.

O tex­to tam­bém deter­mi­na o incen­ti­vo à par­tic­i­pação dos jovens em ativi­dades cul­tur­ais, artís­ti­cas, esporti­vas, de acel­er­ação de apren­diza­gem e cur­sos profis­sion­al­izante para a inserção no mer­ca­do de tra­bal­ho.

O PL foi rece­bido pelo senador Paulo Paim (PT-RS), rela­tor na Comis­são de Dire­itos Humanos, com voto favoráv­el à aprovação. Des­de novem­bro de 2020, o PL está pron­to para entrar na pau­ta na comis­são.

Edição: Nádia Fran­co

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