...
sábado ,18 janeiro 2025
Home / Direitos Humanos / O que o Globo de Ouro de Fernanda Torres mostra sobre atos golpistas

O que o Globo de Ouro de Fernanda Torres mostra sobre atos golpistas

Premiação ocorre na semana em que ações do 8/1 completam 2 anos

Mar­i­ana Tokar­nia — Repórter da Agên­cia Brasil
Pub­li­ca­do em 08/01/2025 — 07:28
Rio de Janeiro
Brasília (DF), 23/09/2024 - Cena do filme Ainda estou aqui. Foto: Alile Dara Onawale/Sony Pictures
Repro­dução: © Alile Dara Onawale/Sony Pic­tures

O Globo de Ouro, da atriz Fer­nan­da Tor­res, chamou nova­mente a atenção para o filme que vem baten­do recordes de bil­hete­ria e fazen­do suces­so tan­to no Brasil quan­do fora do país. A pre­mi­ação por mel­hor atriz em Ain­da Estou Aqui ocorre na sem­ana em que os atos golpis­tas de 8 de janeiro de 2023 com­ple­tam dois anos. Se por um lado a aceitação do filme mostra o inter­esse da pop­u­lação pelo que ocor­reu na ditadu­ra e a importân­cia da preser­vação da memória e da reparação às víti­mas e às famílias pelos crimes cometi­dos no perío­do, os atos recentes são, segun­do espe­cial­is­tas entre­vis­ta­dos pela Agên­cia Brasil, a pro­va de que o Brasil ain­da vive uma democ­ra­cia frágil.

Para a his­to­ri­ado­ra Gabrielle Abreu, o filme traz a opor­tu­nidade de a sociedade brasileira dis­cu­tir a ditadu­ra por meio da arte. “Acho que a gente está viven­do uma opor­tu­nidade muito espe­cial de ser­mos con­fronta­dos cole­ti­va­mente, enquan­to sociedade, com essa temáti­ca e por meio da arte, da cul­tura, de uma per­son­al­i­dade como a Fer­nan­da Tor­res, o que facili­ta muito que o tema seja debati­do e dis­sem­i­na­do”, diz Abreu que é mestre em história com­para­da pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ). Tra­bal­hou no Arqui­vo Nacional e é a atu­al gesto­ra de Memória no Insti­tu­to Marielle Fran­co.

Ain­da Estou Aqui con­ta a história da família Pai­va, que em 1971, com o endurec­i­men­to da ditadu­ra mil­i­tar, pre­cisa enfrentar o desa­parec­i­men­to e assas­si­na­to de Rubens Pai­va, engen­heiro civ­il e políti­co brasileiro. A história é con­ta­da do pon­to de vista de quem fica, a esposa Eunice Pai­va, inter­pre­ta­da por Fer­nan­da Tor­res.

Rio de Janeiro (RJ), 03/04/2024 – A diretora do Arquivo Nacional, Gabrielle Abreu durante sessão de fotos à Agência Brasil, na instituição, no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro – A dire­to­ra do Arqui­vo Nacional, Gabrielle Abreu, durante entre­vista — Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

Para Gabrielle Abreu, o filme tem função impor­tante: “Ele tem essa função social, esse papel social de nos tele­trans­portar àquela época e faz­er com que as pes­soas rechacem esse perío­do, o con­heçam, enten­dam um pouco porque hoje a gente enfrenta ess­es ataques suces­sivos à democ­ra­cia e passem a repelir o perío­do, a ideia de uma ditadu­ra, de autori­taris­mo, de cen­sura, de lim­i­tação de dire­itos e, nat­u­ral­mente, que isso inspire em nós, na sociedade brasileira, uma sen­sação de apreço à democ­ra­cia”, defende.

Negação da ditadura

Os desafios, no entan­to, ain­da são muitos. Segun­do a his­to­ri­ado­ra Rena­ta Melo, que é dire­to­ra-ger­al da Seção Region­al da Asso­ci­ação Nacional de História (ANPUH) no Dis­tri­to Fed­er­al e vice-coor­de­nado­ra do NEAB — Núcleo de Estu­dos Afro Brasileiros da Uni­ver­si­dade de Brasília (UnB), os impactos da ditadu­ra vêm sendo nega­dos por parcela da pop­u­lação que chega a enal­tecê-la. O ato anti­democráti­cos de 8 de janeiro de 2023 foi uma das mate­ri­al­iza­ções desse pen­sa­men­to.

Brasília (DF), 07/01/2025 - Historiadora Renata Melo. O que o Globo de Ouro de Fernanda Torres mostra sobre os atos golpistas. Foto: Luan Gramacho/Divulgação
Repro­dução: Brasília — His­to­ri­ado­ra Rena­ta Melo fala sobre o que o Globo de Ouro de Fer­nan­da Tor­res mostra sobre os atos golpis­tas — Foto Luan Gramacho/Divulgação

“Nos últi­mos anos, viven­ci­amos uma reit­er­a­da negação de fatos históri­cos que acon­te­ce­r­am no Brasil, o que traz resul­ta­dos neg­a­tivos para boa parte da sociedade, mes­mo para os que não com­preen­der­am, não viven­cia­ram aque­le momen­to históri­co, que foi a ditadu­ra e os impactos que oca­sion­aram na sociedade”, diz.

De acor­do com Melo, o filme “traz à tona uma memória e uma parte da sociedade que ain­da luta para que ela não seja lem­bra­da e, inclu­sive, que seja nega­da. Negar que a ditadu­ra acon­te­ceu, negar os impactos neg­a­tivos dessa ditadu­ra para várias famílias, negar, inclu­sive, entre aspas, os vis­tos como sub­ver­sivos, como acon­te­ceu com aque­la família, com o desa­parec­i­men­to e tudo que impactou na sua tra­jetória”.

Abreu com­ple­men­ta: “A gente vive num país que lida com cer­ta difi­cul­dade em relação a memórias recentes e mais dis­tantes, do pon­to de vista tem­po­ral, cronológi­co. Então, por mais que a gente ain­da este­ja muito próx­i­mo do perío­do da ditadu­ra mil­i­tar, são pou­cas décadas des­de o fim for­mal do regime, a gente ain­da vive numa sociedade com resquí­cios, com várias her­anças desse pas­sa­do dita­to­r­i­al. E todas elas muito noci­vas, muito neg­a­ti­vas e que difi­cul­tam o avançar da nos­sa democ­ra­cia, a saúde da nos­sa democ­ra­cia, haja vis­to os ataques recentes a ela, que tiver­am seu ápice no 8 de janeiro”.

Memória, verdade e justiça

A ditadu­ra mil­i­tar se esten­deu de 1964 a 1985. O perío­do em que o país foi con­tro­la­do por mil­itares é mar­ca­do por repressão, cen­sura à impren­sa, restrição aos dire­itos políti­cos e perseguição aos opos­i­tores do regime. A Comis­são Nacional da Ver­dade recon­heceu 434 mortes e desa­parec­i­men­tos durante a ditadu­ra mil­i­tar. A Comis­são Cam­pone­sa da Ver­dade tam­bém recon­heceu o impacto da ditadu­ra para os povos do cam­po e apre­sen­tou, em 2015, um relatório que lista 1.196 cam­pone­ses e apoiadores mor­tos ou desa­pare­ci­dos entre 1961 e 1988.

Segun­do o inte­grante do cole­ti­vo Fil­hos e Netos Memória Ver­dade e Justiça, Leo Alves, que com­põe a direção exec­u­ti­va da Coal­izão Brasil Memória Ver­dade Justiça Reparação e Democ­ra­cia, ain­da fal­ta ao Brasil a chama­da justiça de tran­sição. De acor­do com a Orga­ni­za­ção das Nações Unidas (ONU), justiça de tran­sição é o con­jun­to de proces­sos e mecan­is­mos rela­ciona­dos com os esforços de uma sociedade para super­ar um lega­do de graves vio­lações de dire­itos humanos cometi­dos em larga escala no pas­sa­do, a fim de asse­gu­rar respon­s­abi­liza­ção, admin­is­tração da justiça e rec­on­cil­i­ação.

“Talvez a mais fun­da­men­tal medi­da reparatória seja a justiça, é a con­de­nação dos graves vio­ladores de dire­itos humanos agentes de Esta­do, inclu­sive da repressão da época da ditadu­ra e muitos civis tam­bém”, defende. “Não temos con­de­nação de tor­tu­radores e isso é muito ruim para qual­quer país. É isso, memória, ver­dade, justiça”.

Brasília (DF), 07/01/2025 - Léo Alves. O que o Globo de Ouro de Fernanda Torres mostra sobre os atos golpistas. Foto: Aline Deluna/Divulgação
Repro­dução: Brasília — Léo Alves, do cole­ti­vo Fil­hos e Netos Memória Ver­dade e Justiça — Foto Aline Deluna/Divulgação

Alves é neto de Mário Alves de Souza Vieira, que foi jor­nal­ista e diri­gente do Par­tido Comu­nista Brasileiro Rev­olu­cionário um dos desa­pare­ci­dos pela ditadu­ra em 1970. Alves cresceu ao lado de mul­heres como a própria mãe e a avó, que lutavam e seguem lutan­do, como fez Eunice em Ain­da Estou Aqui, por reparação. “É isso que o filme bus­ca, de cer­ta for­ma, retratar com a Eunice. A Eunice é isso, essa mul­her­a­da aí que luta­va pela anis­tia [aos pre­sos e persegui­dos políti­cos] nos anos 70 e que mobi­li­zou toda uma sociedade”.

Ele está otimista com a reper­cussão do filme. “O meu dese­jo para 2025, a par­tir de ago­ra, é que esse filme abra as por­tas para a con­strução ade­qua­da da memória da ditadu­ra mil­i­tar no Brasil”.

Arte e sentimentos

Para o his­to­ri­ador e inte­grante do Cole­ti­vo RJ por Memória, Ver­dade, Justiça, Reparação e Democ­ra­cia Paulo Cesar Azeve­do Ribeiro, a preser­vação da memória é impor­tante para que crimes como os cometi­dos na ditadu­ra não se repi­tam. Segun­do ele, o ato golpista de 8 de janeiro mostra que a democ­ra­cia ain­da é frágil no país e pre­cisa ser cuida­da. “Nós não temos aqui exata­mente uma democ­ra­cia real e jus­ta social­mente e eco­nomi­ca­mente”, diz. “Esta­mos muito pre­ocu­pa­dos com a manutenção da democ­ra­cia e com o alarga­men­to e apro­fun­da­men­to dela para uma democ­ra­cia real em que se com­bata a fome, as desigual­dades soci­ais e todos ten­hamos dire­ito a uma vida digna”, acres­cen­ta.

Brasília (DF), 07/01/2025 - Paulo Cesar. O que o Globo de Ouro de Fernanda Torres mostra sobre os atos golpistas. Foto: Paulo Cesar/Arquivo Pessoal
Brasília — O his­to­ri­ador Paulo Cesar Azeve­do Ribeiro — Foto Paulo Cesar/Arquivo Pes­soal

De acor­do com Ribeiro, pela arte, o filme fez a história da família Pai­va e a dis­cussão sobre a ditadu­ra chegar onde tra­bal­hos acadêmi­cos não chegam. “O papel do cin­e­ma, da lit­er­atu­ra, da poe­sia, da músi­ca, do teatro é muito impor­tante. Nós, que somos pesquisadores, his­to­ri­adores, cien­tis­tas soci­ais, pro­duz­i­mos mono­grafias, dis­ser­tações, teses. Mas temos uma lin­guagem fria, nós traduz­i­mos em quan­ti­dades e qual­i­dades, faze­mos anális­es, hipótese de tra­bal­ho, ten­ta­mos com­pro­var com doc­u­men­tos, entre­vis­tas, depoi­men­tos. Os artis­tas con­seguem muito mais, con­seguem comover as pes­soas por meio dos sen­ti­men­tos”.

LOGO AG BRASIL

Você pode Gostar de:

Aposentados não terão pagamento bloqueado por falta de prova de vida

Portaria suspende bloqueio por 6 meses a contar de janeiro deste ano Lucas Pordeus León …